Um ano depois da confirmação do primeiro caso de coronavírus no Brasil, a pandemia segue fora de controle e mal gerida por aqui, e ainda é difícil ter total dimensão das transformações pelas quais passamos, já que elas continuam acontecendo. Mas não é preciso muito para compreender que as prioridades, as maneiras de se comunicar, de consumir e se relacionar não são mais as mesmas.
A parcela da população que passou a trabalhar e estudar em casa viu reuniões virtuais virarem uma rotina – e o excesso do uso das ferramentas de videochamadas deu origem até a uma síndrome própria: a fadiga do Zoom, uma exaustão relacionada ao excesso de informações, à falta de privacidade e ao aumento das horas de trabalho, como define a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Além do cansaço da tela, entra no balaio a sensação de mesmice e de falta de controle do que se vê nas redes sociais, um oferecimento dos anúncios e dos algoritmos. Faz sentido, então, que a atenção agora esteja se voltando para uma mídia que represente um escape de tudo isso: o áudio.
Nesse cenário, os podcasts ganham ainda mais força no Brasil, hoje o segundo país que mais consome conteúdo por meio dessa mídia, atrás apenas dos EUA. Para ter uma ideia, segundo o Spotify, o número de podcasts hospedados na plataforma triplicou no fim de 2020 em comparação a 2019: são mais de 2,2 milhões de programas. Há muito o que dizer, e não falta quem queira ouvir.
Um dos maiores exemplos foi a chegada oficial do Clubhouse por aqui, se transformando, em fevereiro, na rede social da vez. No aplicativo, as salas de bate-papo por voz viraram um refúgio para quem quer se conectar sem precisar estar pronto para a câmera.
“Plataformas como Discord (um aplicativo de voz e de chats bastante popular entre os gamers) e Clubhouse estão oferecendo espaços online mais privados e exclusivos. Elas incorporam o imediatismo, a intimidade e a crueza do áudio em sua experiência central, tornando a voz a maneira como as pessoas se conectam novamente”, diz Luiza Loyola, especialista da empresa de pesquisa de tendências WGSN. “Embora o áudio não substitua o vídeo, ele oferece uma pausa para as pessoas que estão se cansando das constantes interações cara a cara.”
Lançado em abril do ano passado nos EUA, o app hoje tem mais de 6 milhões de usuários ativos por mês (a quantidade triplicou desde o início do ano, segundo Loyola), mesmo sendo exclusivo para usuários de iPhone, exigindo convite para se cadastrar e tendo sido criticado pela falta de acessibilidade. E o efeito Clubhouse é real: em dezembro, o Twitter começou a testar a plataforma Spaces, com salas de conversas via áudio e o Facebook também já está construindo uma ferramenta parecida.
Tudo ao mesmo tempo agora
Apesar de não serem novas, mídias baseadas em áudio têm trazido frescor para quem quer se comunicar sem se preocupar com a própria aparência ou consumir conteúdo sem precisar voltar toda sua atenção a ele. “O áudio traz certa praticidade de se poder fazer mil coisas ao mesmo tempo. As pessoas mandam áudio no WhatsApp porque estão andando, se dedicando a alguma outra coisa. Ouvem cada vez mais podcast porque estão dirigindo, lavando louça. O áudio tem uma vantagem muito grande em relação à live do Instagram, por exemplo, que saturou as pessoas no ano passado: ele é multitela, então, você pode ouvir enquanto manda um e-mail, navega no Instagram”, define o escritor e consultor André Carvalhal.
Foi o que o atraiu para o Clubhouse e fez com que se tornasse um usuário assíduo. Por lá, André participa de quatro salas fixas. Todas as quintas-feiras, às 17h20, comanda “Pra onde a moda está indo?”, sala em que reúne novos nomes e figuras já conhecidas da moda nacional para discutir o futuro da indústria, com temas como moda inclusiva para pessoas com deficiência e mercado plus size. “Tem sido uma experiência muito positiva, porque eu convido algumas pessoas, entram outras que eu não esperava e que trazem pontos de vista superimportantes. Acho que a plataforma tem um potencial muito grande de reunir pessoas e ideias as quais talvez a gente não tivesse acesso”, diz ele. Ele ainda aponta que umas das vantagens que enxerga é o fato de a rede não ser refém de algoritmos nem de relações preexistentes. “Esse potencial de conexão tem sido a maior vantagem para mim. Ela é muito importante também para ouvir, por mais que seja uma rede de áudio, e a gente fique com essa ideia de que vá lá só para falar.”
Carla Lemos, criadora do site Modices e podcaster no PRIMAS, é uma das speakers recorrentes da sala. Para ela, o ponto principal do bate-papo é ampliar as perspectivas. “As opiniões divergem e a gente vai expandindo a conversa, olhando para a moda por outros aspectos. É importante ter esse embate. A gente também tenta trazer uma perspectiva nacional para a conversa porque os debates ficavam muito centrados no Sudeste. Nessa sala, a gente tem participantes de Fortaleza, que é um polo superimportante para a produção da moda brasileira, da Bahia, do Sul.”
“O podcast te dá a abertura de desintoxicar o olhar, de pensar sobre as coisas de uma maneira um pouco mais livre, usando suas próprias construções imagéticas fantasiosas.” Olivia Merquior, do podcast High Low
Sem a imagem
Mas, afinal, como falar de moda quando não se tem a imagem? Segundo profissionais que já trabalham com o áudio desde antes do boom recente, a mídia pode fazer com que a moda ganhe outras camadas. E, ao contrário do que se pode imaginar, ela não perde força. “Quando você se desapega da imagem, o raciocínio flui mais fácil. É libertador falar o que você pensa sem se preocupar com o que as pessoas estão achando do seu visual, principalmente para quem trabalha com moda”, diz a jornalista Maria Rita Alonso. Há seis anos, ela apresenta o boletim A Moda e a Cidade, que vai ao ar duas vezes ao dia na Rádio Eldorado FM, sobre temas relacionados a estilo, comportamento e manifestações criativas das ruas. “A moda não é só sobre imagem. É sobre a ideia. É importante refletir sobre uma moda, e não só apresentá-la. O que tento fazer nos boletins é contar o que está por trás de uma nova estética, de um filme, falando do porquê aquilo pegou”, completa. Para ela, a palavra, por si só, pode, muitas vezes, ser mais poderosa do que uma imagem de moda, afinal, “uma imagem sempre surge da palavra”. “É a palavra que dá origem ao raciocínio, que aponta o caminho. É claro que dosar ambos é muito estimulante, mas a palavra tem muito poder.”
O poder de estimular a imaginação é um deles, como apontam Olivia Merquior e Isabel Junqueira, os nomes por trás do podcast High Low, que foi ao ar pela primeira vez em 2018. A dupla viu no áudio uma oportunidade de levar a moda a espaços pouco explorados. “Na ficção, você é levado a lugares menos preestabelecidos em termos de imagem. O autor vai descrevendo e você usa essas características para criar seus personagens. A imaginação vai fluindo. O podcast te dá essa mesma abertura, de desintoxicar o olhar, de pensar sobre as coisas de uma maneira um pouco mais livre, usando suas próprias construções imagéticas fantasiosas”, afirma Olivia.
Ao longo dos episódios, elas usam as experiências acumuladas em mais de 15 anos no mercado da moda para aprofundar os temas relacionados a esse universo, que vão da estética das telenovelas brasileiras a um papo sobre a relação da moda com o tempo, trocando referências que passam por filosofia, história, literatura e desfiles marcantes.
“No programa sobre a cor vermelha, logo no início, eu leio o trecho de um livro sobre a entrada de uma mulher prestes a ser decapitada porque foi tida como bruxa. Vou falando que ela está toda de preto, de veludo e, quando chega perto do lugar em que vai ser morta, ela tira a roupa e fica só com um corselete vermelho. Se tivesse uma imagem para ilustrar, talvez não fosse tão impactante quanto a gente falando sobre aquele momento”, relembra Olivia.