Espelho, espelho meu… Quem sou eu?

Entre as caricaturas da velhice e do erotismo, a figura da bruxa é uma categoria da cultura que, não raro, é usada para delimitar a autonomia do corpo das mulheres. Aqui, refletimos sobre o desenho desse arquétipo.

Se para responder a pergunta que dá título a esta reportagem o espelho mágico recorresse ao dicionário, ele se depararia com definições para o verbete “bruxa” como “mulher muito velha e feia; bruaca, jabiraca, megera”. Apesar de a bruxa ter encontrado novas interpretações menos maniqueístas na cultura pop contemporânea, a imagem que povoa o inconsciente coletivo parece não ter se transformado. Para além disso, muitas vezes, ela também ganha características intencionalmente desproporcionais ou descabidas para corroborar com a composição da imagem do maléfico ou do obscuro. A perversidade da bruxa de O mágico de Oz (1939) se anuncia em sua pele verde. O mesmo vale para o rosto deformado da Convenção das bruxas (1990) ou do trio de Abracadabra (1993).

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Essa associação entre a bruxa e o mal, contudo, nem sempre esteve em voga. O nascimento da literatura ocidental, por exemplo, acontece ao redor da figura de uma feiticeira: a Circe, da Odisseia de Homero. “Muitos críticos defendem que a obra nada mais é do que o reflexo de um outro épico ainda mais antigo que, por sua vez, é ligado à expedição dos argonautas (As argonáuticas, de Apolônio de Rodes) e gira em torno de uma feiticeira chamada Medeia, cuja tia, Hécate, também já era uma bruxa muito famosa e teria ensinado a ela os seus saberes”, explica Welington Andrade, professor e doutor em literatura. Isso posto, é possível afirmar que, no imaginário da antiguidade greco-latina, a bruxa tinha a possibilidade de estar associada à beleza ou à virtude.

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Com a passagem do tempo, as bruxas seguem presentes na literatura latina, mas sofrem um revés na Idade Média. “A Igreja passa a demonizar essas figuras e associá-las ao mal. Em geral, envelopando-as com uma sexualidade exacerbada que, segundo os valores cristãos da época, deveria ser combatida e reprimida”, explica o professor. Essa interpretação, contudo, não se limita ao território da produção literária. Naquela época, o estereótipo da mulher devassa que merece castigo por incitar o desejo carnal fundamentou a Inquisição, uma caça assassina às “bruxas” que perseguiu mulheres durante seis séculos na Europa.

Segundo a psicanalista Manuela Xavier, portanto, essa bruxa criada na Idade Média não encontra representação real no mundo. “Essa imagem é um produto fabricado para controlar o corpo das mulheres em um âmbito político”, diz. Em Calibã e a bruxa, livro de 2004 da professora e ativista italiana Silvia Federici, a autora detalha esse processo. De acordo com a sua pesquisa, a passagem do feudalismo para o capitalismo é um período crucial para a dissipação dessa ideia. Essas mulheres, consideradas bruxas e caçadas pela Igreja, eram, na verdade, aquelas que operavam o front da resistência ao sistema, reivindicando seu espaço no mundo e seus direitos na sociedade. “Elas não faziam bruxaria. Eram mulheres que tinham conhecimento de ciência, da medicina, sobre as ervas e os céus. Eram estudiosas e isso era perigoso para a manutenção do sistema patriarcal”, explica Manuela. Com isso, fica fácil entender a associação da bruxa com uma caricatura da velhice, a feiúra ou a repugnância. “É interessante para o patriarcado que as mulheres não se identifiquem com as ditas bruxas. A ideia é fazer com que a gente vá se distanciando do nosso poder”, continua a psicanalista. Não à toa, nos dias de hoje, a feminista é pintada pelo conservadorismo como uma mulher que não se cuida e por isso “vai acabar sozinha e feia”.

Todos esses trejeitos e características físicas incumbidos às bruxas servem a esse propósito – do rosto deformado à gargalhada maléfica. Essa tipificação é tão poderosa que, mesmo a Inquisição tendo chegado oficialmente ao seu fim há exatamente dois séculos, o seu fantasma ainda nos assombra. A prova está na representação da personagem-bruxa na literatura e no audiovisual. Exemplo disso é a frequência com que ela é incluída na narrativa no papel da vilã invejosa dos contos de fadas multimilionários da Disney. A Branca de Neve (1937), A bela adormecida (1959) e A pequena sereia (1989) são provas do quão longeva é a dicotomia entre a princesa “do bem” e a bruxa “do mal”. No gênero do terror em si, ela também não escapa à incumbência demoníaca: é o caso de longa-metragens como A bruxa de Blair (1999), A bruxa (2015) e Suspiria (1977).

 

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Falando em dicotomia, nas histórias infantis, esse tipo específico de maniqueísmo, curiosamente, não afeta os personagens masculinos. Em paralelo, aquele pensamento cristão medieval da mulher que só pode ser santa ou diaba, nesses contos, também fica entre a mãe e a madrasta, a fada e a bruxa etc. E, claro, o polo positivo representado pelo padrão de beleza vigente e o polo negativo pelo exagero do seu exato oposto. Manuela ainda afirma que isso é reflexo de como a sociedade entende o papel da mulher na sociedade. “A bruxa raramente poderá ser a ‘mocinha’. Esta, por sua vez, se colocar o pé na ‘bruxaria’, dificilmente poderá ocupar o lugar de princesa novamente”, argumenta.

O feitiço (e a falácia) do desejo

O artigo Os usos do erótico: o erótico como poder (1978), da brilhante feminista negra Audre Lorde, explica que há muitos tipos de poder: os que são utilizáveis e os que não são, os reconhecidos e os desconhecidos. O erótico, portanto, está do lado dos não-validados, dos escondidos. E, claro, há uma razão por trás disso. “Para se perpetuar, toda opressão deve corromper ou distorcer as fontes de poder inerentes às culturas das pessoas oprimidas porque é daí que a energia da mudança pode florescer”, escreveu a estadunidense. Assim, o patriarcado, que, detendo o privilégio e tornando-se o centro da ideia do que seria “o universal”, coopta as mulheres a se afastarem de seu próprio corpo, de sua própria sexualidade e, por consequência, de seu próprio poder. Para ir mais a fundo, vale a leitura de Eu, Tituba, bruxa negra de Salém (1986), da francesa Maryse Condé, que reimagina Tituba – uma das primeiras mulheres a serem julgadas pela prática de bruxaria nos tribunais de Salém, em 1692 – voltando à vida três séculos depois. É uma história de diáspora, de recusa da fé colonizante e de retomada dos poderes descritos por Lorde.

Para Pâmela Ribeiro, dona do perfil @abruxapreta no Instagram, é necessário compreender que a Inquisição no Brasil está atrelada à colonização. Os saberes dos povos indígenas, negros e de comunidades não brancas são violentamente perseguidos e esse é um mecanismo inquisitório bastante ofuscado pela história oficial de cunho eurocêntrico. “A bruxaria definitivamente não cabe no mundo binário. Ela é plural. É muita coisa e todas elas interagem entre si. É uma encruzilhada e é por isso que funciona. A galera pode até imaginar aquela pessoa com o cristalzinho, com o incenso. Mas não, a bruxaria é marginal. Defino a minha bruxaria como favelada. Não tem como desvincular a ideia do político nesse processo.” A pajelança, as benzedeiras, os curandeiros estão todos associados à “feitiçaria/bruxaria” no sentido pejorativo, e não como tecnologias e ferramentas decoloniais e ancestrais ligadas à cura e ao bem-estar.

A bruxa carrega consigo uma ambiguidade abissal. Por um lado, ela é uma incumbência estereotipada da sociedade patriarcal, racista e colonial criada para controlar e oprimir mulheres. Por outro, contudo, ela também pode ser um convite ao não-lugar da insubmissão, como descrito pela escritora brasileira Conceição Evaristo. Nossa editora especial Vivian Whiteman, que é também psicanalista, reforça essa interpretação ao dizer que “o poder subversivo da bruxa está na não-conformidade, nas contradições, no que ela pode denunciar sobre o mundo e a hipocrisia da organização social”. No limite, cuidado: a bruxa está sempre à solta.