Sioduhi atravessou o rio de si mesmo. Fez da moda seu remo. Da dor, uma perspectiva. E da descolonização, um chamado a ser honrado. Indígena do povo Piratapuya, que tem seu território no Alto do Rio Negro, no Amazonas, ele é criador e estilista da Sioduhi Studio. Apesar da formação acadêmica em administração, área em que trabalhou por alguns anos, o interesse pela moda é antigo e começa “quando tento criar um sentido para mim enquanto indígena”, diz ele.
Por causa da dinâmica de colonização que chegou à sua aldeia, com dogmas principalmente da Igreja cristã, por muito tempo ele não viu espaço para falar sobre o assunto que era considerado algo muito “feminimo”. O momento de virada partiu de duas perdas que Sioduhi teve no ano de 2020: de um amigo, Charles Maia, do povo Yanomami, e seu tio, Laureano Cordeiro, ancião do povo Piratapuya, vítima da Covid-19, um grande costureiro e inspiração.
”A moda para mim é recontar histórias do passado, revivendo o presente e compreendendo como o futuro deve ser”, afirma ele. ”Lido com histórias que não foram contadas em livros. É uma ferramenta de possibilidade de comunicação. Eu falo da identidade indígena, que é tão dinâmica quanto qualquer outra identidade ou cultura”.
Atualmente, sua marca tem transitado por espaços como a Brasil Eco Fashion Week e também firmado parcerias com organizações indígenas e indigenistas, como o Instituto Socioambiental e a Rede Wayri.
Ao criar, sua busca é explanar uma mensagem contemporânea que dialoga com o futurismo dos povos originários. ”É um paralelo do viver, algo que difere do tempo ocidentalizado, que é linear. Em nossa visão cosmoindígena, o tempo é circular: o que vivenciamos agora, neste momento, é algo que compartilhamos com o passado e o presente”, explica ele, que atualmente reside em São Paulo.
Sioduhi aprendeu tudo de forma autodidata, ao observar seus tios. Até chegou a fazer alguns cursos de modelagem e costura, mas não deu continuidade durante a pandemia e desenvolveu as habilidades de forma cotidiana, lidando com a marca. Seu trabalho integra muito das técnicas manuais de costura e alfaiataria, ao mesmo compasso em que valoriza as pessoas envolvidas no processo. Segundo o estilista, uma das partes mais felizes da profissão é justamente entender quem trabalha ao seu lado. ”Muitos não sabem que, acima das roupas, moda é sobre comportamento e pessoas. Isso está no DNA da Sioduhi Studio e considero um marco de passagem para a moda ainda superficial e glamourizada. É um senso de coletividade.”
Uma dúvida recente sobre as peças, que ele faz questão de pontuar, é se todos podem usá-las, se não seria um tipo de apropriação cultural. Para o estilista, não há problema. “Sempre respondo que consumir de criativos indígenas é uma forma de abraçar a causa e caminhar junto”, explica.
Sioduhi ainda diz que faltam avanços em muitas pautas originárias e cita o verniz imagético que acontece muitas vezes. ”Por exemplo, pode haver uma capa de revista ou uma propaganda com uma pessoa indigena, mas quando vemos a ficha técnica não existe estilista, stylist, figurinista, maquiadora, modelo indígena”, afirma. Buscando romper esse padrão, ele cofundou o Indígenas Moda Br, coletivo que reúne criativos, profissionais e ativistas indígenas da área. O objetivo da iniciativa é descentralizar esse lugar ocupado por corpos brancos e pensamento embranquecido. ”Muita gente quer falar sem que estejamos presentes. A indústria da moda segue esse mesmo rito. É preciso sentar e nos ouvir”, sinaliza.
As pautas indígenas, inclusive, dizem respeito a um Brasil inteiro. Não bastasse o processo violento e assassino de colonização há 500 anos, atualmente, os direitos originários têm sido cada vez mais atacados por meio de políticas e posicionamentos. Recentemente, a tese do marco temporal voltou ao Supremo Tribunal Federal, o Congresso Nacional se prepara para votar o Projeto de Lei 490, que altera o Estatuto do Índio, e terras indígenas têm sofrido com falta de demarcação, garimpo e grilagem ilegais.
Para além da sistemática violência e da resistência contra ela, os povos indígenas são diversos, ricos em saberes ancestrais e repletos de narrativas singulares. A história nunca é única. É por um caminho semelhante que Sioduhi conduz sua marca. Para ele, retomar sua identidade e recontá-la por meio das roupas é justamente esse processo de descolonização, que ajuda a reparar ”o apagamento do design e de tecnologias indígenas, a apropriação e genocídio direto”. Ocupar espaços historicamente embranquecidos não é fácil, mas o estilista acredita que ”a moda é um ponto para começar a indigenizar outros espaços da sociedade. Sempre compreendendo que consigo contar minhas histórias, do Alto Rio Negro, do Piratapuya, e não posso falar de outros indígenas, pois não represento todos. Cada um tem sua vivência e cosmovisão”.
Sobre moda e amor é a nova coluna da ELLE View, em que convidamos nossas leitoras e leitores a enviar histórias sobre sua relação com a moda: de amor, de sonho, de alegria e também de desafios. Quer ter a sua história contada? Escreva para pautas@elle.com.br com o título “Sobre moda e amor”. Vamos ler cada uma delas e selecionar mensalmente uma para aparecer por aqui.