Maquiagem eufórica

Ao traduzir os valores da geração Z na maquiagem da série Euphoria, da HBO, a beauty artist Doniella Davy prova que o exagero do nosso Carnaval é bem-vindo todo dia e em qualquer lugar do mundo.

Se você ainda não assistiu à
Euphoria, série da HBO estrelada por Zendaya e dirigida por Sam Levinson, por favor: saia da caverna e dê play agora! O seriado fala sobre a vida de quem nasceu nos Estados Unidos depois da virada do milênio, a tão discutida geração Z. Entre vazamento de nudes, catfishing, vícios e histórias de violência velada e descarada, os episódios revelam belezas que contrapõem brilho, cor e magia a esse contexto difícil. A responsável por esses espasmos de luz em Euphoria é a estadunidense Doniella Davy. Seu estilo de maquiagem (colorido e extravagante) atravessou o mundo e inspirou desde desfiles e editoriais até looks do dia a dia. Em entrevista exclusiva à ELLE Brasil, a beauty artist explica como conseguiu traduzir tão bem a make de uma geração e como está se preparando para a segunda temporada.

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A personagem Maddy, interpretada por Alexa Demie, tem uma das maquiagens mais emblemáticas da série.Divulgação HBO e Reprodução


Como começou a sua carreira na beleza?

Eu tenho um background em artes visuais. Estudei fotografia na faculdade. Frequentei o Pratt Institute, no Brooklyn, Nova York. Um ano e pouco depois de me formar, uma amiga da minha mãe insistiu para que eu tentasse uma carreira no cinema e na TV. Pareceu divertido e eu mergulhei! Era uma indústria totalmente desconhecida para mim.

Foi assim que você começou a trabalhar com a Jane Galli (maquiadora de cinema responsável por sucessos como Star Trek e Watchmen)?

Sim, ela me ensinou a fazer efeitos especiais como feridas, sangue, sujeira… Também aprendi com ela a fazer tatuagens realistas com maquiagem e a cobrir as de verdade até sumirem por completo. Isso tudo me ajudou muito a estar onde estou. Em dado momento, percebi que, nesse mercado, ou você sabe essas coisas ou ninguém o leva muito a sério. Fora isso, ela me deu umas lições para a vida. Em primeiro lugar, me ensinou que nosso trabalho não é sobre ego – é sobre contar histórias. Me ensinou a entender um roteiro de verdade, a chegar no horário e a me organizar. Apesar de ter dificuldade até hoje com essa última parte.
(risos)

Quem são as outras pessoas que mais a inspiram no mundo da maquiagem?

Acho que são os artistas que eu encontro no Instagram e no TikTok. Gente que usa a maquiagem para se expressar e forjar o seu próprio caminho de criatividade e autoamor. Sigo maquiadores de diferentes lugares do mundo, mas eu amo ainda mais os que não são maquiadores profissionais. Amo quando as pessoas ousam na maquiagem porque querem, sabe? Amo quem não aceita o convencional e quem não está nem aí para o perfeccionismo.

Como funciona o seu processo criativo? Como começar a criar a maquiagem de um personagem?

Leio os scripts e então tento ler as entrelinhas. Fico imaginando as histórias de vida desses personagens. Falo com os diretores e roteiristas sobre que visão eles têm do personagem e daí vou me alinhando com o pessoal do figurino para fazermos algo coeso. Só depois desses bate-papos que dá para tentar montar um moodboard e contatar o elenco. No episódio especial sobre a Jules
(interpretada por Hunter Schafer), tentei um método diferente: pedi para que um artista fizesse um retrato da personagem. Imprimi dezenas de cópias e usei como um caderno de desenho. O processo é mais literal, mas funcionou bem. Acho que vou aplicá-lo na segunda temporada também.

E o seu estilo pessoal de maquiagem?

Sempre fui muito tímida a respeito da minha própria maquiagem: gostava de tudo muito natural, muito minimalista. No entanto, depois de
Euphoria, descolori as sobrancelhas e ando em um ponto entre o estilo de Jules e Maddy (Alexa Demie). Esse é um trabalho que mudou a minha vida. Tenho sido muito mais corajosa com a minha make. Aos 32 anos… Dá para acreditar que demorou tudo isso para eu me soltar?

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A beauty artist Doniella Davy costuma testar as makes nela mesma e documentar seu processo no Instagram.Reprodução


Como rolou o convite para assinar a beleza de Euphoria?

Já tinha trabalhado com a A24
(produtora estadunidense de cinema) em um filme chamado Under the silver lake, que contava com Andrew Garfield no elenco. E era um pouco parecido com Euphoria na medida em que também deu para usar muito glitter, pedrinhas brilhantes etc. Foi assistindo a esse filme que o Sam Levinson descobriu o meu trabalho e me convidou para fazer a série.

“A beleza que emociona é aquela que taca o foda-se no que as outras pessoas pensam, ao mesmo tempo que é incrivelmente carinhosa com todo mundo. Acho que seria uma não-conformidade gentil.”
Doniella Davy

Qual foi a sua reação?

Era o trabalho dos sonhos… O Sam, desde o começo, queria muito que a maquiagem tivesse um papel central na série. Ele queria que
Euphoria se tornasse uma plataforma para espalhar a ideia de que maquiagem é sobre autoexpressão. E, claro que, para isso, ele me pediu para não apostar em nada que fosse convencional, mundano. Amei a ideia e me diverti muito no processo.

Você imaginava que a maquiagem da série se tornaria tão influente ao redor do mundo?

Jamais! Eu achava que as pessoas iam dizer “ah, que maquiagem legal” e só. Nunca imaginei que daria o start em um movimento que muda a vida das pessoas. Até a minha vida mudou por causa disso. Tenho dificuldade em acreditar na proporção que isso tomou.

Quem assiste à série tem a sensação de que você conseguiu capturar muito bem o que a geração Z pensa sobre beleza. Como você conseguiu traduzir isso para a tela?

Essa é uma questão difícil de responder, mas acho que é uma combinação de vários fatores. Primeiro de tudo, sempre gostei de cor e brilho. Mesmo meu trabalho nas artes visuais já levava muito desses elementos. Fora isso, sou muito sensível e introspectiva. Então, acho que consegui entender muito bem esses personagens todos. E, claro, o time de
Euphoria é fantástico. Acho que me encaixei na equipe. Estava tudo no lugar certo e na hora certa.

O que você pode nos adiantar da maquiagem da segunda temporada?

Bom, agora tenho uma grande vantagem que é, de fato, conhecer a fundo quem são as personagens. A partir disso, tenho minhas ideias e opiniões de onde podemos ir com cada uma delas. Mas, é claro, o que me guia é sempre o que Sam trouxer em termos de narrativa para Jules, Rue e todas as outras. De qualquer maneira, tenho salvado milhões de posts no Instagram que podem se tornar referências para a série. Tenho olhado bastante para a moda também. No entanto, antes de começar a trabalhar, quero rever a história da maquiagem desde os anos 1920 para não ficar presa a visuais contemporâneos. No mais, tenho trabalhado em alguns looks mais escuros para a Jules. Mas tudo pode mudar!

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Hunter Schafer e Zendaya, respectivamente, Jules e Rue.Divulgação HBO


Depois da primeira temporada, seu perfil no Instagram cresceu muito! Como era a sua relação com as redes antes de Euphoria?

Pois, é!
(risos) Ninguém me conhecia antes desse fenômeno. Sou muito agradecida por cada um dos meus seguidores. Eles me deram essa plataforma. Aliás, sei que tem várias pessoas do Brasil que me seguem. Fiquei muito feliz com o convite para a entrevista porque é minha chance de dizer que estou vendo vocês e mandando muito amor, tá? (risos) É muito bom poder inspirar pessoas e ser inspirada por elas. É um círculo infinito e uma oportunidade incrível. Um presente inesperado!

Para fechar, o que é beleza para você?

Não gosto muito dessa palavra. Na verdade, tento até não usá-la com tanta frequência. Acho que ela gera muita pressão em crianças e adolescentes. Mas, para responder à sua pergunta, acho que a beleza que emociona é um tipo de beleza que taca o foda-se no que as outras pessoas pensam, ao mesmo tempo que é incrivelmente carinhosa com todo mundo. Acho que seria uma não-conformidade gentil.