A notícia do cancelamento do Carnaval 2021 não só entristeceu foliões ao redor do Brasil, mas também impactou toda uma indústria que, só no ano passado, movimentou R$ 8 bilhões na economia nacional – um aumento de 48% em comparação a 2019 e um recorde segundo a Confederação Nacional do Comércio (CNC). Em São Paulo, por exemplo, 15 milhões de pessoas geraram uma receita de R$ 2,75 bilhões para o Carnaval de rua da cidade. No Rio, foram R$ 4 bilhões, segundo a Riotur, 31,2% a mais do que no ano anterior.
Com a pandemia sem sinal de arrefecimento e a vacinação em ritmo lentíssimo, a alternativa mais segura foi apelar para os eventos online – e eles são vários. Contudo, eles não dão conta de absorver o impacto no mercado, que já sente o prejuízo causado pela pandemia. Entre os afetados, estão uma série de empreendedores de moda que construíram e consagraram seus negócios e carreiras em torno das festividades.
Fernando Cozendey.Fotos: Ubiratan Leandro | Stylists: Natasha Ribas e Nídia Aranha | Beleza: Teddy Zani | Modelos: Nick Chagas, Renato Canivello e Lize Robert
É o caso de Walério Araújo, um dos principais nomes da indústria do brilho. “A roupa me levou para o Carnaval. O paetê e tudo que reluz sempre fizeram parte do meu universo. Mesmo ao criar uma camiseta ou jeans, eu dava um toque com plumas, luvas e cristais”, diz o estilista pernambucano, baseado em São Paulo. Desde os anos 1990, ele assinou looks para ícones carnavalescos como Elke Maravilha, Claudia Leitte, Sabrina Sato e Gaby Amarantos, entre outras. “Por mais que faça uma roupa focada no baile ou na avenida, tem sempre uma pegada de moda. Isso é o que me diferencia e gera essa procura”, completa.
Para Walério, a data representa quase 100% de seu faturamento anual. “Realmente é a época que mais lucro, que sou mais procurado e em que durmo apenas duas horas por noite.” Durante os 30 anos de carreira, a marca expandiu para além daqueles três ou quatros dias de puro êxtase. Porém, com a pandemia de COVID-19, o negócio desacelerou. “Quando o bicho pegou, estava prestes a comemorar meus 50 anos com um baile de máscaras para mil pessoas. Foi tudo cancelado”, lamenta. “Agora, estou em um momento de espera para que as pessoas se vacinem e façam pequenos encontros onde eu possa, além de comemorar meus 51 anos de uma forma intimista (e com um dress code à fantasia), realizar alguns trabalhos.”
“Temos dois clientes fazendo roupas para um futuro carnavalesco possível”, fala Wilson Ranieri, estilista focado em produção sob medida e demanda que começou a desenvolver looks para a folia de maneira despretensiosa há quatro anos e não parou mais. “Começou como uma brincadeira, quando saí para um bloco de rua, em São Paulo, e não queria uma fantasia comprada.” Ao lado da amiga e também estilista Lívia Barros, da Ken-gá Bitchwear, eles fizeram uma primeira coleção colaborativa, batizada de Parsereia. “A cidade estava começando a se movimentar mais intensamente em torno desses eventos e a coleção, que era de farra, veio a calhar, junto com uma nova demanda por roupas brilhantes. A partir daí, passamos a levar tudo mais a sério.”
Desde então, o estilista planeja o Carnaval como uma coleção para virar o ano, que representa mais de 70% do seu faturamento anual. “Há dois anos, isso se oficializou no ateliê. Em janeiro, paramos tudo para cuidar dessa produção”, diz. “Em 2020, por exemplo, ficamos completamente tomados por isso. Fiz roupas para blocos, para cantoras, escolas de samba. E teve muita procura e precisei até declinar outros trabalhos para me focar nisso.”
A alta demanda também se deve ao preço mais acessível, já que as roupas são pensadas para a jogação. “Mesmo usando estampas exclusivas e matérias-primas interessantes, procuro manter valores em conta e fiquei atrelado a isso. Como nos últimos anos a procura se multiplicou por 20, conseguimos produzir mais, desenvolver um maior número de modelos e vender o estoque inteiro”, explica o estilista.
Este ano, porém, foi diferente. “É um mix de sentimentos, pois o ateliê está funcionando graças aos clientes que estão retomando algumas coisas da vida, mas a saudade do Carnaval vai ficar guardadinha”, conta Ranieri, que já está de olho em 2022. “Estamos aguardando. Se tiver algo no final do ano será outra coisa”, diz. “Talvez tenha uma coleção ali na frente, mas temos que entender como será a vacinação para, quem sabe, planejar uma linha especial para o momento do abraço.”
Foi no final de 2016 que a Ken-gá, de Janaina Azevedo e Lívia Barros, começou a perceber um crescimento de demanda relacionado ao Carnaval. “Foi quando lançamos os brincos Fora Temer e Sai Machista, especialmente para as mulheres poderem passar uma mensagem de proteção e protesto na folia”, fala Barros. As peças se tornaram hit e, de lá pra cá, a Ken-gá virou referência no Carnaval de São Paulo. “Cada vez mais as pessoas querem sair com roupas extravagantes. Elas se seguram o ano inteiro para isso e, por oferecermos criações brilhantes e ousadas, sempre fomos muito ligadas a essa festa. É nosso grande forte”, continua ela.
Ken-gá Bitchwear.Fotos: Maurício Kessler / Clava
No novo QG da marca, recém-inaugurado na galeria do Edifício Louvre, no centro de São Paulo, a produção não parou, apesar de estar mais enxuta. “Teremos alguns lançamentos na época do Carnaval, mas estamos focadas na nossa loja, marcando horário para visitas, fazendo promoções e usando esse momento para desenhar o site e reestruturar a marca”, explica Barros.
Essa espécie de pausa para reorganização também foi adotada pelo carioca Fernando Cozendey, cujas criações divertidas e ousadas o colocaram no topo da lista de quem quer arrasar nos bailes e blocos. “Comecei minha marca há dez anos por diversão nunca imaginei que iria dar certo”, diz. “Tudo que um designer quer é ver as pessoas usando suas criações e o momento em que mais vejo isso é no Carnaval. A cada ano que passa, a minha inserção nessa época aumenta.”
Para ele, 2020 foi um ano recorde de vendas. “Já tinha um e-commerce pronto, então consegui colocar a coleção à venda antes do Carnaval para expandir o alcance, especialmente em São Paulo, onde tive um aumento na demanda e também onde desfilo na Casa de Criadores. A plataforma digital o ajudou a segurar as pontas nos meses seguintes e difícil do ano passado. “Decidi trazer as peças-ícones da marca, que têm bastante procura, e oferecê-las no site para encomendas. Até o acervo de produção está disponível. Por enquanto, temos que ter paciência, porque, quando isso acabar, vai ser festa por três semanas.”
A recifense Sarah Falcão também precisou dar um passo atrás devido à pandemia. “Estou fazendo algumas encomendas, mas como exerço outras atividades profissionais, apesar do grande impacto, estou conseguindo dar conta de passar esse ano quase sem produção”, explica a designer, conhecida pelos acessórios de cabeça feitos a mão. “Essa semana fui ao centro deRecife comprar material e é nítido o impacto nas lojas”, diz. “Lugares que, antes, eram lotados de artigos para fantasias, estavam vazios pela falta de procura por esses produtos.”
Sarah Falcão.Fotos: Lana Pinho | Beleza: Cris Malta | Modelos: Uana Mahim e Eloisa Aquino
Enquanto alguns enxugam a produção, no aguardo por dias melhores, outros tentam levar o brilho para outros momentos, como a paulistana Paeteh e a baiana Realce. “Começamos a visualizar novas possibilidades e mercados, com peças para todo tipo de celebração”, explica Estéfano Hornhardt, sócio da Paeteh ao lado de Gustavo Pinhal. “Desde o lançamento da marca, há quatro anos, tivemos um crescimento de 40% e o Carnaval representa uma parcela gigante do nosso faturamento. Por enquanto, estamos conseguindo esperar, pois sabemos que é um momento passageiro e temos a esperança de que, no ano que vem, consigamos aproveitar melhor”, completa.
Em Salvador, o produtor de moda e idealizador da Realce, Victor Portela, também está levando as lantejoulas e o lurex de suas criações para outras possibilidades. “Da primeira coleção de 2016 para cá, entendi que havia um apelo maior de vendas no Carnaval, ao mesmo tempo que minhas peças se tornavam mais roupas e não só fantasia. Hoje, quero ir além do bloco”, conta. “Foi um ano difícil, mas não podia ficar parado. Fiz uma coleção com vestidos de paetê com plumas, calças com franjas e jaquetas bomber.” O retorno foi positivo, mesmo sem o calendário de verão e com eventos cancelados. “Quero caminhar cada vez mais para um conceito de roupa para momentos especiais, afinal o paetê é para a vida inteira.”
Realce.Fotos: Thiago Borba
Com 20% da produção reduzida, Portela está esperando a poeira baixar para lançar a segunda parte da linha. “A minha compra de tecido foi feita pensando em uma coleção maior. Assim que tiver um sinal de luz, vou retomar as atividades, porque acredito que gente é para brilhar.”
Outra saída encontrada por marcas carnavalescas, como a mineira Dercy e a carioca Alexia Hentsch, foi a colaboração com outras grifes. “Chegamos a pensar em não fazer nada, mas sentimos que, especialmente neste momento, as pessoas precisam de algo que faça os olhos brilharem e de algo para alegrar o dia a dia”, conta Alice Correa, uma das fundadoras da Dercy, ao lado de Débora Cruz.
Dercy + Kanssei.Foto: Paulo Raic
A solução foi uma parceria com a Kanssei, grife do estilista Lucas Magalhães. “O encontro do Carnaval com o loungewear é uma explosão de cores, brilhos e texturas. Peças fluidas, confortáveis e muito glamourosas para usar em casa e na vida”, comenta Correa. A correria foi grande para conseguir lançar ainda em fevereiro, mas o esforço valeu a pena. “Estamos muito felizes com o resultado dessa collab, que é uma carta de amor para todos os corações carnavalescos que estão apertadinhos este ano”, continua ela.
A suíço-carioca Alexia ficou famosa entre as it-girls brasileiras pelos bodies de tule, que vão do baile ao bloco, e pelas maxicabeças, capazes de parar qualquer evento. Hoje, ela está no quarto ano de parceria com a Farm, tem collabs engatilhadas com a Loungerie e a multimarcas Pinga para serem lançadas entre fevereiro e março, além de um projeto pessoal inspirado pelo isolamento social. “Comecei a usar materiais que se encontram em casa, tipo sacola de compras, vassoura, balde, tudo que é de plástico”, diz. “Se você prestar atenção, existem coisas muito bonitas nesses objetos. E, se começar a desfazê-los, pode aplicar suas partes em um chapéu ou acessório. Fica o máximo.”
Seus bodies também estão disponíveis em sua loja online, assim como peças sob medida e feitas por encomenda. “Estou fazendo uma roupa inteira de paetês para uma cliente. Parece um look da Mangueira dos anos 1970”, comenta. “É um ano em que o faturamento de Carnaval é praticamente zero, mas tudo o que faço tem esse mood. Então ele está sempre presente.”
Alexia Hentsch.Foto: Jonas Vaz
O trabalho artesanal que envolve especialmente a produção de acessórios também faz com que alguns designers consigam se manter além das festividades, como Eduardo Caires e Victor Hugo Mattos. “Quando comecei a desenvolver algumas peças mais glamourosas, como as pochetes e body chains, que foram encomendadas com exclusividade para Sabrina Sato, no Carnaval do ano passado, percebi que poderia criar diversos itens com essa mesma estética, mas para outras ocasiões”, conta o paulistano Eduardo Caires. “A partir desse momento, percebi que a marca havia ganhado força para se manter além do calendário da folia.” Suas criações mais recentes, como a colaboração em parceria com a banda Noporn, estão disponíveis na sua loja virtual.
Apesar de sua label homônima ser bastante associada aos looks das festas canceladas neste 2021, o carioca radicado em São Paulo Victor Hugo Mattos segue com seu trabalho manual independente da falta do festejo. Sua mais recente coleção é inspirada no poder de cura do sol. São maiôs, vestidos e cabeças de crochê com muita pedraria, feitos sob medida e por encomenda.
“Sempre gostei de drama, de fantasia. Comecei meu trabalho autoral desenvolvendo acessórios de cabeça. Essas primeiras produções foram direcionadas para publicidades e eventos relacionados ao Carnaval”, conta ele, que já assinou looks para os principais bailes do eixo Rio-São Paulo. Assim que possível, ele deseja conquistar também as avenidas. “Gostaria de desenvolver algo grandioso para a Sapucaí, para os desfiles das escolas de samba do Rio. Uma ala, comissão de frente, quiçá um desfile inteiro algum dia. Por enquanto não faz sentido termos as festas, mas sem dúvida o Carnaval pós-pandemia será um dos maiores.” Assim esperamos – e não duvidamos.