Ponto de interrogação

Qual é a sua bandeira nesse bloco dos sem-carnaval?

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Ilustração @viamagalhaes

“Carnaval, desengano, deixei a dor em casa me esperando/ E brinquei e gritei e fui vestido de rei/ Quarta-feira sempre desce o pano.” Adoro essa música do Chico Buarque, tem aquele clima que ou chove ou a gente bebe e acende um fogo.

Quarta-feira sempre desce o pano, o Carnaval sempre teve essa certeza do fim, da tristeza que vem com o fim, seja como for, mesmo o fim do que era doloroso. Dá pra interpretar de muitos jeitos, não faltam teorias sobre. Eu não quero teorizar, mas talvez dizer uma coisa ou outra.

O Carnaval ensina a festa como motor e o luto como ensaio, alguma coisa assim. Se bem que no Brasil hoje parece que é sempre Quarta-feira de Cinzas, a dor não espera mais nada, está aí o tempo todo. A festa, se houve, faz tempo, se pudessem apagavam da memória ou vendiam os direitos pra uma corporação. Outro dia vi uma bandeira nacional com os dizeres: “É proibido ser feliz”.

Fiquei animada de poder desobedecer, mas sei que não anda fácil. De verdade é nisto que chegamos, a essa proibição. Tem ao mesmo tempo, talvez pior, uma exigência de ser feliz o tempo o inteiro, o que obviamente pode ser tudo menos felicidade. Assim como mostrar os dentes não é sorrir. Temos um governante que nunca sorriu. Mostra os dentes, é um horror, não tem músculo pra isso. Começa no coração, vocês sabem. De um jeito não pensado, dá pra ver.

Mas e agora, né? Não vai ter festa. E o ensaio do luto talvez enfim possa avançar em rede nacional. Não tem, não teve Carnaval. Transmissões, essas coisas, mas quase se como vindas de outra dimensão, lembranças ou projeções de um presente que não existe.

Aí que, nossa, ficamos com o luto na mão. Podemos potencializar esse momento. Deixar ir e lamentar e se rasgar e fazer valer chorar. Desde 2020 estamos sendo lembrados diariamente de que vamos morrer todos um dia. Mas que uns são obrigados a ir mais cedo. Obrigados. Obrigados. Obrigados. Enquanto outros escolhem desver.

Se há uma peste e uma cura, há uma cura. Se não é pra todos, estamos escolhendo quem morre. Que grande festa será possível quando a maioria decidir que já não é mais aceito viver brincando de deus, entregando a vida de outras pessoas?

Saber que vai morrer, a consciência do fim, nos põe mais perto da vida. O que podemos supor pro além-morte é outra coisa, que inclusive montamos a partir da vida. Por isso dizemos vida após a morte. Mas da morte mesmo só sabemos que acontece. E como acontece até ali, de um jeito contado. Morreu de velho, de bala, de tristeza. Se foi obrigado a morrer porque não tinha dinheiro. Esse último é muito frequente.

Não tem festa, mas também ninguém deveria querer repetir Carnavais passados, o que vocês acham? As lembranças virão e mudarão um pouco, porque as lembranças são mesmo meio desse jeito, fatos de base e ficção pessoal, e essa ficção tem lugar de verdade em algum ponto pra nós mesmos. Só não vale impor pros outros, sacou? É dura a vida da bailarina, as disciplinas, os limites. A falta de limite é muito pior, não dói, desintegra.

De luto ensaiamos o Carnaval. Não é errado, é sobre isso. E todo Carnaval tem essa tristeza de fundo em conflito com uma necessidade de alegria, que é como ele começou a ser imaginado.

Quem já foi ao velório de alguém amado sabe que ali, na Quarta-feira de Cinzas de uma existência, a vida mostra sua força. Por mais que a gente quebre, ela deixa um negócio contornando a despedida. Sem velório, sem enterro, sem reconhecimento, assim é muito pior, cruel. Um minuto de silêncio por todos os que perderam alguém sem poder nem mesmo dar um tchau, mas acho que mais um minuto de gritos, de urros nas janelas de todo o país porque silêncio já tem muito. Estamos calados, sem palavras pra articular o quanto estamos prisioneiros, muitos de nós amordaçados, o mundo ameaçado, e alguns se sentindo donos dessa situação.

Quem serão os donos do fim do mundo dava um bom enredo. Mas como não vai ter Carnaval podemos pensar em forma de conversa mesmo. Não de fatalidade melancólica, não engolir a perda a seco e deixar tomar conta de tudo, mas como elaboração de uma alternativa, um passo.

No luto a gente aprende a dar rumo pros afetos que ficaram quando alguma coisa ou alguém se foram. Grandes, importantes pra nós, nosso jeito. Não é imediato, por um momento eles voltam pra gente, hora delicada, precisamos de ajuda pra segurar a barra, ir dando destino. E refazer a fala de como essa perda se deu, da história vivida. Termos a chance e o direito de sermos ouvidos com nossas dores.

Como morreu essa pessoa? E agora? Como posso viver sem esse lance pelo qual tanto trabalhei? O que fazer se o que tanto defendi não me serve mais? Pede mudança a coisa toda. E por aí vai.

A história de “Como ficamos sem Carnaval em 2021” é uma trilha de corpos e de trajetórias interrompidas por escolhas políticas e pessoais. Quem fez essas escolhas, como chegamos aqui?

Não vai ter festa. E aí não adianta tapar o sol com a peneira. Ficou faltando este ano. Ano que vem, quando o Carnaval, se tudo der mais ou menos certo, chegar, não vai ficar encaixado no lugar desse que não teve e nem vai ter começado a ser feito das cinzas de uma comemoração recente.

Vai ter que brotar de outro jeito, um jeito que acontece quando um cinza emenda no outro. Das lembranças do que foi e do que não foi, com desapego pelo que poderia ter sido e força no que ainda pode ser. Diferente. Caramba. De repente a gente vê que a última festa já era luto pelo país também, luto em negação, que pode ser deprimido, mas também eufórico.

Desapegar-se socialmente é dureza. Precisa falar e ouvir muito de questões da vida de todo dia. Precisa se negar a escolher entre isso e aquilo conforme permite o sistema. Porque nesse sistema os excluídos são e serão sempre maioria sem voz, os que morrem primeiro. Queremos outra configuração geral, uma que possa ser construída e construir escolhas verdadeiras, mais igualitárias. A igualdade de direitos sociais e econômicos favorece a autodescoberta e a convivência com o outro, com a diferença, favorece a festa.

E aí vem uma vontade louca de transformar o círculo, sair da rota de ordem e progresso. Fizeram uma bandeira, uma outra com uma faixa bem vermelha, assim atravessada no amarelo, escrito libido. Tem também uma rosa que diz defenda o SUS. Uma que insinua ser possível juntar tesão e luta de classes. Várias escolas.

Quem tem medo desse Carnaval que virá?

Lembram do Orfeu da lira que desceu ao Hades pra resgatar sua amada Eurídice morta? Hades fez o desafio e falou tá, mas se olhar pra trás perdeu. Os fantasmas têm suas limitações, e ela não pôde chegar ao sol. Não porque Orfeu tenha olhado, talvez. De repente ele só percebeu que ela de fato não podia voltar assim em carne viva, por isso olhou, fazendo coincidir o momento. Se deu conta. Falar com os mortos requer outras artes, mas fazer o quê, às vezes a gente insiste em descer ao inferno e barganhar, exigir de volta o que não dá mais. Sempre se perde, mas às vezes é preciso perder. Se perder de vez e perder sempre não é preciso. Tem diferença aí.

Orfeu foi devorado pelas Bacantes, que não suportavam aquela tristeza, só música de coração partido, lamento no morro. Destroçaram ele todo e jogaram a cabeça no rio, o coitado ainda gritava: “Eurídice”! Ô, gente. Ele foi recolhido pelas musas, e as Bacantes que gritaram mais alto que a música triste de Orfeu viraram árvores fixas como castigo. As Bacantes são implacáveis em seus berros: “Não é Eurídice e somente ela que te serve, mas você não se transformou todo na falta de Eurídice? Você está despedaçado por dentro. Então te arrebentamos e você vá ter com ela”. Brutais, como a melancolia mortífera, portadoras de um dizer entalado, de um fluxo interrompido, de um afogamento interno. O luto tem altos e baixos, mas vai botando a dor pra fora, briga e transborda. Se derruba é pra construir pela e com a vida.

Que o próximo Carnaval não seja Halloween ou uma rave zumbi de mortos-vivos, uma deprimente Covid fest. Que possa aparecer uma semente nova de uma flor sonhada.

Meu amigo Orfeu da Consolação canta assim: “Quero ver o fogo pegar samba”. E o Chico diz “que gente triste possa entrar na dança”. Dança nova, que se desenha conforme vamos entrando, cabeça em cima do pescoço, não lambendo botas por aí enquanto fingimos sorrir nessa prisão chamada de autonomia individual. Não é ciranda, é cobra, avalanche, chuva de raio, língua, maremoto. E brilha à sua maneira, esquenta, movimenta, transforma.

Sonho de um Carnaval é a música do Chico lá do começo do texto. Os sonhos são meus, nossos, seus, daquela galera ali, daquele povo de lá. Sonho acordado, sim. Mas sonhos dormidos também, eles importam. Anota aí o que tem aparecido, que não é premonição, mas enigma pessoal.

Eu tanto sonhei com derrota pra não lutar certas lutas, certos lutos, não sei vocês. Quase me perdi. Mas agora não tem volta, entrei pro trabalho do sonho. Tô me entregando pra quando o Carnaval chegar. No que ele tem de coletivo, inclusive, um sonho popular, comunitário. No que ele se faz de meu, perto do mar, longe da cruz, com letras de amor, rimas de sol.

Será que você vem? Eu vou. Por que não?