Era uma casa muito engraçada

Uma cor inesperada ali, uma forma lúdica lá, umas pitadas espalhadas de nonsense: o bom humor ganha o design de interiores, espanta a mesmice e leva um pouco da tão necessária leveza ao dia a dia.

Se tem um desejo coletivo em alta hoje é o desejo por leveza. Isolados e trancafiados, na medida do possível, estamos há tempos querendo luz, calor, sol, cor, diversão! E, na impossibilidade de buscar tudo isso lá fora, a ideia é trazer para perto, para dentro de casa. Não à toa, o design vem bebendo nessa fonte há algum tempo – um movimento que acabou ganhando força com as longas temporadas de quarentena.

A convivência intensa com nossas próprias casas (sim, aquele lugar onde quase nunca parávamos) mexeu com todo mundo. Tem gente que pendurou samambaias pela sala, pintou as paredes de amarelo ou transformou uma penteadeira vintage num bar moderninho. O fato é que essa mexida geral veio com um componente a mais: a irreverência. “Esse espírito pode ser traduzido de diversas formas, mas o ponto de partida hoje é o estilo pessoal. Além de levar alegria para os espaços de convivência, as pessoas querem personalizar a casa com objetos que traduzam sua autoexpressão”, diz Liliah Angelini, especialista em tendências do portal WGSN.

Esse toque fun pode estar presente em cores de impacto, em uma linguagem lúdica, formas sinuosas, texturas que estimulam o toque (ai, que saudade de um abraço!) ou simplesmente em um desenho que arranque um sorriso – um combo que tem sido trabalhado com carinho pelos estúdios de design daqui e do exterior. Outro aspecto, segundo Liliah, é a aposta em uma decoração flutuante, que quebre a concepção de que existe um lugar determinado para cada coisa. “Essa leveza também está em ressignificar o espaço que os objetos ocupam, tornando tudo mais fluido, menos engessado.” Por que livros precisam estar só no escritório ou estantes encostadas em paredes?

A ideia está em sintonia com a onda Cluttercore, que virou febre no Instagram e no TikTok, com cliques e vídeos de casas recheadas de arte, de memórias, de achados, estampas, compondo um maximalismo que não tem nada a ver com acumulação, mas sim com certa desordem editada, uma nova proposta estética. Nada mais do que uma celebração do morar. O ceramista e designer Jonathan Adler é referência quando o assunto são peças fora do padrão, com detalhes que divertem ou colorem um ambiente. “Para mim, minimalismo é melancólico e maximalismo, alegria pura. As pessoas podem achar que sou muito pós-Marie Kondo, mas adoro quando ela diz que você só deve se cercar de coisas que trazem felicidade. Acontece que existem muitas coisas que despertam esse sentimento em mim. Afinal, a felicidade pode estar em uma cadeira pink. Por que não?”, brinca Adler.

 

História inspirada

Apesar de ter contornos superatuais, o uso do humor no dia a dia, dentro de casa, tem história. Um dos grandes precursores dessa brincadeira foi o britânico Christopher Dresser. Considerado o primeiro designer industrial, ele criou, no final do século 19, itens dignos de estarem na mesa de chá do Chapeleiro Maluco. Só para citar dois incríveis: uma chaleira que parece uma nave espacial e um açucareiro com perninhas, que décadas depois virou referência para a Alessi. A marca italiana o reeditou em plástico e tons vibrantes nos anos 1990. A inspiração em Dresser abriu espaço para que a grife lançasse uma série de utilitários nessa linha elegantemente divertida. Alguns deles se tornaram clássicos, como o espremedor Juicy Salif, assinado por Philippe Starck, e o saca-rolhas Anna G, de Alessandro Mendini, um dos grandes do design italiano (é dele a celebrada poltrona Proust para a Cappellini). São peças que fazem rir, despertam desejo e mudam nossa relação com a cozinha.

Mendini, aliás, fazia parte do grupo Memphis Milano, um coletivo encabeçado pelo austríaco Ettore Sottsass, que chacoalhou as bases comportadas do design italiano a partir de 1981, numa explosão de humor que é lembrada até hoje. A primeira coleção da trupe, com 55 peças, misturava materiais mundanos, como plástico, cores fortes e formas geométricas, tudo embalado com uma pegada que se equilibrava entre o kitsch e o surpreendente. A estante Carlton, de Sottsass, e o sofá Big Sur, de Peter Shire, são apenas dois dos muitos ícones que marcaram a década de 1980 – conhecida pelos exageros na moda, no consumo e, a partir daquele momento, também no décor.

Esses dois planetas, aliás, se encontraram quando a Dior se inspirou no Memphis para colocar sua coleção de alta-costura de outono/inverno 2011-2012 na passarela. Este ano, quando o bureau de design completou 40 anos, o diretor criativo da Saint Laurent, Anthony Vaccarello, criou uma coleção cápsula e uma exposição de objetos e acessórios celebrando sua estética nas lojas Rive Droite em Paris e em Los Angeles.

 

Pop, pop, pop

Os italianos têm estrada na arte da provocação visual. A Seletti, que nasceu em 1964, na região de Mântua, viu as vendas se multiplicarem durante a pandemia. “As pessoas entenderam como é importante se sentir bem na própria casa. Nossos produtos são projetados com a dose certa de diversão”, diz Stefano Seletti. “Nada que a Seletti faz pode ser feito sem humor. No final dos anos 1980, importávamos mercadorias da China. Então, decidimos produzir nossa linha com design próprio, enfrentando o design industrial clássico. Encontramos na ironia e no humor não convencional a chave do sucesso.” Entre os best-sellers estão as famosas luminárias de ratinhos, macacos ou elefantes, desenhadas por Marcantonio, e as poltronas e almofadas que beiram o deboche, com frases atrevidas, palavrões e muitas estampas, desenvolvidas em colaboração com a Toilet Paper. “Nunca pensei em como nossos objetos poderiam mudar a decoração. O que eu gosto é que eles provocam conversas interessantes”, diz Stefano.

“Nunca pensei em como nossos objetos poderiam mudar a decoração. O que eu gosto é que eles provocam conversas interessantes.” Stefano Seletti

A italiana Gufram, de Turim, tem o pop tatuado no coração. Investe no que chama de design radical, com “produtos subversivos, voluntariamente projetados como antidesign”. Quer ver? A poltrona MAgriTTa, desenhada por Sebastián Malta, une uma maçã e uma cartola, numa referência ao artista surrealista belga René Magritte, enquanto a Roxanne é cria do amor do designer Michael Young pela música de Sting. Já o sofá Bocca Unlimited, do Studio 65, ganhou uma edição comemorativa, no seu aniversário de 50 anos, em 2020. Seus lábios enormes, disponíveis em 25 cores, foram inspirados na obra “Rosto de Mae West”, em que a boca da atriz era o sofá da sala surrealista pintada por Salvador Dalí.

Lúdicos e irreverentes

O fato é que o humor vem se estabelecendo nos últimos anos como uma marca forte do design no mundo inteiro, mas em especial na Europa. Basta olhar os grandes nomes, que se destacam nos maiores eventos de design, como o ISaloni e a Maison Objet. Entre os incensados, está o holandês Marcel Wanders, com sua pegada às vezes romântica, às vezes debochada, mas sempre inventiva e impactante. A nova edição das cadeiras Monster e a versão 2021 do One Minute Mickey & Minnie são apenas duas de suas muitas criações que conversam com essa veia lúdica. Mas ela também aparece nos designers que Wanders chama para colaborar com sua marca, a Moooi. O tapete Ripples, de Andrés Reisinger, é o lançamento mais fresquinho. Em rosa-flamingo, ele reproduz as ondas causadas pela queda de uma gota na água.

Trabalhando na tênue divisória entre arte e design, o espanhol Jaime Hayon, premiado pela Wallpaper Magazine como um dos 100 criadores mais influentes da década, também tem sua trajetória marcada por peças em que o humor é o ponto de convergência, em especial os objetos que mesclam rostos humanos e animais em representações insondáveis, como na coleção Baile, que acaba de ser lançada pela Bosa e reproduz um criativo baile de máscaras, ou a Faunacrystopolis, com seis animais em cristal colorido, para a Baccarat. Esse humor com figuras também está na trajetória do quarteto Haas Brothers, que vem compondo coleções com bichos híbridos, monstrinhos que mexem com o imaginário. O resultado é intrigante e carrega um certo sabor de infância. Depois da coleção Afreaks, toda feita de miçangas coloridas, eles acabam de lançar Snail Earnhardt Jr. e Snailor Moon, dois pernaltas de madeira e pelúcia, que estavam em exposição até o início de julho no Scad Museum, em Savannah, Geórgia. Uma dupla que dá vontade de levar para casa correndo.

Girls wanna have fun

Nessa corrida pelo pote da alegria no final do arco-íris, uma notícia das mais bacanas é a ala feminina poderosa que surgiu no design europeu e vem desenvolvendo com frequência um trabalho sutilmente bem-humorado. O grande destaque é Elena Salmistraro, que já fechou colaborações com Apple, Disney e Nike e é requisitadíssima por quase todas as grandes empresas internacionais de décor. Suas criações nunca passam despercebidas. O armário Grifo, para a Altreforme, e o novo gabinete Chhau, para a indiana Scarlet Splendour, são dois ótimos exemplos. O primeiro é inspirado em uma história de amor antiga, entre um guerreiro e uma princesa, na Sicília. O segundo, em dançarinos de rituais indianos. “Gostaria que meus objetos sempre fossem capazes de produzir uma emoção. Muitas vezes tento descrever o sorriso e a alegria, porque são dois aspectos fundamentais na vida de qualquer pessoa”, diz Elena, que também criou, junto com a WWF, o panda Bernardo, de olho nas espécies que correm risco de extinção.

Esse aspecto lúdico representa também o trabalho da portuguesa Joana Vasconcelos, que assinou uma coleção de tapetes e sofás em comemoração aos 60 anos da Roche Bobois. Batizada de Bombom, a linha é ultracolorida, feita sob medida para composições mil. “Quando desenhei a coleção, imaginei as pessoas brincando com ela, aproveitando a vida, sentindo seu sabor”, diz Joana. E falando em sabor… Os pufes de Sabine Marcelis para a Hem mais parecem donuts gigantes. Assim como as Pillow Creatures, de Alex Proba, eles despertam o desejo por aconchego que vive dentro de todos nós. Dão vontade de se jogar, de agarrar, de não largar mais.

 

Alegria à brasileira

Pelas nossas bandas, quando o assunto é bom humor, dois estúdios se destacam. O Mula Preta, que leva no nome a música de Luiz Gonzaga e referências do imaginário nordestino, foi fundado em Natal pela dupla André Gurgel e Felipe Bezerra, que trabalham tanto peças de mobiliário contemporâneo com pegada clean como objetos que trazem na alma a graça do sertão. É deles o cabideiro Cacto e a poltrona Centopeia, que viraram hits. “O bom humor e a irreverência, em contraponto com o sofisticado e moderno, são traços do nosso estúdio. Isso cria uma identificação instantânea. Produtos com personalidade, com humor, contam uma história. Nesse momento em que o olhar para dentro de casa está muito apurado, peças que conversam, alegram e preenchem positivamente o ambiente são fundamentais”, diz André.

O Nada Se Leva, de André Bastos e Guilherme Leite Ribeiro, já nasceu com um pé no nonsense. O nome vem do filme Da vida nada se leva, de Frank Capra, cheio de detalhes absurdos no roteiro. “Queríamos criar um objeto e nos divertirmos com ele. Um banco não precisa ser só um banco. A ideia é ressignificar e contar uma história, que muitas vezes é engraçada. Foi esse desejo que nos levou a abrir o estúdio”, conta André, que vem do mercado de moda, enquanto Guilherme tinha uma trajetória no design gráfico. Juntos, eles misturam referências desde 2005, criando peças que encantam pelas formas e cores inusitadas. “As pessoas estão vivendo mais em suas casas e perceberam que precisam refletir sobre quem são. Usar a cor é uma forma de expandir a personalidade”, completa.

“Um banco não precisa ser só um banco. A ideia é ressignificar e contar uma história, que muitas vezes é engraçada.” André Bastos, do estúdio Nada se leva

Cor e surpresa são duas coisas que não faltam nas produções do Cultivado em Casa. Procurar novas perspectivas é desde sempre a marca do estúdio, que já fez armário com buchas e cadeira com petecas. Sua coleção de mobiliário D33 é toda desenvolvida com espuma mergulhada em tinta colorida. São mesinhas, estantes e até luminárias roxas, amarelas, verdes. O segredo do humor também está na cor para o Studio Massa, e sua linda cadeira Ovo, assinada por Renata Távora, inspirada na “desproporção” da lendária Peacock, e para o arquiteto Rodrigo Ohtake, que levou para as paredes suas tapeçarias em tons vivos, tramadas com fio reciclado de redes de pesca, para a Punto e Filo. “O lúdico é fundamental no nosso dia a dia. Tenho sentido tudo muito sério. E a tapeçaria pode deixar os ambientes mais singulares e divertidos”, diz.

Num contexto de incertezas, um pouco de afeto, um pouco de cor e um pouco de alegria são a receita infalível para o otimismo. “Um objeto que nos faz sorrir, que não nos deixa solitários, que nos dá forças, será nosso amigo de vida por muito mais tempo do que um objeto sem alma”, diz Elena Salmistraro. “Humor, ludicidade e simplicidade são as únicas formas de comunicação com todos. É importante aproveitá-los ao máximo para imaginar um mundo melhor”. Justamente do que mais precisamos.