Provavelmente, alguma propaganda da SHEIN já apareceu em sua timeline. Se não, aguarde. Fundada em 2018, a varejista chinesa chamou atenção em 2020 ao dominar posts de Instagram, TikTok e todas as demais redes sociais existentes. Fez tanto barulho que, no ano passado, a empresa chegou a ser avaliada em 15,8 bilhões de dólares. O motivo para tanto sucesso é simples: imagens com informação de moda alinhada aos desejos mais latentes do momento e preços baixos. Bem baixos. Um vestido, por exemplo, chega a custar 20 reais e uma blusa, 10 reais. Ah, e entrega praticamente no mundo todo: são 200 países listados na lista de envio da grife.
O boom repentino lembra o ocorrido com a estadunidense Fashion Nova, em 2018. O modelo de negócio aqui é bastante similar: roupas em demanda máxima, posts patrocinados com influenciadores e preços lá embaixo. À época, foram poucas as repercussões sobre a qualidade de tal produto e mais ainda sobre as condições de trabalho de quem os fazia. Já com a concorrente chinesa, não faltam questionamentos em todos esses sentidos. O que traz à tona toda uma discussão (e falta de informação) sobre a exploração do trabalho, a pulverização da indústria têxtil e o mercado de vestuário asiático.
Maior continente do mundo em população e extensão territorial, a Ásia cresceu econômica e produtivamente de forma exponencial nas últimas décadas. Aqui, damos destaque a exportação, importação e produção de têxteis (tecidos, fios e filamentos) e produtos acabados (roupas e acessórios), mas há também um elevado índice de consumo interno nos 49 países do território.
China, Índia, Bangladesh, Mianmar, Indonésia, Vietnã, Camboja, Filipinas, Sri Lanka, Paquistão e Turquia concentram 70% de toda a classe trabalhadora da moda (maioria mulheres) e exportam 60% de todas as roupas no mundo, segundo
dados da Organização Internacional do Trabalho. Os maiores compradores são Estados Unidos, líderes das importações mundiais de vestuário, e Europa – a maioria das roupas consumidas por países da União Europeia (UE) vem de terceiros: 29% da China, 19% de Bangladesh e 11% da Turquia.
E o Brasil, hein?
É comum o equívoco de que o Brasil depende da Ásia ou ainda que consome muitos importados. A verdade é que o país é bastante autossuficiente na produção e no consumo de vestuário. “O volume anual de importações
(de vestuário no Brasil) é ao redor de 15%”, diz o diretor executivo da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), Edmundo Lima. Segundo ele, o volume de produtos acabados (roupas) vindo de fora também é baixo. “Importamos mais em fibra”, completa.
Isso acontece devido ao decrescimento industrial do país. “Em 25 anos, perdemos 25% do Produto Interno Bruto (PIB) para serviços, o que mostra como perdemos capacidade produtiva”, comenta Leonardo Marques, professor de sustentabilidade e supply chain do Coppead-UFRJ. Na moda, isso colaborou para a diminuição das indústrias de tecidos e, consequentemente, aumentou a importação de produtos que precisam de recursos industriais intensivos e capital elevado – como a manufatura têxtil. ”As etapas de confecção não requerem tanto valor agregado ou tanta tecnologia como a produção de tecidos e fios”, explica.
Além disso, as importações flutuam junto com o dólar. ”Se você voltar na história, na época da paridade do real, a importação explodiu e isso fez mal à cadeia produtiva brasileira, e alguns setores sofreram muito”, continua o professor. Para ele, a expansão do mercado asiático aumenta a competitividade e intensifica a busca por preços baixos. ”Isso implica, no Brasil, em precarização, na medida que, para sobreviver, se criam mais trabalhos temporários, sem carteira e sem direitos, com baixa qualidade e pagamento”, afirma Leonardo. No país, hoje, dos 8 milhões de trabalhadores da indústria têxtil e do vestuário, 6,5 milhões são informais. Essa classe, normalmente,
recebe menores salários e não conta com proteções sociais.
A questão do made in China
Há também um estigma de que roupas produzidas na China, ou qualquer lugar da Ásia, são feitas de formas análogas à escravidão ou têm péssima qualidade. É impossível fazer tais afirmações com certeza. Primeiro, porque, hoje em dia, “a China produz itens e produtos com a qualidade que você quiser. É o comprador quem decide”, diz Edmundo Lima. A afirmação converge com a experiência de Weider Silveiro, estilista e consultor de moda. “Criou-se essa falsa impressão de que tudo feito lá é ruim, e isso não é verdade”, diz ele.
Além da sua marca homônima, Weider trabalhou quase uma década no Brás e no Bom Retiro, bairros de São Paulo. Nesse tempo, já importou desde casacos de inverno até camisetas bordadas. “Tem coisas de qualidade duvidosa, mas tem coisas de qualidade incrível”, afirma. Em sua visão, o controle de qualidade das peças pode ser complicado se falta confiança no fornecedor e se os valores negociados forem baixos. “Às vezes, as pessoas consomem produtos caríssimos feitos na China sem nem saber”, revela.
Quanto aos tecidos, Raquel Davidowicz, designer e cofundadora da UMA, conta que importa da Ásia alguns de altíssima qualidade. Trata-se de um material com ”fios de nylon reciclado, como o Econyl, pois ainda não temos quem desenvolva um tecido sustentável assim aqui no Brasil”, explica. O que muda, segundo a estilista, é com qual companhia se escolhe fazer o negócio. ”Esse estigma da origem chinesa se deve às empresas que importam altíssimas quantidades pagando muito pouco para competir num mercado em que o preço importa mais do que a qualidade.”
Se não houvesse produtos de qualidade, era pouco provável que tantas marcas de luxo produzissem por lá. Da Índia, por exemplo, as maisons europeias importam muitos bordados. O país tem um histórico de excelência na técnica, o que garante a procura constante. Mas nem tudo é um amoroso chá das cinco inglês. Algumas grifes já foram flagradas explorando a mão de obra desses trabalhadores, conforme revelou
uma reportagem do The New York Times, em 2020.
Detalhe de blusa da Zara.Foto: Getty Images
É necessário compreender a cadeia produtiva da moda em sua complexidade total. O trabalho nessa indústria manifesta nuances de exploração, em maior ou menor grau, pois reproduz o sistema econômico no qual está inserido. Muitas das lógicas e condições às quais são submetidos costureiros e outros profissionais de moda são comuns a diferentes países, como Estados Unidos e Brasil. “É interessante essa questão da peça chinesa, que não sabemos como foi feita. Temos quase a mesma falta de transparência em território nacional”, avalia o professor Leonardo Marques, que tem pesquisas voltadas para essa seara.
Por que na Ásia?
A moda envolve a produção de fibras (naturais ou sintéticas), tecidos, processos de beneficiamento, aviamentos, confecção, distribuição e comércio. É dependente de mão de obra humana massiva: sem trabalhadores, esse sistema não existiria. A forma de produzir roupas já assumiu diversos modelos, mas, nas últimas décadas, o espaço tem sido ocupado por tecnologias e otimização industrial, e os formatos de trabalho e comércio mundial têm sofrido alterações.
Isso pode ser explicado pelas integrações sociais, econômicas e culturais que passaram a ocorrer, internacionalmente, da década de 1970 em diante. O fenômeno tem nome, chama-se globalização. Ele foi impulsionado por avanços tecnológicos em comunicação e transporte, em que transações foram facilitadas e até a percepção do espaço-tempo alterada.
Foi a partir daí que empresas de diversos setores começaram a deslocar suas fábricas para localidades com mão de obra mais barata e, não raro, menos impostos (o que quase sempre tem a ver com menos proteção social e direitos trabalhistas). “A costura ainda é uma etapa extremamente humanizada, então, a partir do momento em que a mão de obra em determinadas regiões do planeta foi se tornando mais cara, a alternativa foi migrar a produção para onde ela é mais barata”, diz Leonardo.
Outro aditivo na procura pela Ásia são seus núcleos fabris imensos. ”Uma célula produtiva brasileira tem em média 30 pessoas trabalhando. Na China e Índia são 300”, continua o professor. Nesses países, a produção em larga escala, aliada à capacidade de escoamento de produtos, é uma mina de ouro para as grandes marcas. O surgimento do fast-fashion é, em partes, justificado por esse cenário.
Fábrica da chinesa Alibaba.Foto: Qilai Shen/Bloomberg via Getty Images
A mais rentável delas, atualmente, é a Uniqlo, japonesa, mas outras gigantes europeias, como Zara e H&M, têm presença garantida no continente. A China
responde por 5% das receitas globais da H&M. A empresa sueca, junto à Next, também está entre os principais compradores do que é feito em Bangladesh, seguidos de C&A e Primark e Inditex (grupo do qual faz parte a Zara).
Mas tem trabalho escravo ou não?
Outro estigma que acompanha as roupas da Ásia é que elas são produzidas sob condições análogas à escravidão. É impossível afirmar devido à complexidade da cadeia produtiva de moda e particularidades de cada marca. Mão de obra, na verdade, equivale a pessoas vendendo sua força de trabalho. Infelizmente, existem registros de casos de abusos e exploração em cada etapa do processo – das plantações às confecções, do fast-fashion ao luxo, da Ásia ao Brasil. Os itens de moda
têm alto risco de serem feitos sob escravidao moderna – os trabalhadores fazem jornadas exaustivas por salários, às vezes, menores do que 100 dólares e têm pouca possibilidade de negociação e sindicalização.
Para reverter esse cenário, um dos primeiros passos seria que as marcas monitorassem sua cadeia produtiva. Contudo, como apresentado no
Índice de Transparência da Moda Global, elas têm se preocupado pouco com isso. O relatório, conduzido pela organização Fashion Revolution, analisa 250 grandes marcas de vestuário do globo sobre a disponibilidade de dados públicos acerca de suas redes de fornecimento. Em 2020, apenas 23% delas abriram suas contas e mostraram como estão acompanhando sua cadeia. Para esta matéria, as varejistas Zara, H&M e C&A foram contatadas para comentarem sobre suas operações com países asiáticos, mas todas declinaram ou não responderam até a data de fechamento.
Para Orsola de Castro, ”mover a produção para a Ásia criou ainda mais opacidade na cadeia de suprimentos”. Em 2013, logo após o desabamento do Rana Plaza, ela cofundou o movimento Fashion Revolution, onde é atual diretora criativa. Segundo ela, ”a indústria se expandiu seguindo as antigas rotas coloniais e com os princípios de exploração das pessoas e da natureza já estabelecidos”. Nazma Akter tem a mesma visão. Ela reside em Dhaka, Bangladesh, e trabalha desde os 11 anos na indústria do vestuário com sua mãe. Fundadora da
Awaj, uma organização que desde 2003 luta pelos direitos e pela dignidade das trabalhadoras bangladeshianas, ela diz, em entrevista à ELLE, que a globalização não foi benéfica para os trabalhadores, em especial os da Ásia.
Trabalhadora em Dhaka, Bangladesh.Foto: Ahmed Salahuddin/NurPhoto via Getty Images
Sem os países daquela região, a moda como hoje a conhecemos não existiria. O continente, na verdade, é composto de milhares de vidas que costuram, tecem e plantam todos os dias, fazendo as grandes marcas de moda (do luxo à fast-fashion) acumularem lucros que nem sempre se revertem em salários justos aos trabalhadores. ”Você cresce de um lado, mas a qualidade humana de vida diminui ou estagna. Não parece uma conta justa, pois criamos empregos, mas não temos condições dignas e seguras de trabalho”, diz Orsola. É neste momento que o discurso da ”globalização benéfica” é colocado em prova. O mercado pode crescer, mas a que custo? Nazma finaliza com sua visão: ”A Europa e a América vêm para nosso país fazer seu negócio, mas os humanos não podem ser baratos”.