Gorecore: qual o lugar do grotesco na moda?

Movimentos pautados por elementos de horror ganham fama nas redes sociais e surgem como alternativa e questionamento às construções estéticas dominantes.

O termo gore vem do inglês britânico e significa algo como sangue derramado, normalmente em um ato de violência. Ele designa tudo que está ligado ao sangue e ao horror. Uma de suas primeiras e principais aplicações é no cinema, como uma subcategoria do gênero terror, aqui mais visceral, explícito e sanguinolento.

Foi nos anos 1960 que os primeiros filmes hollywoodianos desse tipo fizeram sucesso. Eram os chamados filmes splatter, como o Banquete de sangue (1963) e Maníacos (1964). O movimento chegou a receber censuras por parte do governo estadunidense e do Reino Unido, nos anos 1970, por contar frequentemente com cenas sexuais bastante controversas.

No fim daquela década, outra categoria, chamada slasher, ganhou popularidade com a franquia Halloween (1978), hoje já com 11 filmes e um reboot atualmente em cartaz nos cinemas. Outra franquia de sucesso, A hora do pesadelo (1984), que apresentou Freddy Krueger ao mundo, deve receber um novo remake em breve.

Um país que também fez história nesse segmento é o Japão. O Japanese horror, ou J-horror, tem enorme influência sobre a estética do terror que conhecemos hoje. A série Guinea pig (1985-1988) é uma das produções mais conhecidas. Ela era tão realista para a época que os diretores tiveram de provar que as torturas eram falsas.

Mais tarde, O chamado (1998), originalmente batizado de Ringu, foi lançado, inaugurando uma nova era no terror japonês e mundial, menos explícita e se valendo de um suspense quase psicológico. Também não faltam animes e mangás com temática gore, repletos de derramamento de sangue e interseções com a sexualidade. Alguns dos mais famosos são Elfen lied (2004), Another (2012) e Berserk (1997).

Agora, a estética sanguinolente que pautou toda uma produção cultural de terror começa a ganhar apelo pop – ou quase. Em março deste ano, Lil Nas X lançou o Satan Shoes, uma espécie de bootleg do Nike Air Max 97, feito em parceria com a MSCHF, que supostamente teria sangue na sola do calçado.

Mais recentemente, o trapper Matuê anunciou a venda de um colar com gotas de seu sangue, em troca da “alma dos fãs”. Era parte da divulgação de seu novo projeto, cheio de clipes ensanguentados e temática vampiresca, e também uma ação de marketing para a doação de sangue.

Por sua vez, Kylie Jenner, a mais nova do clã Kardashian-Jenner, anunciou, uma parceria da Kylie Cosmetics, sua marca de beleza, com A hora do pesadelo para uma coleção de Halloween. Nas fotos, que rapidamente viralizaram, Jenner aparece nua e ensanguentada, uma imagem bastante frequente nos filmes slasher e splatter.

Vale dizer que, na beleza, o assunto nem é tão novidade assim, dado a proximidade do setor com filmes e outras produções do gênero e não somente. A novidade é que existe um número cada vez maior de influenciadores bebendo dessa fonte macabra e criando toda uma série de makes que simulam machucados, sangue e até causam repulsa.

Um dos reality shows mais conhecidos de beleza, o Glow up, que estreou sua terceira temporada neste ano, coroou a britânica Sophie Baverstock como vencedora. A maquiadora é bastante ligada à maquiagem cinematográfica. Em seu perfil do Instagram, ela posta com frequência looks com aparência de sangue, machucados e até pus.

A criadora de conteúdo russa Aryuna Tardis, 26 anos, começou a se aventurar no mundo da maquiagem ainda na adolescência, como uma forma de se transformar. “Costumava me dar um makeover para conseguir me amar. Hoje, quero transformar meu rosto”, diz ela.

Aryuna não gostava de sua aparência e há quatro anos passou a nutrir suas redes sociais com autorretratos e arte digital transformadores, como um diário para seus mais de 158 mil seguidores no Instagram e 2,2 milhões no TikTok. Hoje, ela também trabalha com cinema e conta que a maquiagem para efeitos especiais e terror faz parte de seu dia a dia. “Vejo meu trabalho como moderadamente assustador e estético. Como artista, sou muito emotiva e vulnerável. Expresso minha dor e emoções na minha arte por meio de sangue e machucados”, fala.

“Vejo meu trabalho como moderadamente assustador e estético. Expresso minha dor e emoções na minha arte por meio de sangue e machucados.” Aryuna Tardis

Ella Frank Simskins é outro nome que faz trabalhos que saltam aos olhos com a estética gorecore. Baseada em Londres, ela cria diversos looks com maquiagem simulando sangue, machucados, carne viva e até uma mão cheia de olhos.

Na moda, elementos que remetem a sangue, vísceras e outros aspectos do horror também têm se tornado mais frequentes. Recentemente, uma #trend no TikTok ensinava pessoas a fazer um D.I.Y (do it yourself) para simular sangue na sola dos calçados. Sinalizado como conteúdo perturbador pela plataforma de vídeo, as hashtags #BloodShoes e #BloodyShoes já somam mais 6,2 e 22,1 milhões de visualizações, respectivamente.

A designer londrina Lena M Áine, 22 anos, criadora da marca Lemaine, recebeu muita atenção nos últimos meses e se tornou um dos principais nomes quando se fala de moda gorecore. “Essa coleção é uma extensão do meu trabalho de graduação sobre a representação metafórica da crise climática pela ótica do body horror”, explica ela, sobre seu mais recente lançamento.

“Também me inspiro em minhas crenças e interesses pessoais, como movimentos sociopolíticos, homenagens a clássicos do terror e à rejeição dos padrões de beleza para corpos que se apresentam como femininos. Gosto de criar peças que choquem as pessoas, que levantem discussões. Gosto de brincar com temas que são tabus, como fetichismo, sexualidade e a moral”, continua Lena.

Seu trabalho consiste na experimentação têxtil para simular sangue, partes do corpo e feridas como uma resposta ao nosso mórbido interesse sobre o tema. Segundo ela, apesar de estar dentro de todos nós, são coisas que ainda nos assustam e nos enojam. Para tanto, utiliza fios de tecido vermelho e preto costurados e colados cautelosamente sobre resíduos têxteis, materiais de segunda mão e látex, tudo finalizado com gloss e tinta.

Aun Helden, performer baseada em São Paulo, usa do bizarro, o estranho e a repulsa para chocar e levantar discussões. Ovos, próteses de objetos fálicos e vulvas são alguns dos artefatos que a artista utiliza para questionar as definições de gênero e hackear o binarismo.

“Na minha linguagem, o estranhamento é um pilar muito importante para o lugar da transfiguração e do pensamento de possibilidades. Quando você estranha algo, você vai para um lugar de questionamento, de dúvidas. E, quando você adentra essas sensações, é possível enxergar novos imaginários”, epxplica Aun.

Também de São Paulo, a drag e performer Cece Grace se vale de sua persona para externalizar seus sentimentos, provocar questionamentos vários e transitar entre a binariedade e sua negação. “O bizarro, o estranho, o gore vêm como um escape para mentes perturbadas. A revolta vai justamente contra o que é visto como feio”, diz.

“A beleza é quase toda ditada, e o sistema se escora nesses padrões. O gorecore representa justamente um afronte a esse visual, a essa bolha. É como uma invasão. Esses movimentos, trancados por crenças, provocam desconfortos em mentes acomodadas nesse mundo ilusionário e perfeito”, continua Cece Grace.

Reflexo
Cece Grace. Foto: Divulgação

 

É inegável que parte do sucesso da estética do horror reside no fator do choque. É uma estratégia de comunicação e publicização há tempos usada pela indústria do entretenimento. Daí as polêmicas em torno dos lançamentos de Lil Nas X e Matuê. Porém se ater a essa leitura seria um pouco simplista.

“Acredito que o bizarro, o grotesco, o gore, essas palavras que definem esses movimentos, estão muito além do lugar frívolo. São ferramentas de linguagem para tratar temas sentimentais e culturais de uma forma mais incisiva e megalomaníaca”, comenta Aun Helden. “Os movimentos sociais têm a imagem como um grande artifício de provocação e mudança. Não é à toa que a moda e estilistas que carregaram isso em seu processo buscaram movimentos underground para estabelecer essa proposta, como Alexander McQueen e Vivienne Westwood”, continua a artista.

Para Lena M Áine, as redes sociais têm papel fundamental nesse processo. Segundo ela, essas plataformas permitiram o crescimento de várias subculturas, muitas vezes funcionando com um ambiente de refúgio e de alternativa para as construções estéticas dominantes. “Tanto esse movimento quanto meu trabalho são rejeições diretas aos padrões de beleza”, afirma ela. “Existe essa linha impossivelmente fina que devemos seguir em relação à aparência e à idealização, essa estética surge da frustração dessas imposições. Espero realmente que possamos ver cada vez mais essas rebeliões contra os padrões de beleza”, finaliza.

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Look da designer Lena M Áine.Foto: Gracie Imagery