O sol há de brilhar mais uma vez

Depois de meses com a morte pairando no ar, os sobreviventes da Gripe Espanhola foram à forra: nunca houve um Carnaval como o de 1919. Mas 2022 que nos aguarde.

 

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O Carnaval de 2021 será um Carnaval do grito represado. Em cidades como a minha, o Rio de Janeiro, não se pulará por decreto municipal e, em parte, por convicção: antes mesmo de o estado intervir, escolas de samba e blocos já expressavam reservas quanto a uma folia de não-vacinados. No geral, afora os clandestinos, nós, foliões, ficamos na seca. No meu caso, botando sambas-enredos para tocar em casa, com a família. Mas um dia o aperto acaba. Como acabou, mais de cem anos atrás.

No dia 1º de março de 1919, um sábado, o Rio de Janeiro entrou em mais um Carnaval. Para a posteridade, seria tudo menos “mais um” Carnaval. No auge daquelas jornadas de festa, entre 400 mil e 500 mil pessoas, quase metade da população do então Distrito Federal, tomaram as ruas, a se confiar nas estimativas da imprensa da época.

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Vai além dos números. Foi o primeiro Carnaval depois do fim da Grande Guerra e também o primeiro depois do pico epidêmico da Gripe Espanhola, entre outubro e novembro de 1918, no Rio de Janeiro. Foi um Carnaval capturado, durante e depois, nas linhas dos irmãos Mario Filho e Nelson Rodrigues, então crianças; do jornalista Austregésilo de Athayde, então repórter; e de Chrysanthème, pseudônimo de Cecília Bandeira de Mello, então cronista de sucesso. Foi um Carnaval de vingança contra as provações impostas por uma doença causadora de estimadas 15 mil mortes e 600 mil casos – isso somente no Rio. Foi um Carnaval de drible nas privações – quando a Espanhola chegou, a cidade já sofria com o desabastecimento de itens básicos. Foi um Carnaval de retomada com estrondo – de um ano para o outro, o número de grupos licenciados para desfilar dobrou. No ano anterior, em 1918, alguns dos principais ranchos, sociedades e grupos não haviam saído em respeito à entrada do Brasil na Guerra, e até a natureza boicotou, com chuva por quatro dias. Em 1919, ao contrário, clareou. Como, espero, clareie em mais de um sentido em 2022.

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Há quatro anos, rabisquei um projeto de documentário sobre a passagem da Gripe Espanhola pelo Rio de Janeiro em 1918. O “filme” virou mais um na cinemateca dos nunca-produzidos. Mas valeu. Na pesquisa, mergulhei mais fundo no epílogo do projeto: o Carnaval seguinte. Trata-se de uma imersão pessoal.

Sou carioca, jornalista, filho de médicos comprometidos com a saúde pública, bisneto de imigrantes metidos no Carnaval pelas vias do comércio. Como não me encontrar no fogaréu festivo daqueles dias? Um fogo aceso depois de uma epidemia pior do que aquelas que cresci vendo meus pais combatendo. Uma chama ardida em cenários como o da extinta Praça Onze, que abrigou tantas famílias de imigrantes (tais quais a minha) – como não me interessaria pelo tema? O Carnaval de 1919 me achou.

Quando o Covid-19 começou a girar o mundo nos primeiros meses de 2020, reabri os arquivos da pesquisa. Portelense, obcecado pelas escolas de samba, logo pensei: o Carnaval de 1919 daria enredo para desfile na Sapucaí. De projeto de enredo, saltei a rabisco de livro, não parei. Topei, nas linhas de Nelson Rodrigues, com a miragem de fantasmas “tão humilhados e tão ofendidos”, “que cavalgavam telhados”. Nos jornais e revistas, encontrei descrições de como os grupos retrabalharam a memória da epidemia. A mais popular das sociedades carnavalescas, o Clube dos Democráticos, desfilou pelo Centro do Rio uma gigantesca xícara representando o “chá da meia-noite”, a bebida que, rezava a lenda ou a fake news, acelerava a morte dos pacientes mais graves. O mesmo chá desfilou numa sociedade menor chamada Zuavos, com o “apelo” inscrito sobre um bule: “Morre, diabo”. Em chamadas para desfiles e também em canções, em descrições da festa e também em nomes de blocos, a Espanhola apareceu pisoteando ou pisoteada. Caíam os cabelos depois da infecção? A Espanhola surgia numa charge como uma caveira, com tufos de cabelo na mão, ou em esculturas de cabeças peladas – nas páginas, nas ruas. Viúvas e viúvos da Gripe pulavam Carnaval de novo como solteiros? Um cronista via aí a causa para tantas máscaras pela cidade. Mesmo dois meses depois do Carnaval, quando o Rio vivia o agito do Campeonato Sul-Americano de Seleções, a revista Careta sentenciava: “Para o carioca, todas as coisas interessantes são muito interessantes, mas o que realmente interessa é a licença do Carnaval, o pavor da gripe, a bola do futebol”.

Os foliões de 1919 eram uma comunidade de resgatados do inferno. Entre outubro e novembro de 1918, quem não encontrou a morte na cama esbarrou com ela na rua.

Pois sim, apesar de na época sobrarem poucos nunca-infectados para fazerem a epidemia girar de novo, o Rio seguia temendo o retorno da Espanhola, fosse importada de barco ou de trem. Em contraste com o de 2021, o Carnaval de 1919 se deu num contexto de forte e sustentada baixa nos casos na cidade. Mesmo assim, às vésperas da folia, as autoridades sanitárias recomendavam, sobretudo, o isolamento dos sintomáticos. “O Carnaval proporcionando perigo pelas aglomerações, será prudente que cada um se precavenha (sic), evitando todo e qualquer excesso, não devendo sair de casa desde que se sinta adoentado”, indicou o doutor Teófilo Torres, diretor geral da saúde pública.

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Os foliões de 1919 eram uma comunidade de resgatados do inferno. Entre outubro e novembro de 1918, quem não encontrou a morte na cama esbarrou com ela na rua. O Rio virara uma cidade dos mortos, uma necrópole no sentido literal, terra de corpos à espera de recolhimento. Eram corpos com pés apoiados às janelas, corpos nas calçadas, corpos nos caminhões e nas carroças de carga descoberta – os mesmos veículos que assombraram os meninos Mario Lago e Nelson Antônio da Silva (anos mais tarde, Nelson Cavaquinho, mestre do samba, compositor de canções como “Juízo final”, inspiração do título deste artigo).

Passado o pico epidêmico, ao assombro seguiu-se uma liberação. Tornaram-se mais claras mudanças de comportamento, sobretudo entre os mais jovens: mudanças no jeito de se vestir, de andar na rua, de demarcar fronteiras de gênero – mudanças que escritoras contemporâneas, como Carolina Nabuco, atribuíam também à Grande Guerra. O Carnaval de 1919 foi já de elegantes “almofadinhas”, vanguardistas “melindrosas” e de alguns blocos femininos – o que demandava coragem, dado o nível de assédio e abuso, sobretudo nas calçadas lotadas. Borboletas Negras, Cinco-Minutos, Grupo das Apaixonadas e Pescadoras de Corações eram alguns desses grupos pioneiros. A descarga de energia foliã produziu efeitos duradouros. Nos últimos dias de 1918, um sobrevivente da Gripe Espanhola chamado Álvaro Gomes de Oliveira, rebatizado Caveirinha pelo tanto que emagreceu, juntou-se a amigos para criar o Bola Preta – “apenas” o maior bloco da história do Carnaval do Rio de Janeiro.

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Nosso Carnaval de 2021 não é como o de 1919 – é um interlúdio, talvez clandestino, decerto esvaziado em relação a um ano normal. Se tudo correr bem, nosso Carnaval de retomada será o de 2022. Entre outros motivos, pois nele voltaremos a contar histórias, como a que deve ser contada pela escola de samba Unidos do Viradouro, atual campeã do Carnaval carioca. Para 2022, o tema da vermelha-e-branca de Niterói é o próprio Carnaval de 1919, num resgate sob direção criativa dos carnavalescos Tarcisio Zanon e Marcus Ferreira. O título do enredo, tirado de um convite para um baile do Clube dos Democráticos de janeiro de 1919, diz tudo: “Não há tristeza que possa suportar tanta alegria”. Que seja.

David Butter é jornalista, produtor e portelense. Está escrevendo um livro sobre o Carnaval de 1919, com previsão de lançamento para o segundo semestre deste ano.

Fotos: reproduções das revistas Careta e Fon-Fon, do acervo da Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional.

Esta reportagem foi publicada originalmente em fevereiro de 2021, na ELLE View, nossa revista digital online mensal. Faça a sua assinatura e tenha acesso a todas as edições.