Ponto de interrogação

Vai pra onde?

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Ilustração @viamagalhaes

Que sentido faz hoje um desfile? Mal saímos de casa, as ocasiões sociais se restringiram ao mínimo e, pra quem mora no Brasil, as previsões de qualquer ideia de normalização, mesmo as mais modestas, simplesmente não existem.

Então por que um desfile, roupas de luxo, semanas de moda, o que isso pode significar na atual conjuntura? Os aspectos e elementos sem dúvida são muitos. Mas um deles talvez chame mais a atenção nesse momento, aquele que até certo ponto é menos atingido pelas restrições de circulação porque voa por caminhos próprios.

Ok, talvez pouca gente esteja comprando, talvez investir em novos produtos não seja mesmo a prioridade até mesmo pra clientes habituais e apaixonados por moda. Mas a imagem, a notícia, o interesse pelo que está sendo proposto, produzido, criado, isso parece ganhar importância.

Pode parecer paradoxal, mas esse conflito sempre fez parte da ideia de moda, pra além do que se compra ou se deixa de comprar. O fluxo criativo, as inspirações, as imagens, tudo isso parece alimentar algo de necessário. Talvez a promessa de um retorno, talvez uma certa ideia de continuidade, um chão, a segurança de algo familiar, conhecido. Talvez a esperança de uma ideia que se revele, de um sonho de futuro, uma novidade capaz de mudar as coisas pra melhor, um novo começo.

Não é interessante pensar em como os desfiles sugerem um movimento, um andar fora de casa nesse momento? Eles pareceram tantas vezes chatos, batidos, mas agora. Agora estar em um museu, um estúdio, uma loja, agora estar em qualquer lugar que nos lembre que existe a rua, a cidade, isso parece investido de um novo ânimo, uma nova graça.

Louvre, Versailles, estações de esqui, aviões, a maioria das grifes apostou em uma certa nostalgia de elite em relação ao fim da pandemia, que de fato regrediu em lugares onde há governos minimamente dignos e responsáveis. Mas mesmo isso soa fantasioso, como se o passado recente se transformasse em um conto de fadas, como se circular onde sempre circulamos de repente virasse uma espécie de sonho, de grande coisa a ser alcançada.

A moda, é claro, está acostumada com essas superlocações, palácios, destinos paradisíacos. Mas isso não valeria como inspiração pra nós cidadãos comuns e nossas pequenas diversões, aquelas que iam ajudando a costurar o tecido da vida? O café da esquina, o doce da padaria, um papo estendido na barraca de feira, sei lá.

Talvez por isso, ao menos pra mim, o desfile que melhor tenha falado dos nossos desejos tenha sido o da grife Chloé, nas ruas de Paris, em volta do delicioso, charmoso e histórico Café de Flore. Os paralelepípedos do chão de Saint Germain me pareceram feitos de substância mágica, andar na rua, numa rua livre, que coisa maravilhosa pra quem como eu de fato vem vivendo o isolamento. Não idêntica ao que foi, não indiferente ao que se passa, a toda tragédia, mas a rua como sobrevivente, como companheira dessa travessia que o mundo está fazendo, quem sabe, no rumo de uma sociedade menos cruel, que rejeite a desigualdade reconhecendo nela seu potencial virulento, mortífero.

Enquanto isso damos pivôs na sala, tristes, indignados, de moletom velho, quem sabe pelados. Mas sonhando, sonhando com a rua. Que venha o movimento.