Ilustração: @kanioko
No começo, era só um passo atrás do outro: o pedômetro, popularizado no Japão na década de 1960, parecia uma maneira prática e divertida de estimular o hábito de caminhar. Décadas depois, a contagem de passos é uma ínfima parte do que são capazes dispositivos e aplicativos que contabilizam cada atividade que fazemos.
Com a proliferação digital, o que já foi mais voltado à saúde – apps que analisam performance física, gasto calórico e doenças potenciais – agora volta-se à parametrização de outros campos, ordinários ou mais ligados ao lazer. Há, inclusive, uma comunidade internacional dedicada ao “autoconhecimento através de números”: no site Quantified Self (Eu Quantificado), usuários compartilham experiências, ferramentas e projetos dedicados a medir os mais variados aspectos da vida, de frequência de dores de cabeça a “coisas que faço e coisas que eu digo que vou fazer”.
Nos últimos anos, esse desejo por autorrastreamento criou um nicho de dispositivos tecnológicos vestíveis para o recolhimento de dados. Quando a Apple lançou seu primeiro relógio digital em 2015, que mede uma série de manifestações de quem o usa, as peças da Fitbit, com ferramentas de análise “fitness”, estavam no mercado havia seis anos.
Em 2021, 29 bilhões de dólares foram gastos em dispositivos do tipo no mundo, de acordo com a empresa de análises CCS Insight, o que reforça um ponto levantado pelo autor Elias Cunha Bitencourt. Em seu livro, Smartbodies – Plataformas digitais, tecnologias vestíveis e corpos remodelados (UFMG), o pesquisador explica que, por processos algorítmicos, a informação foi deslocada de uma posição intermediária para a de protagonista na reelaboração de ações humanas e no design de máquinas.
Produtividade acima de tudo
Para além dos entusiastas de tecnologia, a massificação da parametrização das performances levanta algumas questões. Principalmente quando essa mensuração é voltada à competição de aspectos individuais e íntimos de experiências intelectuais ou do corpo, explica Rodrigo Nejm, diretor de educação da SaferNet Brasil, ONG que tem como objetivo promover os direitos humanos na internet. Não são raros os apps que oferecem incentivos – inclusive financeiros – para estimular a superação de metas. “Temos um ponto de atenção em relação à questão da ‘monocultura’: quando a lógica de produção passa a ser a única, ou mais importante, referência para o exercício da atividade”, pontua Nejm, que também é doutor em psicologia pela UFBA e pesquisa a privacidade e exposição de adolescentes nos ambientes digitais.
Informações dos usuários podem nutrir empresas sobre o tempo de uso de telas, batimentos cardíacos, horas de sono e, em alguns casos, ajudam a construir estimativas sobre a frequência semanal ou mensal de relações sexuais. “São muitos dados íntimos coletados e isso tem que ser equacionado: qual é o custo da experiência social nessas redes? Será que milésimos de centavos de criptomoedas valem o custo psicológico, social e mental de proteção de dados que eu tenho produzido?”, indaga o psicólogo. Outro ponto levantado pelo especialista recai sobre o design dos aplicativos, que, segundo ele, pode gerar adição e forçar a permanência e a competição. “Qualquer desconexão é perda de ponto, e isso é muito cruel. Hoje, temos tentativas de fazer com que os pontos acumulados sejam mantidos (após uma desinstalação) e que não haja mais o incentivo à conexão ininterrupta”, explica.
Caminho de ouro
O aplicativo Sweatcoin recompensa os usuários por seus passos com moedas digitais (batizadas com o nome da empresa, mas com letra minúscula). A plataforma se conecta a apps de rastreamento, como Google Fit e Saúde, da Apple, e registra o caminhar ao longo do dia – quanto maior a distância, maior o retorno.
Sob a premissa de estímulo a uma vida mais saudável, os sweatcoins são trocados por produtos e serviços em um marketplace ou doados a instituições de caridade. Mil passos dados valem um sweatcoin. No marketplace do aplicativo, um bracelete personalizado sai por 35 moedas e um cupom de desconto de 25 dólares (cerca de 124 reais), em lojas como Google Play Store, Adidas e Amazon, pode ser trocado por 1,250 sweatcoin. O app também realiza leilões, nos quais é possível dar lances de 29 mil, em média, por relógios digitais e televisões.
“Uma forma que eu gosto de descrever é que o Sweatcoin provê aquele pequeno incentivo às pessoas a subir/descer as escadas em vez de andar de elevador, ou a saltar do ônibus um pouco antes”, explica a diretora de marketing da empresa, Jessica Butcher. Para a executiva, essas pequenas “cutucadas” fazem uma grande diferença não apenas na saúde física e mental de cada indivíduo, mas também na sociedade, quando acontecem em escala.
“Nossa missão é promover uma visão saudável e holística de bem-estar, na qual o movimento é um fator contribuinte, e não causa. De modo geral, nós sempre enviamos a mensagem aos usuários de que o que eles fazem é suficiente.” Jessica Butcher continua: “Nosso objetivo é melhorar os hábitos de movimento ativando a intenção dos usuários. Por mais que isso não exija a medição da variável que desejamos aumentar, nós sempre colocamos a performance no contexto de uma atitude saudável para o autocuidado”.
A empresa, sediada no Reino Unido, tem 90 milhões de usuários – 8 milhões no Brasil. Em abril, a Sweatcoin lançou sua própria criptomoeda, a SWEAT. Desde então, 9 milhões de usuários investiram nela, mais de um terço deles apenas por aqui. A aplicação da SWEAT vai, como outras criptomoedas, desde apostas ao câmbio por dólares. Também é possível trocar por outras criptos, como o bitcoin.
“Nós estamos trabalhando para criar um mundo com opções úteis para nossos usuários. É dessa maneira que incentivamos o movimento (físico). Será possível comprar NFTs, bens e serviços, e gerenciar uma grande variedade de fundos”, complementa a diretora de marketing. Jessica afirma que o app nunca vendeu informações recolhidas dos usuários a terceiros (inclusive anunciantes) e destaca que essas são armazenadas em segurança.
Páginas da vida
No mundo parametrizado, nem mesmo a leitura escapou da onda de quantificação. No site e aplicativo Goodreads, a maior comunidade de leitores do mundo, com 140 milhões de membros, é possível descobrir, avaliar e localizar livros já lidos, criar listas de obras, seguir autores, participar de clubes e se inscrever em desafios de leitura.
Em todo mês de janeiro, a plataforma, que pertence à Amazon, inicia o Goodreads Reading Challenge. “Esse é um modo interativo para que os leitores possam se motivar a ler mais, ao estipular um número de livros que gostariam de ler no ano”, afirma a empresa em comunicado enviado à ELLE. “Até o momento, em 2022, 5,1 milhões de membros se inscreveram, com uma meta de, em média, 47 livros.” O desafio não dá recompensas, “além da satisfação de saber que você atingiu uma meta pessoal de leitura”.
O Goodreads possui ainda uma estrutura de rede social, na qual os usuários conferem quais produções seus amigos, e autores renomados, leem. “Essas conexões permitem descobrir obras, assim como interagir por meio de comentários e mensagens diretas”, complementa a empresa.
Incentivos à leitura costumam ser uma boa ideia, mas não para todos e em qualquer circustância. Em entrevista à revista inglesa i-D, Karen, uma influenciadora de livros no Instagram que criou uma conta no Goodreads inicialmente por diversão, relata a constante pressão de provar sua credibilidade na plataforma ao ler o máximo de livros que conseguia – caso contrário, não teria tanta novidade para comunicar. O estabelecimento de metas para completar o desafio de leitura, diz ela, criou ainda uma competição consigo mesma, assim como estimulou a criação ininterrupta de novos passos a serem dados, o que resultou em estresse e ansiedade.
Questionada sobre esse ponto e se haveria algum tipo de medida ou instrução de acompanhamento, prevenção ou notificação do público, a empresa afirma à ELLE: “Assim como as metas que as pessoas criam no começo do ano para melhorar seus hábitos, os membros do Goodreads podem estabelecer um objetivo de leitura para ajudá-los a ler mais no ano que virá”. A declaração, por fim, ressalta: “Os membros sempre podem ajustar a quantidade de livros que se comprometeram a ler ao longo do ano”.
Comparar-se com o outro não é algo inaugurado pela internet nem necessariamente engatilha sofrimento emocional e psíquico, afirma Rodrigo Nejm. “Existe uma dimensão de comparação social que é a de ter referências sociais, subjetivas e simbólicas. A interação dá oportunidade de ver o outro na diferença e isso nos inspira.”
Entretanto, a potencialização dessa comparação por dispositivos digitais e o compartilhamento de dados, atrelados ao estímulo por performance de uma atividade antes descompromissada, “pode ter um efeito bem nefasto” quando a dosagem está desregulada, analisa Nejm. E, nesse caso, cabe a cada um fazer o seu balanço: “Qual é a capacidade de dosagem das experiências? Comparar a sua performance com a do outro te adoece e causa sofrimento ou se enquadra mais em uma dinâmica de compartilhamento e conexão? O cálculo tem que ser feito o tempo todo”, diz.