O street style está de volta às ruas

Realidade é a tendência mais quente em perfis online que fazem sucesso com flashes da moda (da vida real) pós-isolamento social.

A pandemia do coronavírus não acabou com o street style, mas foi por pouco. As restrições físicas em prol da redução do contágio impactaram diretamente a atividade. Desde março de 2020, as semanas de moda, principais polos de produção desse tipo de conteúdo, acontecem de maneira quase 100% digital. Ou seja, sem convidados e fashionistas pelas ruas para exibirem seus looks e serem registrados.

A coisa começou a mudar entre junho e julho deste ano com as apresentações masculinas em Milão e Paris e os desfiles de alta-costura. Com a vacinação já bem encaminhada em tais cidades e a redução de novas infecções, um número reduzido de convidados foi permitido para aquelas marcas que escolheram o modelo presencial. Neste mês de setembro, as semanas de moda de Nova York, Londres, Milão e Paris pretendem retomar quase que por completo o formato pré-covid, ainda que com algumas adaptações, como a exigência de comprovante de vacinação.

Com isso, voltam os convidados e, junto deles, o burburinho de flashes voltados às suas produções. Em Copenhagen, que realizou sua própria fashion week em agosto, o alvoroço no entra e sai das salas de desfiles foi celebrado com otimismo, como se pontuasse a reconquista de uma vida fashion suspensa.

Acontece que o mundo mudou, as pessoas também e a relação com as roupas mais ainda. Assim, o street style tal qual conhecíamos nos últimos anos, ainda faz sentido?

 

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Foto: Getty Images

Do começo…

Antes de tentar responder a pergunta, vale voltar um pouco no tempo. Quer dizer, um pouco muito. É que os registros de street style não nasceram com os cliques de Scott Schuman, do blog The Sartorialist, ou nos closes de Tommy Ton para seu Jak&Jil, ambos de 2005. Foi a geração desses fotógrafos que deu cara nova e online ao hábito quase tão antigo quanto a própria arte da fotografia.

Se a técnica nasceu voltada às paisagens, no final da década de 1830, um dos primeiros retratos da história revelava também o look de sua protagonista: Dorothy Catherine Draper, irmã de John William Draper, autor da imagem. Com o avanço técnico, as câmeras ganharam as ruas e, ainda no final do século 19, eternizaram de maneira bem mais ágil as pessoas e os trajes com os quais circulavam.

Flâneurs fotográficos como Eugène Atget, em Paris, e Edward Linley Sambourne, em Londres, capturaram a moda do começo do século 20 em seus cliques. Fotojornalistas consagrados no pós-guerra, como Henri Cartier-Bresson e Diane Arbus, também revelavam estilos, mesmo que não dedicados especialmente à tarefa. A fotografia do que se veste nas ruas ganhou projeção maior com Garry Winogrand, nos anos 1960, mas só se consagrou de fato a partir de dezembro de 1978, com a primeira série de fotos do chapeleiro tornado fotógrafo Bill Cunningham, para o jornal The New York Times.

Dedicado a catalogar diferentes facetas das ruas de Nova York, dos eventos da alta sociedade e da cobertura de desfiles, Cunningham compartilhou seu trabalho por quase quatro décadas nas colunas “On the street” e “Evening hours”. Ao redor do mundo, outras produções também seduziam as lentes, como a riqueza visual dos sapeurs, que transformavam ostentação em apropriação anticolonial no Congo, e culturas do underground japonês, retratadas a partir da década de 1990 por Shoichi Aoki, em revistas como Street e Fruits.

Naquela mesma época, a indústria dos paparazzi fez das fotos de celebridades nas calçadas material dos mais cobiçados (pela mídia e fãs). E, na segunda metade dos 2000, o boom dos blogs abriu o restrito mundo da moda (e os looks de suas especialistas) para consolidar o tipo de imagem associada ao gênero nos dias de hoje.

Se essa rua fosse minha…

Mas como toda moda termina em excessos, o movimento começou a se desgastar. Ainda antes do distanciamento social, o mercado de influenciadores de moda já se via alvo de questionamentos, hoje potencializados em torno da diversidade de representação, dos limites entre imagem pessoal e marketing e da responsabilidade social e ambiental do que é apresentado nas redes sociais. Junte a essas questões as consequências econômicas causadas pela Covid-19 e não fica difícil entender por que muita gente está sedenta por novos registros de estilo.

Enquanto o mundo ao seu redor se voltava para dentro de casa, a China, primeiro epicentro da pandemia, viveu os primeiros meses de retorno às ruas a partir de abril de 2020. De lá, borbulhou uma série com apelo de novidade nas redes sociais: vídeos que reinterpretavam o olhar voyeurístico de Cunningham com posts intitulados “Chinese street fashion” – quase sempre produzidos em redutos famosos de compras em Xangai e Pequim. E, mais uma vez, a inovação tecnológica impactou o formato: além daqueles feitos profissionalmente, versões realizadas com recursos mais fáceis de aplicativos como TikTok e Instagram (ou suas versões locais) reuniam facilmente as passagens de pessoas estilosas em seu “habitat natural”.

 

@eromei in case u couldn’t tell the last one is my husband he doesnt know but itsok #fyp #chinesestreetfashion #chinesetiktok
♬ Shelter – Porter Robinson & Madeon

 

O fenômeno se alastrou à medida que mais países flexibilizaram restrições. A italiana Michelle Bellucci, estudante de moda em Londres, resolveu se dedicar à tarefa similar, em outubro passado, sob o perfil @londonersinlondon_. “Assim que retomamos as atividades presenciais, senti mudanças em como as pessoas se vestiam. Pensei sobre como Londres é multicultural e comecei a voltar a minha atenção a esse tipo de registro”, diz ela. Além da inspiração em Shoichi Aoki, ela confessa a influência de outro perfil popular, o @parisiensinparis, lançado em 2018, mas com pico de acessos durante a pandemia.

Tal tendência se reverbera também por outras cidades – @milanesiamilano e @romans.in.rome, por exemplo, já acumulam dezenas de milhares de seguidores. “É sobre roupas, mas também sobre a autoconfiança de quem as veste, sobre como se expressar através da moda”, explica Michelle. Também é sobre um olhar menos comprometido. “Sinto que o mercado de influenciadores atual é construído de forma a ressaltar coisas que, muitas vezes, não são reais. E as pessoas têm percebido isso. Prezo também pela pluralidade. Londres é uma cidade tão rica que a vejo como ponto de partida para que todos se sintam representados”, explica.

Em escala profissional, a popularidade de outro perfil faz sintonia a essa busca por imagens que valorizam o aspecto mais criativo e autêntico das produções de moda, não tão ligado a tendências e grifes. Johnny Cirillo responde pelo @watchingnewyork há quatro anos, mas também sentiu o anseio por novos enfoques nos últimos meses. “Acho que as pessoas se enxergam nas minhas fotos. A fotografia de moda tradicional é incrível, algo que admiro há anos, mas nunca tive um estúdio, sempre me interessei por momentos da vida real. Acredito que é isso que se traduz e se relaciona com as pessoas”, comenta ele.

 

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Fotos: @watchingnewyork e @londonersinlondon_

 

“Gosto de encontrar esses momentos, duas pessoas rindo, alguém pulando uma poça d’água. A cena de modo geral, o caminhar e, claro, o estilo.” Johnny Cirillo, do @watchingnewyork

Sobre as mudanças alavancadas pelo período de restrições, Cirillo lista algumas das que considera mais visíveis em quem fotografa: “Vejo muitas roupas feitas manualmente, trabalhos interessantes de quem se apropriou de itens de segunda mão, tornando-os novos de novo. Pessoas confinadas em suas casas por um ano se tornaram muito mais criativas”.

Estaria no senso de conexão com atributos que exprimem as melhores qualidades do mundo real a chave para a nova fase do street style? “A pandemia fez acelerar o fim da era do ‘look pelo look’, que agora dá lugar a conteúdos de moda que dialogam com o entretenimento, a educação e, principalmente, a autenticidade”, diz Larissa Gargaro, gerente de parcerias estratégicas de moda e beleza do Instagram. “É aí que fotos e vídeos com um quê caseiro, registrados com o celular e temperados com altas doses de vida cotidiana, vêm para substituir o post de #OOTD [sigla para look do dia em inglês] supereditado. Se até há poucos anos, essas eram o must durante as fashion weeks, hoje, são as que contam uma história (seja ela uma ‘sujeirinha’ na calçada ou uma legenda #sincerona) que geram maior empatia, identificação e, consequentemente, engajamento com o público”, analisa ela.

Com presença-chave na construção de imagens de moda dos últimos anos, o Instagram é, ao mesmo tempo, fonte de conteúdo e inspiração e também laboratório para o que vai fisgar as atenções dos usuários e do mercado à frente. “O desafio do ecossistema de criadores é se reinventar constantemente. Uma fórmula que funcionava em um mundo pré-pandêmico já não funciona mais. É preciso ser resiliente e estar atento às mudanças do mundo dentro e, principalmente, fora da moda, medir a temperatura”, compartilha Larissa.

Tais conceitos dialogam com os conteúdos criados pela stylist, designer e produtora Suzana Maria, que agora responde também como cronista de estilo por meio da série O que as pessoas estão vestindo hoje em São Paulo, publicada em seu perfil @shoshmaria. Com foco nos vídeos, a edição de vários looks amplifica a riqueza de ideias que a fascina na cidade. “Sou apaixonada por perceber como as pessoas entendem e traduzem informações de moda no seu dia a dia. Depois de assistir a vários conteúdos do tipo, achei que São Paulo merecia ter o seu próprio”, diz ela. “Quando morava em Brasília e vinha para cá, ficava sempre maravilhada pelo estilo daqui. Algo que acontece quando se reúne gente do Brasil e do mundo inteiro no mesmo local.”

 

 

Da maneira similar aos colegas internacionais, Suzana reforça que, na moda, a beleza está nos detalhes tanto físicos quanto externos às peças vestidas por seus personagens. “Considero completamente instintivo esse olhar que reconhece individualidade quem passa por mim. Sinto que, a partir do momento em que reparo no que perderia de vista por pressa, começo a perceber o quanto as pessoas são incríveis sendo só elas mesmas”, fala Suzana.

Como nas transformações anteriores, os pontos de encontro entre inovação e tradição a serem rompidos é o que solidificam novos passos da trajetória da imagem de moda conectada de maneira mais direta ao seu tempo. Com os pés nas ruas, Suzana ressalta a riqueza justamente das diferenças. “Quando você é um profissional da moda, ou da cultura como um todo, temos a sensação de que existe um lado de cá e um lado de lá. Na realidade, somos todos parte da mesma história e não existimos uns sem os outros”, finaliza.