“Nunca quis outro nariz até ver um melhor no Instagram”

Fazer ou não uma cirurgia plástica é uma escolha individual, mas a influência das mídias digitais está mudando a percepção cultural coletiva das intervenções estéticas. Estamos banalizando esses procedimentos?

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Enquanto as gerações anteriores viam as suas fotografias apenas alguns dias depois, quando reveladas, e lidavam com um pequeno limite de fotos por filme, geralmente entre 24 ou 36 poses, as mais recentes pouco se lembram ou, até mesmo, desconhecem essa realidade. Os chamados nativos digitais, aqueles que já nasceram com uma relação íntima com a tecnologia, são expostos à sua própria imagem milhares de vezes ao longo da vida por meio de seus smartphones, criando, assim, uma nova forma de se relacionar com a própria aparência – que, diga-se de passagem, é profundamente diferente das formas vistas em qualquer outro período da história.

Graças às mídias sociais, as pessoas nunca se olharam tanto. Entre uma selfie e outra, os usuários passaram a se autoavaliar, a se ver em versões supostamente “melhoradas” e a se comparar com outros rostos e corpos digitais – muitas vezes, tão retocados quanto os deles, porém apresentados como realidade. Até pode ser cedo para avaliar as consequências desse fenômeno a longo prazo, mas, por enquanto, já dá para notar que, apesar de esse ser um novo movimento, com ele, velhos problemas psicológicos ganham contornos contemporâneos.

“Existe sim uma mudança de comportamento. O grande desafio para nós, médicos, é identificar se aquele paciente está desenvolvendo algum dimorfismo de imagem”, afirma Renata Vidal, em entrevista à ELLE. A cirurgiã plástica do Real Hospital Português de Pernambuco constata que, apesar de o Brasil ser (há décadas) um país com altos índices de procedimentos, nos últimos anos, ela passou a receber em seu consultório pessoas cada vez mais jovens, vindas por influência das redes sociais e sem a real noção dos riscos de uma intervenção cirúrgica. Conforme as distorções são geradas, o sentimento de insatisfação com a própria aparência é aflorado também fora das telas e, de forma banalizada, o bisturi tem sido a solução óbvia para muitas pessoas, principalmente mulheres.

De acordo com a Academia Americana de Cirurgia Plástica Facial e Reconstrutiva, em 2019, 55% dos cirurgiões afirmaram já ter atendido pacientes que solicitaram procedimentos para melhorar a sua aparência em selfies. A estatística assusta, mas quem faz parte dela está muito mais perto do que podemos imaginar.

“Uma cirurgia pode ser uma forma de pedir socorro. O que está acontecendo por trás dessa reclamação? É necessário investigar e respeitar essa jovem.”
Cintia Aleixo, psicóloga

Aos 15 anos, uma estudante de Salvador, que preferiu não ser identificada, realizou uma rinoplastia após, segundo ela, perceber como estava sendo consumida emocionalmente por essa insegurança. A garota, contudo, destacou em conversa com a ELLE: “Antes, eu nunca tinha desejado outro nariz. Na verdade, há uns anos, eu nem mesmo pensava sobre isso. Não é como se fôssemos nos importar com a nossa aparência quando somos crianças. Mas aí veio a adolescência, e aí veio o Instagram. Quando eu vi um nariz melhor lá, passei a odiar o meu”.

Nos últimos dez anos, segundo a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica, houve no Brasil um aumento de 141% no número de procedimentos entre jovens entre 13 e 18 anos. O movimento tem sido crescente e, para Renata Vidal, há sempre um questionamento a ser feito: “Quando chega uma paciente menor de idade, a primeira pergunta que faço é ‘quais mulheres você acha bonita?’. Eu preciso entender qual é o padrão de beleza que essa menina tem em mente. Se ela só me responder mulheres nos moldes eurocêntricos, já sei que há algo de errado ali”.

A preocupação é extremamente válida e a cirurgiã diz ter boas conversas com as pacientes a partir disso, mas percebe também como agora não são apenas as celebridades que alimentam os moldes “perfeitos”, pois eles estão mais espalhados. Colegas de classe, amigas e conhecidas também assumem esse lugar, se tornando propagadoras de padrões em suas próprias contas – sempre muito ativas – nas mídias sociais.

“O processo da educação falha quando as nossas crianças entendem que a autoestima está mais relacionada à imagem do que à inteligência. Quais são os valores que esse adolescente está aprendendo com os seus responsáveis ou aos quais tem tido acesso em redes sociais para que chegue a esse ponto?”. Quem traz o questionamento é Cintia Aleixo. A psicóloga chama a atenção para a crueldade da pressão estética que passou a impactar principalmente mulheres de forma cada vez mais precoce.

Ligações perigosas

Apesar de ter sempre existido, o culto à beleza tem agora novos disfarces para continuar controlando corpos femininos – mesmo em supostos tempos de positividade corporal. Lá na década de 1990, a escritora, pensadora e militante feminista estadunidense Naomi Wolf já havia destacado em sua obra
O mito da beleza como a mulher é acorrentada por certezas invisíveis de outros que, assim, condicionam o seu modo de viver. Atribuir valor às figuras femininas de acordo com a sua aparência serve a um projeto econômico e político bem específico. E, infelizmente, essa corrida começa ainda na adolescência, quando as garotas estão buscando as suas identidades e precisam se reafirmar para se sentir aceitas em determinados grupos sociais.

Entretanto, se antes modificar o seu corpo ou rosto através de uma cirurgia plástica poderia parecer, para uma jovem, distante ou caro demais, agora o procedimento passa a ser apresentado como uma possibilidade real e uma solução óbvia nos stories de inúmeras influenciadoras com milhões de seguidores. “As influências externas podem ganhar um alto nível de importância para uma garota ou mulher pela falta de maturidade ou pela pressão estética”, afirma Cintia. A psicóloga também alerta: “Uma cirurgia pode ser uma forma de pedir socorro. O que está acontecendo por trás dessa reclamação? É necessário investigar e respeitar essa jovem”.

Especialistas defendem que, antes de se render ao bisturi, reconstruir a autoestima por meio de um acompanhamento psicológico é indicado e pode fazer toda a diferença. Cintia opina: “Até certo ponto, uma insegurança pode ser revertida pelo processo terapêutico. Já tive casos de total sucesso. Entretanto, a condição emocional da jovem é decisiva. Muitas só procuram ajuda quando já estão viciadas na medicação de emagrecimento. Em casos como esse, há um longo trabalho pela frente e, muitas vezes, doloroso”. A presença de um profissional é essencial para identificar com precisão os anseios que atormentam aquela garota e podem já estar se desenvolvendo através de dismorfias de imagem, ansiedade ou depressão.

“Recebo pacientes que chegam com fotos de si mesmo com filtro e falam ‘eu quero ficar com a boca assim’. Em muitos casos, são bocas impossíveis de serem feitas.”
Renata Vidal, cirurgiã plástica

Quando questionada se há casos em que a cirurgia é indicada, a psicóloga defende: “A gente pode estar falando de uma garota que sofreu bullying a vida toda por ter um nariz grande e já está com a sua autoestima destruída. Há casos e casos, lógico. Se o impacto emocional estiver em um alto nível, a possibilidade do salvamento pode ser procurar um cirurgião e entender o que pode ser feito, ajustando as expectativas, que muitas vezes podem vir de um lugar fantasioso, e trazendo para a realidade”.

Em casos de menores de idade, a cirurgiã Renata Vidal esclarece qual é o protocolo legal: “É preciso garantir que o paciente já tenha alcançado a estrutura óssea completa. Por isso, sempre o encaminho para o ortopedista e, assim, podemos entender se ainda haverá crescimento. Caso não haja mais, os responsáveis legais precisam fazer uma autorização por escrito registrada no cartório, além de, claro, todos os termos de consentimento”. A médica, no entanto, tem as suas dúvidas se esse processo tem sido seguido à risca. “Eu acredito que nem todos os médicos têm feito cada uma dessas etapas adequadamente. Mas é o correto”, afirma.

Para além das menores de 18, jovens mulheres na casa dos 20 anos também têm buscado por cirurgias com recorrência. E, apesar de mais velhas, segundo Renata, essas pacientes chegam com ideias completamente equivocadas a respeito dos procedimentos. “Uma coisa curiosa que acontece hoje é que a paciente já é supostamente estudada quando aparece para a consulta. Ela lista exatamente quais intervenções deseja fazer e afirma coisas que provavelmente viu em vídeos e posts, mas que nem sempre são verdadeiras ou funcionariam para ela”, diz Renata.

Com padrões humanamente irreais, porém virtualmente possíveis, em mente, muitas pessoas têm passado por um choque de realidade ao terem as suas expectativas ajustadas nos consultórios. “Recebo pacientes que chegam com fotos de si mesmo com filtro e falam ‘eu quero ficar com a boca assim’. Em muitos casos, são bocas impossíveis de serem feitas.” A cirurgiã explica que os filtros do Instagram costumam inchar o meio dos lábios e, se essa característica fosse reproduzida em um procedimento, até poderia ficar agradável estaticamente, mas a paciente perderia a mobilidade bocal.

“As pessoas estão com uma ideia de beleza estática. Uma beleza de porta-retrato – ou melhor, de Instagram. Mas a beleza está no movimento. A beleza é dinâmica”, afirma Renata. “Tem casos que eu não aceito operar e, caso considere, sugiro fazer o que eu, como profissional, sei que seria melhor”, diz Renata. Entre esses episódios, a médica cita o caso de uma paciente que, posteriormente, reconheceu que o procedimento não teria resolvido o que realmente a incomodava e ficou grata por ela não ter aceitado fazer as intervenções pedidas.

Entretanto, não são todas que têm essa mesma sorte. Em dezembro de 2020, a influenciadora Sthe Matos, 21 anos, virou notícia pelo Brasil após relatar o que ela considera como o pior momento de sua vida.
Em um vídeo com mais de 6 milhões de visualizações, a baiana conta que, após uma rinoplastia mal-sucedida, precisou fazer uma nova cirurgia para corrigir a primeira. A segunda, no entanto, também não deu certo. “Um dia, eu acordei e o meu nariz estava aberto, a cartilagem completamente exposta. Foi desesperador”, conta. Sthe precisou realizar uma intervenção de emergência, mas, devido ao enxerto, ficará em avaliação por até um ano, mantendo cuidados minuciosos com o nariz, ainda frágil.

Sthe é uma das muitas influenciadoras que já realizaram cirurgias e documentaram o processo em suas mídias sociais. O seu caso mostra o quão invasivo um procedimento pode ser e quantas sequelas pode deixar. Entretanto, tão grave quanto os riscos que uma intervenção impõe, é também a condição de banalização com que as cirurgias vêm sendo tratadas. Tornou-se comum ver uma influenciadora compartilhando sua ida a uma clínica cirúrgica com a mesma normalidade de quem compartilha uma ida à padaria. É claro que a transparência é essencial com os seguidores, mas a abordagem simplista transforma procedimentos altamente invasivos em atividades corriqueiras.

“Acho necessário dizer que os influenciadores também são influenciados. Eles também seguem a Kylie Jenner e a Kim Kardashian e também lidam com a pressão estética.”
Fernanda Concon, influenciadora

Apesar de a cirurgia ser uma escolha individual, a influência despertada em milhões de pessoas permite uma mudança na percepção cultural coletiva. Ao não gerar provocações quanto aos motivadores reais para a execução de um procedimento, essas personalidades digitais colaboram para a crescente popularidade das intervenções, sem que ao menos seja criada uma conscientização ou alerta sobre os riscos envolvidos.

Cansada de acompanhar a recente onda de cirurgias plásticas através de uma abordagem normalizada, Fernanda Concon, 18 anos,
expôs sua visão em seu perfil no Instagram, seguido por mais de 3 milhões de usuários. No vídeo, que viralizou, ela comenta: “Têm sido criada a necessidade em pessoas que jamais teriam tido vontade de fazer uma cirurgia se não tivessem visto antes na internet”.

Em conversa com a ELLE, Fernanda fez questão de ponderar: “Acho necessário dizer que os influenciadores também são influenciados. Eles também seguem a Kylie Jenner e a Kim Kardashian e também lidam com a pressão estética. Mas, cada vez mais, pessoas que não têm sequer o intuito de influenciar alguém estão nessa posição. Nem todos têm a responsabilidade necessária e estão prontos para lidar com esse trabalho”. A paulista, que começou atuando ainda criança em novelas infanto-juvenis, faz, inclusive, uma autocrítica: “Com 15 anos, o maior sonho da minha vida era colocar silicone. Quem barrou foram os meus pais. Mas, se algum fã me perguntasse se eu faria, eu diria que sim. Hoje, jamais diria isso publicamente”.

Quando perguntada se ainda tem a vontade de colocar prótese, Fernanda desabafa: “Se eu dissesse que não, eu estaria mentindo. Mas eu luto diariamente comigo mesma porque tenho noção de que estaria fazendo isso por pressão estética e eu nunca quero me submeter a isso”. A atriz conta que a sua adolescência foi marcada por problemas com o corpo: “Eu comia até passar mal porque queria ficar mais encorpada. Trabalhar na televisão pode ser muito cruel. Nos bastidores, já vi mãe inventando doença alimentar para a filha parar de comer, figurinista dando chilique porque a roupa planejada não cabia mais no corpo da atriz. Com 10 anos, eu escutava de produtores que estava ‘magra demais’. O que eu ia responder para esses adultos? O que eles esperavam com isso?”, questiona Fernanda.

A atriz resolveu fazer o seu vídeo, que já conta mais de 1 milhão de visualizações, após acompanhar, especialmente, as polêmicas em volta da Lipo Lad HD. A cirurgia ganhou popularidade após ser feita pela cantora Ludmilla e por sua esposa, Brunna Gonçalves, em julho de 2020. Depois da publicação do casal nas redes sociais, as buscas relacionadas ao método registraram um aumento de 800% no Google e, desde então, o assunto tem dividido opiniões até mesmo entre os especialistas.

“As pessoas estão com uma ideia de beleza estática. Uma beleza de porta-retrato – ou melhor, de Instagram. Mas a beleza está no movimento. A beleza é dinâmica.”
Renata Vidal, cirurgiã plástica

“Essa é uma cirurgia de oportunidade. É uma necessidade criada para vender uma solução”, esclarece Renata Vidal. A cirurgiã explica que a Lipo Lad causa uma sequela cicatricial intencional para simular um desenho muscular no abdômen, mas, na realidade, forma quadrados de gordura, sem nenhuma alteração no músculo. “O médico que realiza esse procedimento vai entregar ao seu paciente uma sequela para o resto da vida”, diz Renata, que optou por não adotar o método. “Eu não posso entregar sequelas. Eu preciso entregar qualidade de vida. Antes de ser cirurgiã, sou médica”, afirma ela.

Ao que tudo indica, no entanto, são muitos os profissionais que discordam. Depois de Ludmilla e Bruna, inúmeras influenciadoras realizaram o método e compartilharam o processo em suas redes sociais, divulgando os cirurgiões responsáveis. O compartilhamento, aliás, abre espaço para mais dúvidas. Muitas dessas personalidades realizam as intervenções através de permutas, ato não permitido pelo Código de Ética Médica. “Em termos legais, isso não pode acontecer. Quando a gente fala de tratamentos médicos, não pode existir a percepção do comércio”, explica Renata. A profissional ainda chama a atenção para as fotos de antes e depois, também proibidas legalmente, mas bastante recorrentes pelas redes sociais de cirurgiões. Não é preciso nem pesquisar muito para encontrar em contas de clínicas até mesmo foto de paciente sedado deitado na maca, já na sala cirúrgica, provando a enorme falta de fiscalização.

“Infelizmente, quando falamos de estética, tudo parece mais fácil, banal e superficial. Mas, quando se trata de procedimentos minimamente invasivos e de cirurgias plásticas, há riscos de óbito, complicações e sequelas. E isso precisa ser tornado consciente”, finaliza Renata.