A moda pode ser sonho, mas também pesadelo

Um efeito colateral da Covid-19, um renascimento histórico ou apenas um sinal dos tempos? Aqui, investigamos por que o terror está na moda.

Em entrevista à imprensa, três anos antes de sua morte, em 2010, Alexander McQueen afirmou: “Eu procuro a beleza no grotesco”. Ele com certeza encontrou. Mas para isso foram precisas diversas investigações sobre o horror do belo e o belo do horror. Daí vinha a inversão de tudo aquilo que, até então, costumávamos considerar como os seus significados.

Seus desfiles podiam causar certo incômodo, apesar de todo o triunfo técnico de suas roupas e da teatralidade no espetáculo. Em suas apresentações, já vimos modelos no centro de um círculo de fogo, com os olhos vermelhos como sangue, presas em uma casa de vidro cheia de mariposas ou dançando até a exaustão.

McQueen não media esforços quando o assunto era perturbar e, para isso, bebia das fontes mais sombrias. O assassino em série do século 19 Jack, o Estripador, os asilos psiquiátricos da era vitoriana e os contos de fadas góticos dos irmãos Grimm foram algumas de suas referências.

Elas podem parecer estranhas se pensadas com base em determinadas perspectivas. A moda costuma ser relacionada a algo aspiracional, cobiçado, glamouroso, sobretudo ao belo. Alguns diriam que, em sua forma mais pura, representa a matéria dos sonhos. No entanto, ela também pode ser a base da qual são feitos os pesadelos mais angustiantes. Alexander McQueen entendia isso como ninguém, mas ele não foi o único a fazer.

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Alexander McQueen, verão 2001. Foto: Getty Images

Veja o inverno 2019 da Prada. Evocando a nossa Wandinha Addams interior, o tema escolhido para a temporada foi a anatomia do romance. A visão de Miuccia sobre o tópico não poderia ser mais sombria. Os vestidos de noite apareceram acompanhados por botas de combate, rosas de cetim foram aplicadas nas lãs de cor verde-militar e as saias de renda eram combinadas a camisas estampadas com cabeça do Frankenstein. Em entrevista, a estilista explicou: “Narramos o bem e o mal juntos, o que mais ou menos corresponde com os nossos tempos”.

A Gucci é outro thriller em série. Para o resort 2019, o diretor criativo Alessandro Michele montou o seu desfile em um cemitério no sul da França. Lá, os convidados se reuniram como se estivessem em uma procissão fúnebre entre as chamas da passarela. Na temporada anterior, as modelos carregavam as suas próprias cabeças decepadas e, no pre-fall 2018, a etiqueta publicou um livro chamado Disturbia, inspirado no filme de terror italiano Inferno (1980).

Essa matéria inteira poderia ser sobre cada uma das vezes que a moda referenciou um filme de terror. Não é o caso, mas é impossível pular essa parte. Frequentemente, as vilãs do cinema existem em uma intersecção entre o repugnante e o admirável, o sinistro e o carismático, o assustador e o fabuloso. As suas alteridades podem causar medo, mas, em algum nível, também podem comover, gerando certa empatia. É aí que a sua imagem e figurino fascinam.

Olhar para essas figuras através da indumentária reconcilia alguns dilemas a respeito delas. As suas roupas nos permitem reconhecer os sinais evocados, mesmo quando eles são contraditórios. A contradição, aliás, é um dos pontos que nos mantêm tão fascinados pelo terror. Embora esse gênero do cinema seja explorado há mais de um século, as razões para gostarmos tanto ainda são misteriosas.

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Calvin Klein, verão 2018. Foto: Agência Fotosite

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Calvin Klein, verão 2018. Foto: Agência Fotosite

Ainda que não seja exatamente um amante do gênero, Raf Simons é um dos que enxergam o terror como algo indissociável da nossa realidade. “A moda tenta esconder o horror e abraçar apenas a beleza, mas ambos são parte da vida”, afirmou em um comunicado divulgado à imprensa, em 2017, sobre o seu segundo desfile na Calvin Klein.

Dessa vez, o belga criava uma linha de pensamento entre os sonhos estadunidenses e os filmes de terror hollywoodianos. Essa construção se revelou um território fértil para o designer durante o período em que esteve à frente da marca. Talvez porque o país já estivesse vivendo a sua própria história de terror.

Ainda não havia pandemia, mas já havia Donald Trump, crise climática e direitos básicos em risco. Alguns anos se passaram e, agora, soa até como um eufemismo sugerir que a realidade parece estranha. Uma pesquisa recente constatou que fãs desse tipo de produção cultural são mais resilientes às dificuldades. Em outras palavras, eles suportam melhor o caos do mundo.

Isso ajuda a explicar o boom de filmes de terror e referências macabras que vem tomando conta de nossos feeds e streamings. Em entrevista ao The New York Times, o falecido roteirista de Psicose (1960), Joseph Stefano, disse que medo é algo que todos devemos sentir. Para ele, quando estamos assistindo a algo assustador, não pensamos sobre a realidade que nos amedronta. “Nos permitimos ser assustados pela fantasia, e isso é mais suportável.”

Não é de admirar, então, que a moda tenha se tornado assustadora novamente. Agora, no entanto, a imagem encontrou uma vida nova nas passarelas. Ela parece mais controlada, como se houvesse o desejo de gritar, mas também o receio de quem pode ouvir ao virar a esquina. O susto nem sempre é declarado. Às vezes, chega a se aproximar de um romantismo melancólico, beirando os signos góticos da era vitoriana. Esse, aliás, foi o caso da Givenchy e da Louis Vuitton durante a temporada de verão 2022.

A primeira, comandada por Matthew M. Williams, se limitou a construções rígidas, como botas dominatrix até o joelho e jaquetas de neoprene ajustadas em espartilhos desconstruídos. Já para a Vuitton, era tudo sobre encontrar a leveza dessa rigidez, olhando especialmente para referências do século 19. “Gosto da figura de um vampiro que viaja através dos tempos, adaptando-se aos códigos de vestimenta da época em que vive, enquanto mantém um certo ar do passado”, explicou o diretor criativo Nicolas Ghesquière, em comunicado.

Nem mesmo a Chanel ficou a salvo das influências góticas. No resort 2022 da etiqueta, inspirado no filme O testemunho de Orfeu (1960), vimos meias arrastão, golas de couro e camisetas com estampas gráficas. Algo que Virginie Viard, diretora de criação da maison, fez em comum a Matthew e Nicolas foi enviar à passarela um bloco formado apenas por looks pretos. A cor até pode ter fama de básica, mas vestir-se de preto, hoje, parece uma escolha tanto pragmática quanto poética.

O preto – preto gótico, preto sedutor, preto escultural, preto discreto – nunca foi um só. Há nele uma aura de uniforme ao manifestar uma identidade, uma perspectiva de mundo. Historicamente, se percebe o aumento de sua popularidade em períodos de declínio econômico ou agitação política. É como um sinal de austeridade e rebelião. Não é de estranhar, então, a recorrência da cor nas passarelas.

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Travis Barker e Kourtney Kardashian. Foto: Getty Images

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Olivia Rodrigo. Foto: Getty Images

Kourtney Kardashian, certamente, gostará disso. Desde que começou a namorar com o Travis Barker, da Blink-182, a influenciadora ganhou as manchetes de moda. A transição para imagem de namorada de roqueiro é nítida. Os seus vestidos Balmain e bolsas Jacquemus foram, ao menos por enquanto, abandonados em favor das calças de couro Rick Owens, malhas sujas Raf Simons e, claro, muito preto.

Ela não é a única adepta da estética regada a referências de terror. Em questão de um mês, vimos Selena Gomez de meia arrastão na capa da ELLE estadunidense, Olivia Rodrigo carregando uma bolsa com vampiros estampados e milhares de TikToks acelerando subculturas conectadas ao gênero. Na plataforma de vídeos, à medida que a era de conteúdos higienizados é posta de lado, surge uma nova onda de desobediência e rebeldia.

#AltGirl é a estética da vez por lá. Com mais de 2 bilhões de visualizações, a hashtag reúne as garotas de cabelos tingidos, delineados pesados e visuais inteiramente pretos. O TikTok se tornou um território fértil para as subculturas modernas. O fato de estar tudo online e acessível para qualquer um contradiz a natureza underground, é verdade. Mas aquela operação quase secreta de décadas atrás dificilmente poderia ser reproduzida em um tempo de estímulos digitalizados.

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Selena Gomez para ELLE US de setembro. Foto: Divulgação

O #DarkAcademia é um outro exemplo desse movimento, com uma queda especial pela romantização do conhecimento. No aplicativo, ao passear pela hashtag, você pode atestar que essa é uma experiência universitária que, raramente, se tornará realidade. É verdade, no entanto, a visão hipercurada e performática dos adeptos captura uma espécie de nostalgia por uma vida ainda não vivida, cheia de referências góticas. Daí os símbolos estéticos melancólicos em suas roupas. Quando a pandemia interrompeu os planos dos estudantes, a subcultura estava lá para preencher o vazio e mediar as conversas sobre medo.

O horror sempre possuiu a capacidade de segurar um espelho para os tempos em que vivemos. Dado o estado febril sociopolítico e os traumas generalizados, talvez não seja nem uma surpresa que a imagem sombria emergiu novamente. Em vez de encontrar uma rota de fuga, onde a moda sugeriria contrapor os sinais com exuberância ou suavidade, agora, das passarelas às mídias sociais, ela parece possuir outros planos.

Embora possa ser reconfortante não resistir mais ao terror, as referências góticas não estão sendo tiradas do sobrenatural, mas sim do tumulto da vida real. Quem precisa referenciar a fantasia quando a própria realidade é assustadora? Dessa vez, terei que concordar, espero mesmo que seja só uma fase, mãe.