Houve uma época em que bastava soltar a expressão “tecidos tecnológicos” para afirmar que uma marca de moda pesquisava novos tipos de materiais ou abraçava formas mais inventivas de produção. Hoje, tal termo genérico não basta. É couro feito com cogumelo, seda fermentada como cerveja, algodão cultivado de forma regenerativa e até mesmo tecido que não é tecido na vida real ‒ sim, as criações que se satisfazem apenas em território virtual também contam.
Vários motivos geram a busca por novas matérias-primas e jeitos de fazer. Para a moda, claro, existe aquela tentativa de encontrar uma nova forma de beleza, algum efeito de vanguarda, o que dá corda a muitas experimentações. Na última temporada da São Paulo Fashion Week, por exemplo, Alexandre Herchcovitch, estilista que já colocou até casaco de cera na passarela, mostrou, na ÀLG, marca mais jovem da À la Garçonne, conjuntos esportivos feitos da mesma borracha usada na fabricação de tênis.
O material foi alterado a ponto de se tornar maleável o bastante para virar roupa, mas também seguir com o aspecto futurista que o torna tão interessante. Em determinados momentos, a transparência deixa o corpo de quem veste à mostra, imprimindo uma sensualidade irreverente, que não é avessa ao universo urbano em que tal roupa está inclusa.
Esse exemplo é de um veterano da indústria, mas, quando o assunto é experimentação no design, geralmente os protagonistas são da nova geração de estilistas. E essa nova geração está mais do que “on” e acontecendo. Mateos Quadros, por exemplo, é um designer do sul do país que tem desenvolvido corsets que ele chama de esculturas corporais.
O desenho é livre, com assimetrias e ondas orgânicas, mas a maior parte do processo é inteiramente digital, com o resultado ganhando vida por meio de uma impressora 3D. É manipulando polímeros termoplásticos com propriedades elásticas que esse jovem faz sua moda. “No digital, encontro uma maior liberdade em experimentar, desfazer, modificar, prever, encaixar e compor cores e texturas de diferentes maneiras”, explica Mateos.
O designer carioca Lucas Leão, por sua vez, tem interesse parecido com o equilíbrio entre o que é feito à mão e o que existe com o auxílio do computador. Prova disso é a sua mais recente apresentação, feita na Brazil Immersive Fashion Week, onde a passarela física ganhou uma camada de realidade aumentada e virtual por meio de um filtro do Snapchat. Além disso, Leão gosta de salientar como a manipulação têxtil é parte fundamental de seu processo criativo, a exemplo dos tecidos reciclados, que viram um pano exclusivo com estampas pintadas a mão.
Durante a semana de moda londrina de inverno 2022, a tecnologia também esteve presente no desfile do designer Jack Irving, que inflou e rodou peças ao vivo com a ajuda de pequenas ferramentas robóticas. Outro novo nome que faz sucesso nas redes sociais com seu design tech é Cameron Hughes, estilista que usa atributos da engenharia para fazer vestidos de pluma em movimento e tops com detalhes que rodam, entre outras aventuras.
Esses estilistas fazem acreditar que marcas como Hussein Chalayan e Iris Van Herpen não são acontecimentos raros e isolados, mas representam um movimento que só tende a crescer.
Lucas Leão.Foto: Divulgação
Tecnológico e sustentável
Quando Pedro Andrade apresentou sua nova grife de moda, a P. Andrade, na última temporada de moda paulista, chamou a atenção não só pela sua preocupação em desenhar uma roupa contemporânea, mas também pelo manuseio e tratamento inventivo de materiais e formas de criar. O uso de couro de cacto, além de outras fibras recicladas e biodegradáveis, por exemplo, foi um ponto central de sua coleção.
Se engana, porém, quem pensa que esse tipo de preocupação é coisa de pequenos engajados. Quando a Hermès fez uma colaboração recente com a MycoWorks, startup californiana que fabrica uma alternativa ao couro à base de cogumelos, ela deu um recado importante à indústria. Se até mesmo a tradicionalíssima casa de bolsas de couro como a Birkin e a Kelly aposta nesse tipo de inovação, está mais do que na hora de todo o mercado investir em mudanças.
O fato é que, se a moda pretende mesmo se juntar a outras indústrias comprometidas a desempenhar um papel responsável nos esforços globais de sustentabilidade, correndo em direção a metas para reduzir emissões de gases de efeito estufa e lidando com desperdícios, a busca por materiais alternativos é central.
Ainda que os números sobre os impactos da moda na biodiversidade sejam difíceis de avaliar com precisão, estima-se que 70% de suas emissões partam da produção, da preparação e do processamento de materiais. De acordo com as projeções do Instituto Global Mckinsey, a busca por uma descarbonização dessa parte da moda (a produção de matéria-prima) ajudaria a economizar 703 milhões de toneladas de emissões anuais.
Stella McCartney.Foto: Divulgação
Apesar da crescente investida do mercado em suprimentos substitutos, o levante é tímido. Um indicativo negativo disso é que a produção global de fibra sintética deverá aumentar de 109 milhões de toneladas, em 2020, para 146 milhões de toneladas, em 2030. O dado é da ONG Textile Exchange.
A barreira é trazer para a conversa os grandes nomes de cada segmento. A gigante esportiva alemã Adidas fez a promessa de eliminar, nos próximos anos, o uso de poliéster virgem em sua produção, dando preferência a outros recursos recicláveis. A fibra sintética, derivada do petróleo e produzida com reações químicas intensivas, é chamada de “o plástico da moda”, e não por acaso. Um dos tecidos mais populares, ela responde por cerca de 58% da produção global de fibras e deve ter uma participação ainda maior no futuro: 67% até 2030, segundo a consultoria Tecnon Orbichen. Se uma marca como a Adidas sugere a inversão, outras etiquetas podem ser influenciadas.
Desenhos para um futuro mais limpo e consciente já existem. Há quem acredite, por exemplo, na agricultura regenerativa, como o caminho para um impacto ecológico menos negativo e até mesmo positivo. Essa saída envolve principalmente uma atenção maior à rastreabilidade da matéria-prima e é a aposta de empresas como Burberry, Coach e Ugg.
P. Andrade.Foto: Divulgação
Já na defesa da reciclagem como uma via de transformar o segmento de matérias-primas em algo mais circular, estão nomes como a Ralph Lauren. A marca estadunidense fez questão de usar o evento de tênis Australian Open, de 2022, como chamariz para apresentar sua tradicional polo, agora feita de algodão reciclado.
No entanto, é a busca por tecidos alternativos que parece cativar mais o setor. Uma das fibras que mais têm feito sucesso é exatamente a usada pela Hermès e por Stella McCartney: o micélio. Proveniente de cogumelos, ela é a saída para o couro de vaca, responsável pela liberação de metano, um dos gases mais poluentes que existem. E há ainda pesquisas que envolvem sedas fermentadas, tecidos de plantas silvestres (Flwrdwn), de resíduos do abacaxi (Pinatex) e à base da uva como subproduto do vinho (Vegea).
Ao que tudo indica, está cada vez mais próxima uma revolução na moda que não envolva a alteração na silhueta, mas, sim, o jeito de essa indústria olhar para o mundo.