O horror que não se vê

Na direção e no roteiro dos filmes Corra! e Nós, Jordan Peele revoluciona o gênero do terror e causa calafrios ao expor o racismo assustadoramente naturalizado na sociedade.

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Ilustração: Diego Justino

E se o filósofo e cineasta francês Guy Debord (1931-1994), autor de um dos livros mais necessários e atuais do momento, apesar de ter sido publicado em 1967, fosse um homem negro? Será que ele conseguiria levar para as grandes telas a sociedade que tão bem retratou em sua obra?

Em A sociedade do espetáculo, Debord traz uma crítica contundente sobre a sociedade do consumo, que espetaculariza o próprio desespero para negar sua personalidade social coletiva, seriamente deturpada por sucessivas inversões de valores. No livro, o autor se vale de metáforas nada óbvias, mas absolutamente sagazes, para desglamourizar e expor o comportamento social problemático, que deixou de ser assustador porque foi naturalizado.

É exatamente isso que o também cineasta Jordan Peele, considerado pela crítica um mestre contemporâneo que renovou o gênero do terror e suspense, tem feito em seus filmes. Peele entrega obras consistentes e completamente inovadoras, com tramas muito bem pensadas e que encontram ressonância com assuntos fundamentais na atualidade, como as questões raciais e suas intersecções com as questões de gênero e de classe.

A marca pessoal de Peele é a crítica sofisticada, “suave coisa nenhuma”, que gera entretenimento, mas se recusa a ser isenta. Ele se posiciona e usa sua habilidade com a linguagem cinematográfica para dar um respiro em tudo que já foi feito nesse gênero.

Há um ditado popular que diz: “Cada um sabe onde lhe aperta o calo”.

O calo de Jordan Peele, para além das distorções sociais que geram abismos nas dinâmicas e relações entre as pessoas, é o racismo. E ele aperta, principalmente, em lugares sociais onde construímos nossas vidas e dos quais não podemos fugir, como a afetividade.

Ainda que assistíssemos sua obra às cegas, só pelo tom da abordagem, saberíamos que se trata de um homem negro. Não que seus filmes sejam clichês de militância ou senso comum sobre as desigualdades sociais, e sim porque eles dão conta de expor detalhes e intenções minuciosas que só quem vive o racismo consegue captar, embora nem sempre consiga explicar com palavras, tampouco traduzir para a especificidade da sétima arte.

Seu primeiro trabalho como diretor, que lhe garantiu um Oscar, é o aclamado Get out ou Corra!, como foi apresentado ao público brasileiro. A obra já começa tensa, mostrando os ambientes de um agradável apartamento, que sinaliza para um morador com estilo de vida contemporâneo. As fotografias em branco e preto expostas por todo o imóvel, no entanto, parecem mais frias do que o normal. O dono do lugar: um jovem, bonito e bem-sucedido fotógrafo, Chris, interpretado pelo excepcional Daniel Kaluuya.

Ainda que assistíssemos a obra de Jordan Peele às cegas, saberíamos que se trata de um homem negro. Seus filmes dão conta de expor detalhes e intenções minuciosas que só quem vive o racismo consegue captar.

Sua namorada, Rose Armitage, ganha vida pela bela atriz Allison Williams. Moça branca com aparência “classe média alta”, ela chega ao apartamento e ambos começam a falar sobre a primeira visita do rapaz à família de sua amada.

A aparência da namorada é extremamente agradável: suave, voz doce, totalmente moldada pelo estereótipo machista reservado para mulheres brancas, o sexo frágil. Ela parece bastante dedicada à relação, apaixonada e compreensiva, diante da negritude do namorado.

Mas a frágil namorada se mostra suficientemente corajosa a ponto de confrontar um policial racista que os aborda no trajeto até a casa dos seus pais. Começa aqui o terror.

Pessoas brancas gostam de agir como defensores de negros, em casos de racismo, com quem mantêm alguma ligação de afeto ou proximidade. Entre a negritude estadunidense, isso é chamado de “white savior”, ou branco salvador. A senhorita Morello do seriado Todo mundo odeia o Chris é um exemplo desse perfil. Não fosse uma atitude muito mais comprometida com a negação do racismo em si, não haveria problema algum e soaria como solidariedade. Mas com frequência esse comportamento é usado como autoindulgência de quem evita a desconstrução.

Quando o namorado questiona se ela avisou os pais de que ele é um homem negro, temos a primeira cena apavorante do filme. Ela responde que eles não são racistas, pois votaram DUAS vezes em Barack Obama. Se você não acha assustador, provavelmente é uma pessoa branca ou uma pessoa negra sem letramento racial. A tokenização é assustadora para toda pessoa negra que sabe o que isso significa e o quanto essa é uma das tecnologias do racismo mais cruéis.

Mas o terror não acaba aí. Ao contrário, fica cada vez mais apavorante, cada vez mais assustador.

E é aí que Jordan Peele brilha, conduzindo a trama. Em cerca de 103 minutos, ele afirma e reafirma que o racismo e suas práticas nada sutis são cenário, produção, roteiro e direção que introjetam a vivência do terror na vida de pessoas negras.

Diferentemente das obras do gênero que usam uma narrativa inverossímil para provocar medo, Peele ancora sua narrativa em situações reais, naturalizadas na sociedade, como tocar o corpo de uma pessoa negra no meio de uma festa, ou a própria festa, com cerca de 30 convidados brancos e apenas dois negros convidados – outros dois eram empregados da casa. Isso é corriqueiro, especialmente em um país como o Brasil, e, no entanto, jamais provocou sequer desconforto em ninguém, embora seja tão assustador quanto uma cena do clássico O exorcista.

Assim como é pavorosa a conduta de pessoas brancas, em uma sociedade racista, que é regada a silenciamentos e apagamentos, para além da exploração histórica que jamais foi reparada. Peele dá uma “hipótese” um tanto fantasmagórica, mas que pode muito estar escondida nos recônditos do inconsciente da branquitude: a vontade de abduzir pessoas negras e tomar seus corpos de maneira definitiva para melhor controlá-los e explorá-los, como a família Armitage estava acostumada a fazer.

Peele ancora sua narrativa em situações reais, naturalizadas na sociedade, como tocar o corpo de uma pessoa negra no meio de uma festa, ou a própria festa, com 30 convidados brancos e apenas dois negros.

Já em Nós, ou Us, seu segundo filme, que traz a versátil e impecável Lupita Nyong’o como estrela principal, Peele não se centraliza na crítica racial, mas traz para a narrativa questionamentos que tangenciam a vida da pessoa negra, como os efeitos das desigualdades sociais, principalmente diante da constante luta por sobrevivência física e simbólica.

Nesse filme, para aqueles que admiram a honestidade dos debates contemporâneos, que não se perdem na busca por uma popularidade duvidosa e tentam diariamente se desconstruir, Jordan Peele mais uma vez acerta em cheio: além de alfinetar sutilmente a branquitude, trazendo uma família completamente preta, retinta, feliz e unida, ele abre espaço para discutir até que ponto a socialização racista a que nós, pessoas negras, somos expostas, não afeta a percepção que formamos de nossos pares sociais.

Adelaide e Red, sua idêntica e assustadora versão, são desdobramentos de uma luta externa da negritude, mas que se veem como antagônicas nas relações internas desse mesmo grupo. Se, por um lado, a luta é por sobrevivência, por outro fica o questionamento: “Até quando vamos viver como se abaixo de nós não existisse ninguém?”

Em um sentido mais amplo, o brilhantismo de Peele se dá também pela amplitude de suas lentes críticas, já que torna possível um distanciamento da questão racial, que nos permite entender que essa luta por sobrevivências “entre iguais” está no escopo das desigualdades de classe social. E que psiquicamente, não apenas socialmente, também nos afeta.

Isso fica explícito nas palavras do próprio diretor em entrevista para o jornal britânico The Guardian, em março de 2019: “Nós somos nosso pior inimigo, não apenas como indivíduos, mas, mais importante, como um grupo, como uma família, como uma sociedade, como um país, como um mundo. Temos medo do ‘outro’ sombrio e misterioso, que virá e nos matará, tomará nossos empregos e fará o que for. Mas do que realmente temos medo é o que estamos suprimindo: nosso pecado, nossa culpa, nossa contribuição para nossa própria morte. Ninguém está assumindo a responsabilidade por onde estamos. Reconhecer, culpar a nós mesmos por nossa parte nos problemas do mundo é algo que não estou vendo”.

Apesar das diferenças que a pauta racial adquire, devidamente influenciada pelo território em que se desenvolve, alguns comportamentos e práticas são universais.

Pessoas negras que ascendem socialmente costumam ser fuziladas por outras pessoas negras, em uma luta oculta muito parecida com a das famílias de Red e Adelaide.

E, nesse fogo cruzado, o único vilão é a tokenização abordada por Peele em Get out, que abre espaço para alguns no “topo”, apenas para calar os que continuam na base com falsas esperanças de que chegar lá é possível.

Isso acontece nos EUA e aqui, em terras brasileiras, igualmente.