Vulnerabilidade rende like

Expor vulnerabilidades nas redes sociais virou um mantra de quem quer gerar engajamento e conexão com seu público. Chegamos a um ponto em que elas também viraram performáticas?

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Ilustração: Dalton Albertin

Nos últimos 12 meses, você deve ter sido impactado por diversos posts falando sobre as consequências da pandemia na saúde mental, como estamos “definhando lentamente” em nossa casa, como o nosso corpo mudou durante o confinamento. Um cântico em uníssono: “Ninguém está bem. E tudo bem”. A psicoterapeuta organizacional Jennifer Musselman definiu esse movimento, para o site da revista I-D, como “pornô da vulnerabilidade”, uma espécie de vício em que você se expõe pelo prazer de receber a validação das outras pessoas. Uma evolução da “biscoitagem”, quando você posta uma foto dizendo que se sente gorda e que vai apagar a foto depois para receber comentários dizendo que está linda.

“Os consultórios de psicanálise estão tão cheios que até o Instagram virou um divã para dar conta de tanta gente querendo falar da própria vida sem espaço de escuta”, comenta Michel Alcoforado, antropólogo e sócio fundador do Grupo Consumoteca. O Instagram, um espaço em que tudo era idealizado, se tornou palco dos defeitos de seus usuários. “Ficou na moda porque nos cansamos da perfeição. Não dá para ser perfeito em um mundo cagado como este.”

Segundo o antropólogo, curtir a vulnerabilidade não é algo novo: isso é tendência há pelo menos dez anos. Em 2010, a pesquisadora e escritora Brené Brown se abriu durante seu primeiro TEDx Talk, que tratava exatamente sobre o tema. Ela falou sobre como estava com medo daquela ser a pior palestra já feita e, no fim das contas, acabou virando um sucesso, uma das mais assistidas da história do evento. “Usar a vulnerabilidade não é a mesma coisa do que ser vulnerável. É o oposto: é uma armadura.” Quase dá para ouvir o suspiro de alívio de quem estava na plateia. Com essa frase, ela virou um guru da área corporativa, composta de profissionais à beira de um colapso diante de um sistema que pedia que eles fossem super-humanos da produtividade.

Em 2015, foi a vez de a influenciadora Esse O’Neil se abrir. A australiana, que até a data levava uma vida aparentemente perfeita nas suas redes sociais, estava no Instagram desde os 14 anos e mostrava seu corpo magro e cabelos loiros em looks glamourosos e também de biquíni. Até que, com 19 anos, ela publicou um vídeo chorando, dizendo: “Nada disto é real”. Apesar das fotos em trajes de banho, ela tinha insegurança com o próprio corpo. Por mais que usasse as últimas tendências, ela estava falida. Junto com a revelação, ela mudou as legendas de seus posts mostrando a realidade por trás de cada uma das imagens aspiracionais postadas. O movimento ganhou os veículos de comunicação e viralizou. Foi a primeira vez que uma influenciadora mostrou que nem tudo na sua vida saiu de um painel do Pinterest.

A nossa sede por expor nossas fraquezas e querer saber das fraquezas dos outros ganhou um novo fôlego e foi acelerada pela pandemia, quando criadores de conteúdo não podiam mais ostentar viagens e acesso a festas e restaurantes exclusivos. “Esse comportamento começou a gerar cancelamento. O único caminho que eles encontraram foi humanizar por completo suas marcas pessoais. Antes, eles construíam a ideia de que estavam em outra casta. Agora, precisam fazer o caminho inverso”, afirma Alcoforado.

E a verdade é que a vulnerabilidade rende engajamento. Com mais de 300 mil seguidores no Instagram, Manoela Meinke começou a perceber uma mudança em sua pele quando parou de tomar pílula anticoncepcional: o rosto, antes limpinho, agora sofria de acne adulta. Como usa a rede social há dez anos como uma espécie de diário visual, ela entendeu que era importante mostrar esse lado de sua vida também. “Era uma coisa importante para mim e queria que as pessoas problematizassem mais isso, que nem todo mundo tem uma pele perfeita”, diz em entrevista por telefone. A criadora de conteúdo, que fala muito sobre beleza, moda e estilo de vida em geral, percebeu que seus seguidores ficaram felizes por ela expor o lado menos glamouroso de sua vida. “Rolou uma identificação. As pessoas se sentem aliviadas em ver a realidade, a de que quem elas admiram também tem suas vulnerabilidades.”

Mesmo eu, que estou longe de ter a mesma audiência que Manoela, percebo o impacto que um post mais “vida real” tem. Nesse ano de pandemia, eu engordei muito. Não sei quantos quilos, porque já não me peso, mas perdi todas as calças que tinha até então. Em uma vontade de externalizar minhas noias sobre o assunto, fiz alguns posts no meu Instagram. Com 1,7 mil seguidores na rede social, o meu engajamento é muito baixo. Porém, quando publiquei sobre o ganho de peso, as estrias que apareceram e o baque na autoestima, vi o número de curtidas bombar, assim como os de comentários e interações. Como tenho a conta corporativa, tive acesso aos relatórios de engajamento: dos nove posts mais populares do último ano, quatro deles eram sobre minhas vulnerabilidades. As duas fotos mais curtidas nos últimos 12 meses foram as que eu mostrava meu novo corpo e falava sobre ter engordado.

Especialistas do Journal of Personality and Social Psychology (Jornal da Personalidade e Psicologia Social) estão dizendo que as pessoas andam mais condicionadas a mostrar suas vulnerabilidades, e esperando ver o mesmo nos outros, e que as que mostram suas fraquezas são mais reconhecidas e valorizadas por isso. O cenário foi apelidado de “the beautiful mess effect” (“efeito da bela bagunça”): outras pessoas veem nossos “defeitos” mais positivamente do que nós mesmos. Assim, compartilhar emoções, admitir erros e confessar corações partidos cria uma intimidade entre todos.

“Temas que antes eram tratados como sensíveis ou tabus têm sido cada vez mais explorados e abordados por marcas e influenciadores – e o público naturalmente reage ao ver sua realidade, suas dúvidas ali expostas”, fala Alexandra Avelar, gerente regional da plataforma Emplifi no Brasil. Essa mudança no tom de voz tem a ver com a imagem que Instagram, TikTok e Facebook ganharam ao mostrar uma versão tóxica da realidade. Segundo o Indicador de Confiança Digital (ICD), levantamento da Fundação Getúlio Vargas (FGV), para 41% dos jovens brasileiros as redes sociais causam sintomas como tristeza, ansiedade e depressão.

“As redes sociais se desenvolvem na lógica de construção de avatares. Mesmo aqueles que estão abrindo suas vulnerabilidades estão fazendo pela construção da marca social, da própria identidade ali.” Michel Alcoforado, antropólogo e sócio fundador do Grupo Consumoteca

“As redes sociais são muito criticadas por reforçar um padrão idealizado, estimular o uso de filtros. Mas ela também vem sendo um canal importante na valorização e discussão da autoestima, da aceitação e da diversidade”, fala a executiva. “Quanto mais o público se sente representado e respeitado tal como é, mais se abre espaço para uma discussão construtiva sobre um tema tão importante.”

Alcoforado é mais cético. “Teoricamente é ótimo, porque as pessoas estão podendo mostrar quem elas são. Mas o problema é que as redes sociais se desenvolvem na lógica de construção de avatares. Mesmo aqueles que estão abrindo suas vulnerabilidades estão fazendo pela construção da marca social, da própria identidade ali”, diz o antropólogo. “Não sei se é bom ou ruim, mas faz parte do jogo.”

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Ilustração: Dalton Albertin

O que dá mais força ao argumento de Michel é o fato de que há quem já tenha percebido que expor suas fraquezas pode render dinheiro. Em 2019, Kendall Jenner contou em suas redes sociais que tinha uma grande revelação a fazer. Após especulação da mídia e curiosidade do público, ela declarou que enfrentava inseguranças por causa de sua pele acneica. A jovem, a modelo mais bem paga do mundo, com rendimento de 22,5 milhões por ano, mostrou que era gente como a gente e que também sofria com espinhas. Parecia um ato positivo para desmistificar a ideia da pele perfeita – que, no mundo onde a rotina de skincare está bombando, é basicamente a nova obrigação de ser magra – não fosse o fato de que a revelação foi feita para acompanhar uma série de postagens divulgando uma linha de produtos para a pele. “Estou agradecida à Proactiv não só por cuidar da minha pele, mas também por entender o impacto que eu quero causar ao compartilhar minha história de uma maneira tão profunda e significativa”, falou Kendall para o Huffington Post na época.

A integrante do clã Kardashian está longe de ser a única. Manoela Meinke também percebe que colegas de profissão podem estar surfando na mesma onda. “Dá para ver que, em algumas situações, a pessoa falou sobre um assunto pela primeira vez como desabafo, viu que deu certo e, do nada, começou a publicar apenas sobre isso, pensando na consequência, no que vai ganhar, não sobre o ensinamento em si”, diz a criadora de conteúdo. “Distorce um discurso que é tão positivo para a internet.”

“Em algumas situações, a pessoa falou sobre um assunto pela primeira vez como desabafo, viu que deu certo e, começou a publicar apenas sobre isso, pensando no que vai ganhar, não no ensinamento em si.” Manoela Meinke, criadora de conteúdo

Por mais que expor demais seus problemas possa soar forçado, por outro lado, não falar e continuar a vida como ela era antes da pandemia pode ser visto como alienação. Nas redes sociais, as pessoas, principalmente as criadoras de conteúdo, vivem o dilema da autenticidade. Um estudo feito pela Universidade Cornell, nos Estados Unidos, percebeu que as mulheres que trabalham como influenciadoras e compartilham seus pensamentos profundos temem o criticismo de todos os lados. Se elas fazem uma curadoria minuciosa do que vai para o ar e mostram um estilo de vida idealizado, aspiracional, elas também sofrem com o escrutínio de seus seguidores. “Então, uma mulher nas redes sociais, principalmente se ela tem muitos seguidores, nunca ganha essa batalha”, falou Brooke Erin Duffy, professora-assistente de comunicação e coautora do estudo juntamente com Emily Hund, da Universidade da Pensilvânia.

Mesmo sendo uma faca de dois gumes, é improvável que a vulnerabilidade sature nos próximos anos, segundo Alexandra Avelar, da Emplifi. “Pelo contrário, acredito que há muito a ser abordado, justamente por ser uma transformação muito profunda e necessária na sociedade como um todo.” De acordo com o antropólogo Alcoforado, enquanto estivermos em uma pandemia e vivendo uma situação de calamidade pública, mostrar ser imperfeito vai continuar sendo uma vantagem.

Manoela Meinke diz que postar suas imagens sem edição, com as manchinhas de acne, são um exercício para si também: “Ficava pensando: por que deixar de publicar aquela foto sendo que eu me achei bonita nela?”

O importante, no entanto, é perceber que se expor na internet pode trazer conforto para si e para seus seguidores, mas não trata as nossas questões. “O grande problema é que o Instagram é mais uma dimensão nossa. E, como ela é pública, as pessoas acreditam que ela é a única. E isso é duro. Quando você conta que teve uma crise de ansiedade nos stories, você se torna aquela crise”, aponta Michel. No fim, ele nos lembra que “os problemas com a individualidade se tratam no consultório, e não nas redes sociais”.