O ano é 1978. Quem nasceu nos anos 2000 nem acredita que esse tempo existiu. Mas, sim, eu estava lá! Eu, Beto Silva e Marcelo Madureira. Estudávamos na mesma turma da faculdade de Engenharia da UFRJ. Ao mesmo tempo, participávamos do movimento estudantil. Vivíamos os capítulos finais da ditadura militar. No ano seguinte, em 1979, o general Figueiredo deu início ao último governo da era que havia começado em 1964. O movimento estudantil, proibido em 1968, reabria suas portas e nós fazíamos parte dessa virada, atuando no centro acadêmico da nossa faculdade. Como o pessoal da política estudantil era muito sério e sisudo, resolvemos criar um jornal pra zoar com eles, o que fez sucesso entre os estudantes. Fomos ampliando nossa atuação para outros campi da universidade, sempre muito bem recebidos pelos estudantes. A Casseta popular era irreverente e iconoclasta. Em outras palavras, chutávamos o pau da barraca, qualquer barraca.
Em 1980, convidamos Bussunda e Claudio Manoel para fazer parte do jornal. A pauta foi ampliada, falávamos agora de política e dos costumes da época. Era uma publicação amadora, vendida de mão em mão nas praias, nos bares, nas aglomerações estudantis, como o Festival de Inverno de Ouro Preto. Tínhamos total liberdade para criar, o público estava com saudades de ver alguém zoando os poderosos.
Em 1984, surge o jornal Planeta diário, já numa estrutura profissionalizada, vendido nas bancas de todo o país. Procuramos a mesma editora e passamos a publicar a revista Casseta popular. A gente tinha noção de que era uma publicação transgressora, e os leitores gostavam da nossa irresponsabilidade, que mirava tanto o governo quanto os tabus da sociedade. Um deles era o sexo. Não se falava abertamente. Quem vive nos tempos do Xvídeos não pode imaginar que a revista Playboy sequer mostrava nu frontal. Peças de teatro lotavam se corresse o boato de que havia um topless em cena.
A ditadura acabou e a ânsia para desfrutar de uma liberdade ampla, geral e irrestrita cresceu. O Planeta diário e a Casseta popular pintavam e bordavam. Numa fase em que o primeiro presidente civil viajava muito, o Planeta diário chocou (e vendeu muito) ao estampar na capa a manchete: “Depois da China, Sarney irá à merda!” A Casseta fez capa mostrando o presidente Collor com a bunda de fora, tivemos uma edição rejeitada pelos jornaleiros por trazer na capa a figura de um Cristo gay (muito, muito antes dos imbróglios do Porta dos Fundos).
Com esse espírito, chegamos à TV. Em 1988, fomos contratados como redatores da TV Pirata, junto com muita gente que explodia no humor. Glauco, Laerte, vindos dos quadrinhos. Miguel Falabella, Patricya Travassos e Pedro Cardoso chegaram do teatro besteirol, junto com Mauro Rasi e Vicente Pereira. Luis Fernando Veríssimo era o decano da redação, comandada por Claudio Paiva. Na frente das câmeras, o diretor Guel Arraes reuniu um time outsider dos programas humorísticos – Claudia Raia, Ney Latorraca, Marco Nanini, Debora Bloch, Regina Casé e Luiz Fernando Guimarães, entre outros. A ideia era criar um programa diferente de todos que vinham sendo feitos até então. Abolimos a claque, os quadros fixos, desprezamos os bordões dos personagens e, sobretudo, testamos os limites do humor.
Dois anos depois, com o fim do programa, apresentamos o projeto do Casseta & Planeta, Urgente! Estreamos como “atores” dentro do programa Doris para maiores. Um ano mais tarde, tínhamos nosso próprio programa. Durante cinco anos, o Casseta foi uma atração mensal. Depois, tornou-se semanal, sempre às terças. O programa esteve no ar desde 1992 até 2010. Dois anos depois, fizemos nossas últimas temporadas em TV aberta, com o programa Casseta & Planeta vai fundo, num formato diferente, com edições temáticas. Total: 20 anos no ar.
Muita coisa mudou de lá pra cá. A tecnologia evoluiu barbaramente. No começo da nossa carreira, escrevíamos nossos textos à mão, uma datilógrafa passava a limpo e então enviávamos para a Globo. Não existia celular, falava-se de um telefone fixo em casa, nos escritórios ou usava-se um telefone público na rua, o chamado “orelhão”. Por aí, se pode deduzir como a comunicação com o público era precária, unilateral. Produzíamos o conteúdo e a emissora se encarregava de entregá-lo nos lares. O público não tinha como emitir suas opiniões, salvo por cartas, que raramente chegavam a nós.
Nossa proposta era rir de tudo e de todos. Éramos uma metralhadora giratória apontada para os políticos de qualquer linha ideológica, com ênfase naqueles que estavam no poder. Zoamos Collor, Itamar, FHC, Lula, independente das afinidades de cada um do grupo. E o público tinha a compreensão de que o humor não dependia da opinião da gente sobre o político – ele estava na chuva, portanto, ia se molhar. Não havia o conceito do “politicamente correto” e não saíamos de casa com o intuito de fazer uma piada politicamente incorreta. Nem estávamos defendendo a bandeira A ou B. E mentíamos, implicávamos com valores caros à sociedade, sempre com a intenção de fazer rir. O conceito de bullying também não estava estabelecido, dançávamos conforme a moda da época, brincando com mulheres, com os grupos minoritários, com negros, índios, gays, mas também com os machistas. Nossa ideia era: onde havia espaço pra fazer uma piada, a gente estava lá. Não havia a busca dos “limites do humor”, estávamos cansados dos limites impostos pela ditadura. A sociedade queria expandir as fronteiras da liberdade.
Evidente que os tempos são outros. Os recursos se multiplicaram, as redes sociais chegaram e deram voz a um público que até então consumia passivamente o que as grandes mídias produziam. Ninguém precisava mais estar num canal de TV ou estação de rádio para atingir uma grande audiência. O consumidor ganhou voz e passou a cornetar o que não lhe agradava. Você não precisava mais ser um colunista de jornal para emitir sua opinião. E poderia se dirigir diretamente ao artista para elogiá-lo ou criticá-lo. A crítica ganhou mais destaque que os elogios. Por um mecanismo do ser humano a ser estudado, quem criticasse obtinha mais resposta do que quem elogiasse. As opiniões de um pequeno fã ou de um renomado jornalista passaram a ter o mesmo peso. Até que chegamos à era do cancelamento.
O público percebeu sua força e passou a censurar o que não gostava, amordaçar aquele que não queria ouvir. As ferramentas de democratização se tornaram também um meio de impedir que pontos de vista contrários se manifestassem. Nem tudo é negativo. Evidente que piadas que expunham comportamentos retrógrados foram postas para escanteio. Poucos são os que têm saudades do tempo em que se podia ser machista, racista, homofóbico livremente. A piada perde a graça, o humorista deixa de usá-la. Mas sem espaço para discussões, basta taxá-la disso ou daquilo e não se fala mais no assunto. Politicamente, o fato de você tirar sarro de determinado governante ou deputado te joga no colo do grupo antagônico. E nem sempre é isso. Precisamos de liberdade para criar, para se informar e para se divertir.
Acredito que estamos vivendo uma polarização excessiva por causa de ferramentas das quais ainda não aprendemos a tirar o devido proveito. Mas acho que, a longo prazo, as coisas devem se acertar. Quando isso ocorrer, vamos relaxar, entender o que é uma piada de mau gosto e o que é uma opinião reprovável. E aí, quem sabe, chegaremos ao fim dessa época em que os humoristas são obrigados a falar somente a verdade e nada mais que a verdade. E os políticos podem mentir à vontade.
Foto: Marcello Paranhos/Divulgação
Helio de La Peña, 62 anos, é casado e tem três filhos. É formado em engenharia pela UFRJ e um dos criadores do programa Casseta & Planeta, Urgente!, exibido entre 1992 a 2010 pela Rede Globo, em que também atuou e foi roteirista. É autor de quatro livros, entre eles Vai na bola, Glanderson, adaptado por Jeferson De no filme Correndo atrás (2021). Como ator, atuou na novela Totalmente demais (2015). É responsável pelo acervo e colabora com as atividades da biblioteca comunitária Helio de La Peña, no Complexo do Caju. É nadador de águas abertas e, o mais importante, botafoguense.