Faça você mesmo. A expressão não é nova, mas seu exercício de fato aumentou nos últimos meses pandêmicos. Chamada de craftcore (assim como outras estéticas do TikTok que tem o sufixo ”core”, como kidcore), a tendência é uma forma de resgatar os trabalhos manuais, como bordado, tricô e costura. Nas mídias e plataformas online, são vários os canais e perfis independentes que ensinam as técnicas e compartilham experiências. O fenômeno tem a ver com um desejo de fugir dos padrões da moda massificada e, ao mesmo tempo, é uma forma de escape e terapia ante as angústias, lutos e frustrações de nosso tempo.
Da esquerda para direita, Ponto Firme, Bottega Veneta (acima), Hope Macaulay (acima), Fendi (abaixo) e Burberry.Fotos Divulgação
A indústria pop, contudo, deu uma ajudinha na popularização da tendência. Você deve se lembrar de Harry Styles com aquele suéter de crochê colorido de JW Anderson, que até disponibilizou a modelagem gratuitamente, mas existem outros exemplos. Muitos estão concentrados na quarta maior rede social do mundo: o TikTok, onde predominam usuários da Geração Z e Millennials. Por lá, a hashtag sewing (costura) aparece com mais de 3 bilhões de visualizações, e knitting (tricô), com mais de 360 milhões. Os altos números revelam o desejo das novas gerações em customizar, consertar ou até produzir suas próprias roupas. Mas não sem passar por questionamentos: na rede, existem críticas por meio da hashtag thrift flippping sobre pessoas que alteram peças com tamanho grande, advindas de brechós. O problema, no caso, se deve à escassez de peças em tais tamanhos e o destino para pessoas que não precisam delas de fato.
Não é à toa que as mulheres eram a maioria nos postos de trabalho na Revolução Industrial inglesa. Angela Davis, filósofa e ativista, escreveu na obra literária Mulheres, Raça e Classe que “foi como se a produção econômica fosse transferida da casa para a fábrica. […] Como fiar e tecer eram ocupações domésticas tradicionalmente femininas, as mulheres foram as primeiras a ser recrutadas pelos donos de fábricas para operar os novos teares a vapor”. A realidade, contudo, era diferente para as mulheres negras, que sofriam com a abolição da escravidão tardia e a segregação institucional e imaterial.
Atualmente, Estefânia explica que a predominância de mulheres nesse ofício depende de diversos fatores, mas destaca a divisão entre o trabalho manual e o intelectual. “Quando surge a máquina, o homem se liberta desse processo e deixa para as mulheres, que são ‘inferiores’, as coisas que podem ser feitas por elas.” Por isso, as manualidades, costurar ou tecer, estão ligadas ao trabalho doméstico feminino – que não é remunerado, mas sua manutenção é o que permite as formas de reprodução de vida.
O emblemático é que, dentre as funções domésticas, as manualidades têxteis possibilitaram a expressão criativa e autônoma das mulheres: “Enquanto os homens tinham outros acessos, as mulheres estavam restritas aos afazeres domésticos e isso era o que permitia uma maior autoexpressão”, diz Estefânia. O resultado, no século 21, é uma cadeia produtiva têxtil e de vestuário que concentra 80% de mão de obra feminina em todo o mundo.
Uma luz no início do fio
Hoje, vivemos uma crise sanitária sem precedentes e sem gestão no Brasil: o país mais ansioso e deprimido do mundo. Uma pesquisa realizada no primeiro semestre de 2020, pelo Instituto Ipsos, mostrou que 41% dos brasileiros têm identificado sintomas de ansiedade, 26% têm enfrentado insônia e 11% relataram sintomas de depressão. Tudo por causa das implicações da pandemia.
Tal momento complexo fez emergir o interesse pelas práticas manuais. A pesquisa Bem-estar e prática de manualidades com fios durante a pandemia de COVID-19, produzida por Claudia Rossetti e Bárbara de Marchie (Universidade Federal do Espírito Santo), mapeou quase 400 pessoas no Brasil sobre esse tema. O resultado mostra que mais de um terço dos entrevistados passaram a se dedicar às práticas por mais de oito horas semanais. No Google Trends, os termos “costura”, “tricô” e “bordado” atingiram o ápice de buscas na plataforma em maio de 2020, semanas após o início das restrições sociais.
Isso pode ser explicado pelo processo terapêutico que o fazer manual possibilita. “Nesses tempos de pandemia, as pessoas se viram em vulnerabilidade social e econômica. Isso abriu uma lacuna com um dito tempo livre”, explica a terapeuta ocupacional e especialista em saúde mental Daniela Tassi. Um de seus trabalhos está relacionado “à produção de vida por meio do fazer manual”, nas palavras da própria. Ela explica que as manualidades são uma forma de dar vazão ao simbólico por meio do concreto: uma peça, um fio, uma linha. Quando olhamos para um item de autoria própria, passamos a a dar um significado àquilo.
Sandra Annenberg com o casaco que tricotou em agosto.Foto: Reprodução
A jornalista Sandra Annenberg teve essa experiência. “Quando começou a pandemia, procurei algo que amenizasse a angústia, que me desse um pouco de paz e reencontrei o tricô”, comenta ela em entrevista à ELLE. “O tricô foi uma das minhas salvações durante a pandemia”, diz, citando o sapateado como outro escape. Sua filha começou a tricotar logo depois e as duas têm a mesma professora: Cris Bertolucci.
Cris é estilista de formação, mestre em têxtil e moda pela Universidade de São Paulo e tricoteira desde criança – aprendeu a funcionalidade com sua mãe. Há dez anos, ensina o que sabe para alunas e alunos na escola Novelaria, em São Paulo, e agora de forma online para qualquer pessoa em qualquer canto do mundo. Para ela, o que chama a atenção neste contexto é o resgate das memórias. ”Fico relembrando momentos que estava com minha mãe, amigas, irmãs. Tem sido difícil criar novas memórias trancados em casa, então a gente vai resgatando as que existem”, comenta.
Se no tricô bastam um novelo e duas agulhas, a costura já requer outro tipo de equipamento – mas nada que seja um grande empecilho. E não foi para Laila Sizzan. Com 24 anos, ela produz vídeos de maquiagem no Instagram e, com a quarentena, começou a criar figurinos para compor as produções. “Esse período despertou em mim coisas que sempre quis fazer, mas não tinha tempo nem vontade o suficiente. Precisava fazer algo para manter a cabeça ocupada e, como minha mãe gosta do processo de criação e costura, pedi a ajuda dela”, conta. Para a jovem, isso é uma forma de tirar o foco “dos problemas e da ansiedade de ficar isolada da maioria das pessoas”.
Stitch Bag, bolsa da marca Unif, que viralizou com tutoriais de DIY no TikTok (esq.) e Cris tricotando (direita)Foto: Reprodução Unif (esq.) e acervo pessoal (direita)
O número de pessoas costurando cresceu na pandemia, conforme Dayse Costa, que tem um canal no YouTube onde ensina a técnica, junto da modelagem, para quase meio milhão de pessoas. “Nesse ano de pandemia, foi surreal a quantidade de iniciantes na costura. Gente que começou do zero e hoje está vendendo as suas próprias roupas”, comenta a carioca, há 14 anos no ofício. Ela já atendeu desde facções até peças sob medida antes de ser professora. Começou nas comunidades do falecido Orkut e viu nos inúmeros pedidos de ”me ensina como se faz essa peça?” uma oportunidade de lecionar. Hoje, sua principal fonte de renda são as videoaulas, tanto as gratuitas nas mídias sociais como as privadas em plataformas de ensino a distância.
Estefania, porém, destaca que essa realidade não acompanha todas as pessoas e, em especial, despenca mais sobre as mulheres. “Se eu fosse uma pessoa solteira, certamente teria intensificado os fazeres manuais, mas sendo uma mulher casada, com um filho e cursando uma faculdade, isso não aconteceu”, explica ela. Como as mulheres desempenham múltiplas funções dentro de casa, a sobrecarga é comum – e aumentou com a pandemia. Elas passaram a trabalhar até 40% a mais, conforme pesquisas, e os números de violência doméstica também aumentaram consideravelmente.
Possibilidades fiáveis
Ainda que não substituam a terapia em si, as práticas de manualidades são comumente usadas em processos terapêuticos para ansiedade, depressão, bipolaridade etc., ou simplesmente como vazão a angústias e estresses de nossos dias. Daniela elucida que “depende da forma que a pessoa se coloca naquele fazer”.
“Se terapia é se fazer perguntas e buscar as próprias respostas, sim, foi uma grande terapia. Pude me ouvir como há muito tempo não fazia”, compartilha Sandra sobre sua volta aos fios. Ela gosta de fazer analogias do tricô com a vida: o desenrolar do fio, a construção dos pontos e toda a metáfora humana que implica tecer. Para Daniela, a comparação é totalmente possível. “A pessoa também tem que ir se reinventando a cada linha, a cada nó que vai fazendo. Ela se desenha por dentro para começar a tecer novas formas de ser na vida”, diz ela, que já trabalhou essas práticas com pessoas em situação de vulnerabilidade.
Cris brinca que, “se não tivesse tricô para fazer no Big Brother, ia sair na primeira semana, porque não conseguiria me colocar no eixo”. Em tom mais sério, diz que “o tricô é a humildade que a gente tem na vida”. Como um processo de autoconhecimento, as manualidades podem nos ajudar a abrir paraquedas coloridos para ver o mundo. “Nem sempre a gente erra e pode voltar atrás e fazer certo. No tricô, se você errar, pode desmanchar todo o fio e começar de novo”, diz a professora. Sua aluna confirma: ”Desfiz vários trabalhos, muitos já estavam prontos. Outras vezes, assumi meus erros e os deixei pelas carreiras da vida. Saber conviver com os erros é um aprendizado e tanto.”
O fio também foi o que conduziu Estefânia na criação da revista Urdume. Comunicóloga de formação, ela tem uma história de vida e luto com o bordado. Em 2016, perdeu a criança que seria seu segundo filho no primeiro trimestre da gestação. A dor e a angústia que só ela sentia ganharam colo e direção por meio das mãos. “Lembro exatamente da noite em que coloquei para tocar Angélica. Eu ouvia aquela música, e bordava e chorava”, relembra em referência ao refrão “Só queria embalar meu filho/ Que mora na escuridão do mar” na voz de Caetano Veloso.
A frase “eu que fiz” é dita com frequência por quem costura. Para Dayse, “é super gratificante, libertador e econômico” ver que ela mesma modelou, cortou e costurou suas roupas. “Traz uma satisfação. Além do aspecto visual, de achar bonito, tem o lado emocional, pois você se sente capaz.” Porém nem tudo são flores. A professora reconhece o crescimento e procura por trabalhos artesanais e customizados, mas ainda vê desvalorização na profissão. Como fatores para que alguém comece a costurar, ela elenca dois: ou a pessoa está buscando uma fonte de renda, ou está fazendo por hobby e prazer.
Com tantas demandas cotidianas, um mundo acelerado pela tecnologia e nossas mãos resumidas em dedos que fazem quase 3 mil toques por dia em telas de celulares, tricotar ou costurar são saídas de emergência. É um momento em que podemos exercitar nossa autonomia. ”Essas habilidades estão tão escondidas na gente. Fazemos tanto do mesmo, compramos tanto do pronto que perdemos a noção de como é magnífico conseguir fazer algo por nós”, finaliza Daniela.
O ponto zero
Muita gente pergunta se é possível aprender e ensinar algo tão manual à distância. Dayse responde que ”dá para aprender, mas depende da forma que você transmite a informação”. O processo de aprendizagem tem suas perdas e ganhos com tal formato, mas Cris destaca a autonomia que o aluno ou aluna pode ter quando é obrigado a fazer sozinho. Ela tem uma série de vídeos em seu Instagram ensinando os primeiros passos. Aqui, elenca como materiais iniciais para começar a tricotar um par de agulhas grossas e um novelo de fio em tom mais claro e sem textura.
Agora, se você quer aprender a costurar, Dayse produziu um vídeo especial com dicas para assinantes da ELLE View: