O retorno de Tim Bernardes

Integrante do trio O Terno, cantor lança o segundo álbum solo, enquanto sai em turnê pelos Estados Unidos com a banda Fleet Foxes e se consolida como compositor para nomes como Gal Costa e Maria Bethânia.

Uma semana após o lançamento de seu segundo álbum solo, Mil coisas invisíveis, em 14 de junho, nas plataformas virtuais e em vinil, o músico, cantor e compositor paulistano Tim Bernardes parte para uma turnê pela Costa Oeste dos Estados Unidos, onde abrirá 17 shows para a banda indie folk Fleet Foxes, de Seattle, seguidos por apresentações solo. Em carreira individual ou com seu grupo, O Terno, Tim tem construído pontes com a música independente internacional: em 2019, gravou “Volta e meia” com o estadunidense de ascendência venezuelana Devendra Banhart e o japonês Shintaro Sakamoto e, no ano seguinte, cantou em português no álbum Shore, do Fleet Foxes.

Tim afirma que os passos individuais não atrapalham a trajetória de uma década de O Terno, em “hibernação” desde o início da pandemia, mas muito presente no discurso do artista, que frequentemente fala de si na primeira pessoa do plural, como se não houvesse Tim Bernardes e O Terno como entidades separadas: “Pusemos O Terno em função soneca. Quando a banda voltar a engatar, vou fazer o que fazia antes e gosto muito, que é estar em turnê com os dois projetos ao mesmo tempo”.

Após a estreia solo com Recomeçar (2017), Mil coisas invisíveis volta a expor a influência da música dos anos 1960 e 70 sobre Tim, num arco que vai do folk elétrico de Bob Dylan (uma faixa dylanesca do novo álbum se chama “A balada de Tim Bernardes”) à brasilidade da tropicália e do Clube da Esquina. Em “Meus 26”, Tim, hoje com 30 anos, canta sobre fazer 27 anos, como se o período de pandemia houvesse congelado o tempo: “Aos 26, fiz o primeiro disco solo, botei minha própria cara a tapa sem estar escondido atrás da banda ou sem estar morando na casa dos meus pais pela primeira vez. Foram saltos de independência, sinto que minha personalidade de indivíduo se condensou um pouco mais, algum tipo de primeiro passo de maturidade”.


Tim Bernardes – Mistificar (Official Video)

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De oito anos para cá, Tim tem se consolidado como compositor, fornecendo canções para artistas da geração dos anos 1960, como Tom Zé (a parceria “Papa perdoa Tom Zé”, de 2014), Gal Costa (“Realmente lindo”, 2018), Jards Macalé (“Buraco da Consolação”, 2019, também em parceria com o veterano) e Maria Bethânia (“Prudência”, 2021), mas também para nomes contemporâneos, como Adriano Cintra (ex-CSS), Nana Rizinni, Tiê e Filarmônica de Pasárgada. Curiosamente, Tim é filho de um representante da chamada vanguarda paulista dos anos 1980 e 90, Maurício Pereira, que formou com André Abujamra a dupla iconoclasta Os Mulheres Negras. Segundo ele, a influência paterna se manifesta mais na atitude de independência e autonomia do que na sonoridade: “Meu pai tem uma cabeça muito aberta, é muito pesquisador, e isso em algum lugar deve ter me influenciado, de ser curioso e não achar que o padrão é absoluto”.

Na entrevista a seguir, Tim fala sobre perspectivas de construir uma carreira internacional, sua relação com a emoção e as canções de amor (“Velha amiga”, por exemplo, cita Roberto Carlos textualmente), a música do novo trabalho composta para a namorada – “BB (Garupa de moto amarela)” – e o desafio de pertencer ao sexo masculino nos anos 2020.

Como aconteceu a oportunidade de fazer uma turnê nos Estados Unidos?
Em 2020, Robin Pecknold, (vocalista) da banda Fleet Foxes, me convidou para cantar no disco deles. Já era fã havia um tempão, seguia no Instagram, depois descobri que ele conhecia o disco do Terno e o meu disco, e a gente trocou uma mensagem ou outra. Participar do disco Shore (2021), para mim, já foi surreal. Não imaginava poder ter contato com eles. E agora vou abrir os primeiros 17 shows, a perna da turnê deles na Costa Oeste. Quando seguirem, vou aproveitar e fazer alguns shows sozinho por lá. Estou ansioso, animado. Já é muita novidade, e, ainda vindo de todo esse tempo sem shows, é um contraste radical de estar fechado em casa, em estúdio, para ir para apresentações quase todos os dias, ônibus, uma coisa que nunca fiz. Estou com um friozinho na barriga, mas feliz e animado.

Qual é o vínculo entre o som do Fleet Foxes e o seu?
Fui sentindo aos poucos. Depois do meu disco Recomeçar (2017) e do <Atrás/Além> (2019), do Terno, teve bandas de lá (EUA e Canadá) de que eu gostava que vieram falar com a gente: Fleet Foxes, BadBadNotGood, Dirty Projectors. Acho que eles veem uma ponte com a música brasileira dos anos 1970. É uma galera do indie norte-americano que gosta do (arranjador carioca) Arthur Verocai, do Clube da Esquina. Talvez enxerguem no tipo de música que eu faço uma continuidade ou um parentesco com esse tipo de sonoridade.

 

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E a ligação com Devendra Banhart e Shintaro Sakamoto?
No fim de 2017, O Terno fez um festival pequeno na Alemanha que tinha Devendra e Shintaro no line-up. Um pouco antes a gente tinha aberto o show do Devendra em São Paulo, quando conhecemos ele. Não sei se ele já tinha ouvido O Terno antes, mas, quando a gente se encontrou no dia do show, tinha visto os clipes, falou que gostou. Na Alemanha, a gente pôde curtir um pouco mais, viu o show um do outro. Na volta, O Terno estava fazendo <Atrás-Além> e chamamos Shintaro e Devendra, que gravaram cada um à distância (a faixa “Volta e meia”). Devendra tem uma relação com a música brasileira, e com a música brasileira de que O Terno e eu bebemos, os cantores e compositores dos anos 1960 e 70 e a continuidade disso. Tinha um parentesco, um pé no indie, mas também outro no tropicalismo, na psicodelia, de um jeito revisitado, simples, de cantor-compositor. É relacionado com música brasileira, mas também com o que está acontecendo de contemporâneo, que teve influências sessentistas e setentistas, mas não busca fazer um negócio retrô. É uma influência que só entrou meio por osmose no DNA e transparece quando fazemos canção nova.

Por que essa geração de músicos em atividade há mais de 50 anos ainda tem um impacto tão grande na sua?
Tenho a sensação de que a nossa geração e a nossa turma cresceram ouvindo só o que vinha do rádio, mas começamos a tocar no colegial, quando começou a dar para baixar discografias (da internet). A sonoridade do rádio é meio padrão, depois dos anos 1980 a indústria ficou um pouco mais padronizada, se não muito mais. Quando a gente começou a baixar e ouvir, ficamos muito impactados, cada música dos Mutantes tem um som de guitarra totalmente diferente. Não é que a gente quisesse soar como aquilo, mas ali eles estavam querendo inventar sonoridades. O que me marca muito daquela geração é que é muito criativa e livre para criar e evoluir, o que, a partir de uma guinada da indústria mundial, no início dos anos 80, ficou difícil, porque não se podia errar e tinha que ganhar dinheiro imediato. O cara vai investir no Jorge Ben ou no Milton Nascimento para que no quarto disco esteja dando lucro? A necessidade do retorno imediato nos anos 1980 e 90 limitou um pouco a liberdade criativa de quem estava na indústria.

Qual foi o impacto da vanguarda paulista dos anos 1980 e 90 para você?
Fui conhecendo a obra do meu pai como filho. Quando comecei a achar que estava virando músico, com 14 anos, e fui ouvir (o trabalho dele) como produtor de música, foi maluco porque já conhecia todas as músicas. Só que eu ouvia de uma maneira afetiva. Teve um momento que deu uma virada, disse “nossa, isso é bem maluco”. A vanguarda paulista foi uma coisa que O Terno também ouviu. Sgt. Peppers, dos Beatles, era a Beyoncé da época. A vanguarda paulista aconteceu, mas num nível mais underground. Isso mostrava para a gente que o maluco não precisa ser só underground. Ouvindo os vinis do meu pai lá em casa, tinha muita coisa da música brasileira dos anos 1960 e 70 e muita coisa de jazz. Eu me sentia roqueiro, então tinha alguns discos do Jimi Hendrix, mas tinha coisas que já sentia que tinha que procurar em outro lugar, tipo Spencer Davis Group, Yardbirds. A gente gostava das bandas inglesas dos anos 1960. É uma mistureba.

Como ele se comporta em relação à musicalidade dos filhos? (O irmão mais novo, Chico Bernardes, também é músico)
De uma maneira muito livre também. Foi muito bom, porque ele nunca deu pitaco. Se a gente pedia uma ajuda, ele dava, mas era mais “faz seu lance aí, está tranquilo”. Não foi alguém que estava jogando dogmas, “você não pode se vender”. Meu pai tem uma cabeça muito aberta. Ele falava que não tinha essa de música boa e ruim. Lembro que a “disqueteira” dele no carro era Furacão 2000, Hot Rats, do Frank Zappa, Paolo Conte, todos os álbuns do Tim Maia, disco de pagode. Uma vez, ele reparou que eu estava gostando de umas coisas meio punk, com 13 anos. Cheguei em casa e tinha um Combat Rock, do The Clash, na minha cama. Era muito sem invadir, para mim foi ótimo.

“Meu pai tem uma cabeça muito aberta. Ele falava que não tinha essa de música boa e ruim.”

 

E entre os artistas do presente, quem influencia você?
Num primeiro momento, foi o passado tanto daqui, do Brasil, como lá fora e as influências contemporâneas, muito do indie internacional. A gente ouvia muito Fleet Foxes, Dirty Projectors, Mac Demarco, Tame Impala, Black Keys. E aqui nunca me permiti muito me influenciar diretamente pelos músicos muito próximos, para não parecer um colega ou outro. Mas tem muitos que admiro, desde quem veio um pouco antes, tipo Tulipa Ruiz, Céu, até a nossa geração, como Boogarins, e tenho me identificado muito com gente de uma geração um pouquinho mais nova que eu, Ana Frango Elétrico, Bala Desejo, no rolê mais indie ou MPB. Fora disso, gosto de Baco Exu do Blues, de bastante gente.

 

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Chico e Tim Bernardes fotografados por Bob Wolfenson na ELLE Volume 03

 

Como a pandemia mudou o modo de fazer e gravar música?
(Suspira) Não sei dizer exatamente como mudou, mas a roda deu uma parada por um momento. O Terno nunca tinha parado por muito tempo. A gente nem tirava muito férias, foi emendando uma coisa na outra desde 2011, e estava um pouco saturado, a estrada cansa. Começa com paixão e às vezes você tem que lidar com o fato de que talvez não quisesse ter um show hoje. A pandemia, para mim, foi muito de eu trabalhar no estúdio sozinho no meu disco. Comecei a juntar meus instrumentos e pela primeira vez montei meu home studio. Fico curioso sobre como vai ser quando O Terno voltar a ensaiar. Se você está menos ansioso, talvez toque menos afobado, deixe mais espaços vazios. Não sei como vai ser. O Terno completou uma década. A gente tinha 20 anos e acabou essa história com 30, e o nosso público também. Estou curioso porque tenho a sensação de que essa próxima década pode apresentar um Terno adulto.

Como você trata os temas de amor nesse novo álbum?
São de várias épocas diferentes. Mas tem desde canções de sofrência e uma crônica como “Última vez”, mais densa, até uma canção mais leve, como “BB (Garupa de moto amarela)”, para equilibrar. Tem umas mais dramáticas, como “Olha” e “Velha amiga”, que é mais nostálgica. Não tem uma abordagem específica com amor, mas é um tema de que gosto muito em música e tende a ter uma potência quando estou sentindo, mesmo que não esteja contando literalmente alguma coisa que vivi.

 

“A masculinidade, por causa do feminismo, é um tema sobre o qual a gente se perguntou muita coisa de uns cinco ou sete anos para cá.”

 

Quem seria o “BB”?
Nesse caso, é específico, foi a primeira música que fiz para minha namorada (a fotógrafa Jazzie Moyssiadis), quase de brincadeira, uma canção despretensiosa. Não fiz para estar no disco. Estava no Natal, ela foi viajar, fiz uma canção de presente. “Última vez” não é uma coisa que aconteceu comigo. Ela conta uma cena mesmo. É influenciada por coisas que já vivi, mas nem sempre é literal. “BB”, por acaso, é.

Como a moda influencia você, como indivíduo e como artista?
A moda é uma parte gigante da cultura pop. Dos anos 1960 pra cá, a música popular, o comportamento, a estética, o cinema, a fotografia, a moda, tudo isso acho que está muito misturado. Então, não é só a música que me influenciou e me vem como inspiração. Quando me ligo em alguma coisa dos Beatles ou do tropicalismo, vêm junto as ideias, a estética e, consequentemente, a moda. Tudo isso são pontas de expressão de um mesmo centro estético. As roupas dos Rolling Stones no fim dos anos 1960 expressam uma coisa que é semelhante ao que eles estavam querendo mostrar musicalmente ou em matéria de comportamento, por exemplo. Gosto muito de moda nesse sentido de ser mais um jeito de você expressar, no seu exterior, seu modo de estar no mundo. Você usa tal roupa e a pessoa entende que você gosta daquelas bandas, e seu gosto por elas tem a ver com tal estilo. Gosto disso, do quanto a moda é um indicador de qual vertente da cultura pop você está incorporando na sua vida.

 

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Como você descreveria seu estilo?
Isso vai mudando e se transformando, mas reflete o meu estilo na música. Tem uma coisa muito forte dos anos 1960, de cores e texturas, muito de um jeito que penso a música. O que me salta de contemporâneo na cultura e música dos anos 1960 e começo dos 70, e o que tem de atemporal no que há hoje de mais moderno no indie ou nas tendências da cultura pop. Há alguma coisa entre esses dois lados: esse vintage, sem ser puro “retrosismo”, e um moderno, que não é só a tendência.

Como é pertencer ao sexo masculino para sua geração?

A masculinidade, por causa do feminismo, é um tema sobre o qual a gente se perguntou muita coisa de uns cinco ou sete anos para cá. Tendo a achar bom que esse questionamento começou com a gente bem novo, e acho mais legal ainda ver isso no meu irmão ou em gente mais nova. Poder começar a questionar certos dogmas com 20 e poucos anos é uma coisa boa. Você não tem muito uma convicção de que é assim ou assado. Tendo a ser muito observador nesse assunto, a ouvir mais, entender qual é a onda. É realmente um assunto que é efervescente hoje em dia e está muito em transição. A gente está sempre em aberto para ver que, ah, isto que você pensava na verdade não é legal. Conscientemente, tem a clareza de que a gente nunca se identificou com o cara machão, desde a escola, em que a gente era os nerds da música.

A figura masculina historicamente associada com a agressividade não tem a ver com O Terno, que vem da ternura.
Nunca foi por causa de reflexões desse tipo, mas eu gosto de canções de amor desde sempre, gosto de coisas emocionais. Já não tinha essa referência do homem mais agressivo lá em casa, então desde o começo foi por outra linha. Mas tem muita coisa sutil que a gente repara de agressividade no nosso padrão psicológico, como a gente lida até com a gente mesmo. A coisa opera num nível mais sutil, mas tem muita coisa para ver.