O Carnaval sem trio elétrico da Maga

Figura fundamental na festa, Margareth Menezes põe a sensatez acima da paixão pela folia: “É algo muito mais grave o que estamos passando. A gente não pode arriscar a vida humana”.

 

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Margareth Menezes acompanha há mais de três décadas a luta dos artistas negros e blocos afro da Bahia para conquistar patrocínios e sair às ruas comandando a massa nos dias de Carnaval. Neste ano, não há Carnaval de rua, mas o problema continua o mesmo: a princípio, a cantora, pioneira máxima do samba-reggae e da axé music, não obteve patrocínio para transmitir uma live especial de Carnaval, tal qual farão colegas de maior apelo pop, como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Claudia Leitte. Agendou participações especiais nas lives de Daniela (dia 12), Olodum (dia 16) e na live coletiva Carnavarandas Devassa (dia 14), todas patrocinadas. Comunicada de última hora, a live Baile da Maga será transmitida apenas no pós-Carnaval, na Quarta-feira de Cinzas (dia 17), pelo YouTube e pelo canal fechado Multishow.

Aos 58 anos, Margareth vê as representações negras e femininas ganharem mais protagonismo na música pop brasileira e se diz feliz por ser citada como referência por artistas baianos da nova geração. E ainda comemora a longevidade de “Faraó divindade do Egito”, o primeiro samba-reggae gravado, em 1987, por ela e Djalma Oliveira. Versos da música têm sido ouvidos como meio de comunicação entre pessoas em quarentena em Salvador. Alguém grita “eu falei faraó!” da janela de seu apartamento aqui, outro responde “ê, faraó!” no prédio ao lado.

Margareth se mostra resignada com a inédita interrupção do ritual brasileiro do Carnaval. “Não podia acontecer na pandemia de jeito nenhum. Não pode acontecer. Vamos nos conformar”, afirma, sem hesitação. Na entrevista abaixo, feita por telefone de Salvador, a artista fala sobre como tem sido sua vida nesse último ano. Sem shows, ela aceitou um convite para atuar como atriz, ofício que exerceu no início da carreira, e participou da série A Casa da Vó, comédia centrada numa família afro-brasileira, em cartaz pela plataforma digital Wolo TV, especializada em conteúdos afro-brasileiros. “Não se ouviam nas escolas histórias sobre a cultura e o referencial positivo do povo negro”, afirma, sintonizada com a luta antirracista em expansão no Brasil.

Este vai ser o primeiro Carnaval que você não sobe no trio elétrico?

Não, não é o primeiro. É o segundo, porque no início da carreira eu tive um Carnaval em que não cantei. Mas já tem muito tempo isso. A questão não é que não subo no trio elétrico. É que não tem Carnaval. É algo muito mais grave o que estamos passando no mundo hoje. Para fazer Carnaval precisa de gente, de vida, de gente na rua, e a gente não está podendo fazer isso. A gente não pode arriscar a vida humana. A maior colaboração que a gente pode dar hoje é conscientizar as pessoas de que essa pandemia é muito séria. Muitas pessoas estão morrendo, muitas. Eu vi a conta de ontem (11 de fevereiro), foram quase 1,5 mil pessoas mortas no Brasil. São mais de 30 mil pessoas morrendo por mês. A gente não pode relegar isso a uma coisa de “ah, meu Deus, podia ter Carnaval”. Claro que não pode ter. A gente tem que se acalmar, procurar fazer o Carnaval em casa mesmo. O sentimento que eu tenho é que a gente precisa encarar isso com naturalidade. Vai se desesperar por causa disso? É claro que a gente fica sentido pelo fato de que é uma coisa importante para nossa cultura, uma hora em que está todo mundo com aquela efervescência. O ano só começa depois do Carnaval, não é verdade? Tem toda uma energia que move as pessoas, principalmente a juventude. A galera gosta porque é pé na jaca. Eu já vivi essa parte. (ri) Mas é isto. O que a gente pode fazer? A gente tem que ser inteligente para não cair numa situação de depressão porque não tem Carnaval.

Como foi esse ano de pandemia com relação ao trabalho?

Teve uma coisa muito boa que aconteceu para mim durante o ano que foi ter ido para São Paulo gravar a série A Casa da Vó. Em outubro, recebi o convite para participar dessa série, que é uma comédia muito engraçada. Foi lançada por uma plataforma nova, Wolo TV, para conteúdos afro-brasileiros. Foi tudo feito com muito cuidado e graças a Deus ninguém se contaminou. É importante acontecer isso, e que venham outras. Essa plataforma valoriza mais, e mostra também o lado mais íntimo, da relação da família afro-brasileira. Quem não vivencia não conhece. Infelizmente, a discriminação racial às vezes leva a pessoa a querer ignorar que existe a família de pessoas negras, que já existem profissionais galgando outras esferas. A gente precisa começar a dar foco a essas coisas para minorar a questão do racismo no Brasil.

“A gente não pode relegar isso a uma coisa de ‘ah, meu Deus, podia ter Carnaval’. Claro que não pode ter. A gente tem que se acalmar, procurar fazer o Carnaval em casa mesmo.”

Qual é a sua opinião sobre a atuação do presidente Bolsonaro diante da pandemia?

Ah, pelo amor de Deus. A minha opinião são 1,5 mil pessoas morrendo por dia. Não tenho saco para essa forma de tratar o povo brasileiro. É lastimável a vida humana ser tratada dessa forma.

Fazer lives serve como um paliativo para essa temporada sem shows?

Acredito que as lives não vão parar. Essa ferramenta já se impôs nas plataformas, nas redes sociais. Acho que é um formato que veio para ficar. E não significa que não teremos mais shows. Não sei, também… Aos pouquinhos estão se começando a abrir algumas salas. Hoje (12 de fevereiro) estou participando da live da Daniela Mercury, e tem também o Olodum, na terça-feira (16), e no domingo (14) tem a Varanda da Devassa. São vários artistas, acho que tem uma varanda, a pessoa canta na varanda um pouquinho, depois passa para outro artista, com distanciamento. Fazemos em estúdio, com distanciamento. Claro que você faz para o público, é uma arte em que a presença e a troca de energia são muito importantes. Mas é o canal que está se apresentando para a gente agora. Eu fiz quatro lives. É claro que dói ser só virtual, mas por enquanto não dá para se beijar, para se abraçar. Já pensou? Isso não podia acontecer na pandemia de jeito nenhum. Não pode acontecer. Vamos nos conformar.

Você não vai fazer uma live própria durante o Carnaval porque não conseguiu patrocínio?

Não fui só eu, não, foram vários artistas. Estamos nesse negócio de lutar por espaço e patrocínio há muito tempo. É a realidade do Brasil, a falta de apoio para a cultura. As empresas precisam acordar mais, ter mais sensibilidade para o patrocínio. Mas estou dentro de um contexto de comunidade, não é a Margareth Menezes. A gente precisa ter outra forma de ver a representação dos artistas negros pelo que a cultura afro-brasileira proporciona ao Brasil. O que eu defendo e luto é por um país melhor, contra a discriminação racial, contra os preconceitos. Sobre a falta de apoio, é só olhar para ver o desequilíbrio. Sempre foi uma luta muito grande para os artistas negros e os blocos afro participarem do Carnaval.

Para os artistas negros é mais complicado?

Nós estamos em que país? Que realidade a gente vive no Brasil? Eu não vou ficar respondendo essas coisas porque não quero ficar sendo uma pessoa que… A gente precisa lutar contra a realidade do país. Minha luta é contra essa visão que quer diminuir ou acha que a coisa não é bem assim. É assim, é assim. A nação é feita por cidadãos pretos, brancos, azuis, amarelos. Todo mundo precisa ter oportunidade e ser respeitado. Existe um trabalho, uma contribuição, existem profissionais. Para de olhar as pessoas como objetos, são seres humanos que estão ali, que dedicam suas vidas, que estão contribuindo verdadeiramente para uma identidade nacional. Não falo só em questão das artes, não, em todas as áreas profissionais. Por que não pode haver uma visão justa sobre isso e um reconhecimento da colaboração do povo afro-brasileiro no desenvolvimento do país? É isso, se for falar só de mim, diminui demais. A gente está lutando, querendo que seja reconhecida a efetividade das colaborações. É dessa diversidade que a gente está falando. É um país riquíssimo, e temos algumas pessoas com muito, muito, muito, e a grande maioria passando por provações.

“Sempre foi uma luta muito grande para os artistas negros e os blocos afro participarem do Carnaval.”

Como você está vendo a representação negra no Big Brother?

Não estou assistindo. Tenho visto as discussões, mas não estou acompanhando para fazer uma análise. Acho que Big Brother não representa a luta do povo, toda essa luta que a gente vem trazendo ao longo de tempos. É um produto da Rede Globo, que está usando esse produto para se articular, talvez, criar comunicação, interagir com o público, dentro das questões todas que estão sendo levantadas. Mas não é por um Big Brother que vai ser. Não é pontuando em ações de pessoas que a gente pode falar da luta antirracista. Porque tem jovens morrendo assassinados nas favelas. É bom as pessoas se verem mais na televisão, mas é bom também que a luta seja cada vez mais profunda, e não de desqualificação, mas buscando formas de esclarecer. Para eu estar aqui viva hoje, tive muitos ancestrais.

Há 20 anos você criou o afropop brasileiro, e agora há uma geração nova que fala de afrofuturismo. Você foi pioneira disso?

Eu não sei. (risos) Sei que, desde 1992, comecei a ter essa visão da questão da identidade. Eu não criei, eu fortaleci, chamei a atenção para essa identidade, da afro-urbanicidade. Isso já existe há muito tempo, é o comportamento da música afro-urbana, que está embutido na tropicália, no Gil, no Jorge Ben. São as minhas referências, sem perder também a questão minha aqui, da Bahia, do samba-reggae. Nunca fui muito restringida se canto isso ou aquilo. Para mim não dá, nunca gostei desse tipo de fronteira. Nisso refletiu também o fato de eu ser mulher, mulher negra. Me apresentava com a banda, pegava a guitarra, tocava um violão. Tudo isso trouxe essa referência de comportamento pop para o meu trabalho. Então me identifico muito com o jeito com que esses meninos novos estão chegando, essas artistas negras, mulheres maravilhosas. Tem o pessoal do BaianaSystem, meninos de que eu gosto mesmo antes de eles serem muito famosos. Afrocidade também, conheci e agora estão bombando. Luedji Luna conheci numa entrevista e já gravei música dela. Larissa Luz, eu vi desde quando ela começou aqui, no trio elétrico, e aí toda a transformação da carreira. Nara Couto, falando assim da Bahia. Dão Black, um menino compositor, coisa linda. Majur, acho maravilhoso o trabalho dela. Tem uma galera bonita fazendo coisas lindas, sem medo de questionamentos. Então pronto, é muito bonito poder acompanhar isso, ver que há outras perspectivas para os artistas negros. Fico feliz.

Durante a quarentena, as pessoas em Salvador se comunicaram entre os prédios cantando “Faraó”.

Não foi só em Salvador, não. Foi em São Paulo, Minas Gerais, vários lugares do Brasil. É a força de uma música do Luciano Gomes, de 1987, uma música muito interessante dentro desse movimento do axé. Ela varou o tempo e até hoje é uma música superpresente, que vem dos blocos afro. Não se ouviam essas histórias nas escolas, sobre a cultura e o referencial positivo do povo negro. Os blocos afro começaram a trabalhar isso, e “Faraó divindade do Egito” foi o primeiro samba-reggae gravado. Ficou na memória das pessoas. Foi a primeira música que eu gravei. É incrível como essa música começou e toda a trajetória que veio depois dela. Para minha vida foi muito importante, porque depois eu fui contratada por uma gravadora pela primeira vez. Aí gravei “Elegibô, uma história de Ifá”, a música que me levou para fora do Brasil, para fazer a abertura da turnê de David Byrne. Ficou 11 semanas em primeiro lugar em World music (na lista da Billboard).

Esta reportagem foi publicada originalmente em fevereiro de 2021, na ELLE View, nossa revista digital mensal. Para fazer sua assinatura, clique aqui.