Se o presente anda pesado e o sorriso ainda é murcho, a cultura busca formas de oferecer um escape, uma pílula antidepressiva que seduza uma geração de jovens engolida pelas incertezas que rondam o futuro.
Entre o retorno à vida em 2D dos 1990, quando a virada do milênio foi falsamente vendida como chave para dias melhores, e tendências que resgatam a nostalgia adolescente – kidcore, Y2K, nerd vintage –, a moda transformou em artigo de luxo a estética dos cartuns. Sim, os desenhos animados que formaram leitores e estimularam a fantasia numa época em que o videogame não conseguia transportar ninguém para realidades paralelas.
A enxurrada de traços aplicados a roupas e acessórios começou logo após o início da pandemia, em 2020, quando Virgil Abloh resolveu criar personagens animados para sua coleção de verão 2021, desfilada em formato digital. Em vez de modelos humanos, a marca vestiu criaturas sem gênero ou espécie definida com roupas de pegada pop, numa série de pequenas histórias com nome Zoooom with Friends.
Dois meses depois, quando Abloh levou suas criações para Xangai, primeira parada da série de desfiles numa Ásia que oscilava entre os lockdowns e a esperança de uma vacina contra a Covid-19, os modelos, agora humanos, seguravam ursinhos de pelúcia e estampas pueris. Foi assim que ele escancarou as motivações dessa fábula animada, construída para servir como alento e abraço contra o medo.
Já naquela época – e um tanto antes, para ser sincero –, o criador, falecido em novembro passado, falava da importância de olhar o mundo pelos olhos de uma criança, livre dos moldes e opressões impostos pela sociedade. A ideia, ainda que potente, foi repetida em todas suas últimas apresentações até que reverberou por toda a indústria.
Jeremy Scott, da Moschino, por exemplo, pôs bonecas na passarela da semana de moda de Nova York. No ano passado, resolveu criar desenhos para a colaboração que a marca assinou com a Riachuelo, cheia de peças com desenhos de frutas humanoides e personagens da Looney Tunes.
Acima e abaixo, bolsas Loewe com os animes do Studio Ghibli. No centro, cartum da linha masculina da Louis Vuitton.Fotos: Divulgação
Em dezembro, outra parceria mexeu com os sentidos dos fashionistas no momento em que a Loewe lançou a primeira colaboração com o Studio Ghibli, empresa japonesa de animes responsável por filmes como A viagem de Chihiro e Meu amigo Totoro. Naquele mês, Totoro foi quem surgiu em bolsas, pulôveres e moletons, e, um ano depois, Chihiro e o espírito No-Face estampavam a cápsula batizada Spirited Away.
Em entrevistas, o estilista Jonathan Anderson admitiu que, para além do aspecto manual dos animes, a escolha tinha a ver com o momento de incertezas e como é importante olhar o mundo pelos olhos de uma criança (alô, Virgil?). E assim, como falamos, o que parecia algo pontual, logo se mostrou inerente ao pensamento coletivo dos designers de moda.
No luxo, a tendência virou avalanche quando os traços animados deram as caras na Balenciaga, em outubro de 2021. O diretor criativo Demna se uniu aos produtores do seriado Os Simpsons para criar um episódio inteiro só para mostrar sua coleção.
Marge, Homer, Bart, Lisa. Todos viraram modelos para o desfile na semana de moda de Paris, transformado em sessão de cinema com uma plateia de estrelas, essas de carne e osso, vestidas com peças da grife espanhola. A união entre ficção e realidade tomaria as ruas de forma irreversível.
Prova disso foram as paredes da flagship da Levi’s em Paris, no miolo da Avenida Champs-Élysées, tomadas neste ano pelos mesmos personagens usados pela Balenciaga. A coleção em parceria com a grife de jeanswear era composta de jaquetas, camisetas e calças estampadas com personagens amarelos.
Balenciaga, verão 2022.Fotos: Divulgação e Getty Images
Parte das peças já chegou ao Brasil. O gerente de produto da Levi’s, Thiago Leão, explica que, para os brasileiros, esse tipo de imagem tem um significado mais amplo, porque “crescemos em frente à TV, então, neste momento, há um apelo emocional ainda mais forte se considerarmos que as pessoas estão tentando se motivar de alguma forma, procurar esperança em meio ao desencanto”.
E a fórmula já é um sucesso na grife. Leão afirma que, quando entra em cena esse tipo de colaboração, cujos contratos já incluíram personagens menos ácidos do que os Simpsons, à exemplo do Mickey, da Hello Kitty e do universo Mario Bros, há um pico de vendas em torno de 30% em categorias de produto como moletons e camisetas.
Do ponto de vista mercadológico, os desenhos atingem um público amplo, tanto da geração Z, que não acompanhou o boom desses personagens, mas é atraído pelo contexto pop, quanto para a mais antiga, a “millennial”, para a qual os desenhos têm apelos afetivos.
A mesma lógica foi aplicada pela Converse, em março, quando a marca lançou uma coleção de tênis com os personagens do anime japonês Pokémon. Além de Pikachu, Bulbasaur, Sharmander, Squirtle e Jiggypuff saíram de suas poké bolas materializados em modelos de Chuck Taylor e nas peças de vestuário com tiragem limitada.
Agora, a marca estadunidense do All Star se prepara para trazer ao Brasil a coleção em parceria com a franquia Peanuts, a turma do Snoppy e do Charlie Brown, com lançamento previsto para o início de julho.
Engana-se, porém, quem acha que usar desenhos animados ou desenvolver parcerias com nomes relevantes do universo pop serve para qualquer grife. De acordo com o diretor global de design da Converse, Matt Sleep, “se uma marca não está fazendo o trabalho para produzir algo que os consumidores desejam, então uma colaboração realmente grande não pode acontecer. Você tem de ter uma base muito sólida para construir algo novo e ainda mais incrível”.
Para além dos personagens já conhecidos e até um tanto nostálgicos do mundo dos cartuns, outro desenho que tem uma relação de longa data com a moda é o smiley. Nomes como Raf Simons, Moschino, DSquared2, Havaianas e uma penca de estilistas e marcas importantes da indústria colocaram em suas peças o sorriso amarelo. Nos 50 anos desse ícone da cultura pop e espécie de avô dos emojis, passarelas, lojas e campanhas foram dominadas pela carinha feliz, patenteada nos anos 1970 pelo jornalista francês Franklin Loufrani.
Sua origem data do apogeu da luta por direitos civis na Europa e questionamentos sobre a realidade caótica da geopolítica mundial. A carinha feliz era um pedido de paz, mas também podia ser lida com ironia, aquela ideia que virou, para nós, no Brasil, a expressão sorriso amarelo.
Em março, sorriram com gosto as unidades da Galeries Laffayete, em Paris, totalmente adesivadas, e também, até abril, o CJ Shops, no bairro dos Jardins, em São Paulo. Assim como nas lojas francesas, o grupo JHSF vendeu os artigos comemorativos que, além de festejar o cinquentenário da Smiley Company, tratava sobre uma onda de esperança por dias menos tensos.
Produtos Converse com estampas da série Pokemon (acima e abaixo) e da franquia Peanuts (centro).Fotos: Divulgação
“Durante estes tempos difíceis, acreditamos que há uma vontade de mais energia positiva e, claro, humor. Todo mundo está procurando um tempo despreocupado para fugir dos eventos globais, e a moda deve ser uma injeção dessa alegria e otimismo”, afirma a dupla à frente da Dsquared2, os irmãos canadenses Dan e Dean Caten.
A partir de notícias de que ainda não se vislumbra um desfecho pacífico para a Guerra da Ucrânia, ou que, no Brasil, a extrema direita está cada vez mais disposta a levantar armas, parece natural que a fórmula da nostalgia animada invada as araras. “As gerações jovens e os consumidores estão cada vez mais atraídos por imagens envolventes, então, os desenhos animados podem suprir essa necessidade. Podem ser ferramentas úteis para chamar sua atenção”, explicam os irmãos estilistas.
Sobre a febre dos desenhos, Nicolas Loufrani, atual o CEO da Smiley e filho do fundador da companhia, tem ressalvas sobre o potencial de os cartuns atingirem uma parcela mais ampla e jovem da sociedade. Segundo ele, “a nostalgia é importante para alguns, mas para as novas gerações ela não tem o mesmo impacto”. “Por outro lado, para quem tem 8 anos hoje, o sorriso é tão relevante quanto é para os seus pais. É universal.”
Mas, como dizer para pessoas que sofrem os descalabros da violência e que não veem nenhum humor em trajar peças felizes, sejam as carregadas de sorrisos, sejam as que estampam personagens cuja memória está vinculada à felicidade?
“Riso e humor estão em níveis diferentes. Você pode sorrir para as pessoas sem humor, por exemplo, mas o sorriso é o básico da convivência em sociedade. Concordo que é difícil dizer, ‘vá e sorria’, para quem está no meio de um conflito, no Iêmen, no Afeganistão ou na Ucrânia. Ao mesmo tempo, é cabal que não nos deixemos contaminar pela negatividade”, afirma Loufrani.
Para ele, é questão de sobrevivência usar a máxima de que “sorrir gera sorrisos”. “É dessa vontade que estamos falando, de gerar empatia e respeito. Coisas que precisamos mais que nunca.”