Quem acompanha o noticiário de moda já deve ter lido ou ouvido sobre as mudanças nas funções de um estilista dentro de uma grande marca. Quer dizer, nas funções de um diretor criativo. Há quem diga que esse cargo é como o do maestro de uma orquestra. A ele são confiados o compromisso e a responsabilidade de reger harmonicamente toda uma variedade de instrumentos, músicos e sonoridades dentro e fora dos palcos.
Acontece que as condições nas quais essa sinfonia é performada mudaram completamente. Ou melhor, seguem mudando constante e rapidamente. Quem as escuta também se transforma quase que diariamente. Manter tudo em perfeito uníssono é tarefa cada vez mais difícil, impossível até ou, muitas vezes, insuficiente. Mas chega de metáforas. Voltando para moda, faz tempo que estilistas e diretores criativos tiveram que descer das torres de marfim (alguns foram até arremessados de lá).
A figura de Coco Chanel nos anos 1920, de Yves Saint Laurent na década de 1960 ou de Tom Ford na virada do milênio é coisa do passado, literalmente. Nas últimas décadas, o papel de um diretor criativo foi revirado e já não mais começa e termina apenas no desenvolvimento das coleções. Exigindo um conjunto de habilidades cada vez mais robusto, quem ocupa o cargo de design mais alto de uma etiqueta de moda deve, agora, estender a sua visão para as estratégias de lojas, campanhas de marketing e valores da empresa.
Tom Ford.Foto: Getty Images
Em 2009, a Maison Martin Margiela anunciava oficialmente o que já não era mais um segredo para muita gente do meio: o fundador e então diretor criativo havia decidido se afastar da própria marca. Antes mesmo do comunicado oficial, a aura enigmática de um estilista que não aparecia ao fim dos seus desfiles, dava raras entrevistas (todas por fax), já fazia falta nas passarelas. Daí a não-surpresa.
Uma década depois, a saída foi recordada no Belgian Fashion Awards 2018, com uma homenagem à carreira de Martin Margiela. Embora ninguém esperasse que ele quebrasse o silêncio para a ocasião, o estilista enviou uma carta de agradecimento, lida durante a cerimônia. “Não aguentava mais a pressão mundial e as exigências comerciais crescentes”, escreveu o belga, relembrando a sua decisão. “A overdose de informações transmitidas nas redes sociais destruiu a emoção da espera e arruinou o efeito surpresa.”
A crítica feita quatro anos atrás poderia facilmente ser repetida hoje, ainda que com menos efeito. Martin Margiela construiu o seu legado de forma quase anônima, não cedendo aos caprichos da mídia dos anos 1990. Se o boom inicial das redes sociais na primeira década dos anos 2000 o incomodou, imagine agora. O que não quer dizer que não possam existir um ou outro designer que ainda prefira a discrição. Já a absoluta ausência, definitivamente, não é mais uma possibilidade. Pelo menos não por ora.
“É uma indústria difícil, mas sei estar em um ateliê, sei trabalhar com a equipe de merchandising, sei como as roupas vão ser traduzidas em estoque e sei como fazer imagens de marketing”, afirmou Matthieu Blazy, em entrevista ao Business of Fashion, em fevereiro deste ano, ao assumir o cargo de diretor criativo deixado por Daniel Lee. Suceder o profissional responsável por revitalizar a Bottega Veneta e alavancar a sua receita não é uma tarefa fácil, mas, de cara, o designer pareceu confiante para assumir o posto e, mais do que isso, ciente das funções multifacetadas exigidas.
Hedi Slimane.Foto: Getty Images
Para além de criar um produto best-seller, o diretor criativo precisa saber se comunicar com o mundo. Às vezes, isso envolve excluir para sempre o acento do nome de uma marca ou mudar o foco para alcançar uma nova geração. Como bem fez Hedi Slimane na Celine. Entre mudanças radicais que despertam ira em alguns, o estilista francês costuma evocar símbolos de autoindulgência. Ao se chocar com os códigos da fundadora da casa, a imagem inspira as mais ferozes críticas de quem acredita que ele está desmantelando um legado sob o pretexto da modernização.
No entanto, a decisão de nomeá-lo se prova bem-sucedida financeiramente. E para grandes empresas, como o grupo LVMH, isso importa bastante. O aumento consistente nas vendas se dá, em parte, graças aos fãs devotos que acompanham Slimane desde os seus dias na Dior Homme. O seu nome pode ser controverso, há quem ame e quem odeie, mas, a esse ponto, parece já ter se tornado tão grande quanto as marcas para as quais já trabalhou e trabalha.
O fenômeno é um tanto perigoso, mas não demonstra sinais de desaceleração. Observe a Jacquemus, por exemplo. Em poucos anos, o seu fundador e diretor criativo, Simon Porte Jacquemus, virou uma celebridade por direito próprio. Na conta da marca no Instagram, não há só produtos e campanhas superproduzidas. Há também selfies do estilista ao lado do futuro marido (nas quais, responde a todos os comentários homofóbicos), fotos curtindo a noite com Dua Lipa e até de seu cachorro.
Simon Porte Jacquemus.Foto: Divulgação
Em entrevistas, Simon diz gerenciar o perfil sozinho. É que ele não é o estilista francês sisudo e intocável que se construiu no imaginário pop. Pelo contrário. Trata os seus clientes como amigos, convidando-os diariamente a experimentar o mundo através de seus olhos, como se dançasse em um espectro entre designer e influenciador. A estratégia, que beira a pessoalidade, o transforma em uma figura bem-quista pelo público, mais humana e menos corporativa.
Seja você um aficionado por moda ou não, certamente, já viu a passarela da etiqueta em um campo de lavanda, de trigo e, mais recentemente, nas areias do Havaí. Já se deparou também com aquele chapéu gigante de vime e com aquela bolsa pequenina (quase minúscula). Sugerir que o francês tenha sorte pela série de momentos virais seria uma mentira. Como poucos, Jacquemus domina a arte de construir comunidades na era digital e controlar suas narrativas. Talvez, chegue a entender mais de marketing que de design e, para os seus consumidores, isso basta.
A constatação acima pode assustar os saudosistas ou os mais tradicionais, mas o início de sua própria carreira já desafiava o método comum. Sem pensar nem por um minuto em cortejar o apoio de um grande grupo investidor, Simon abriu a sua empresa sem possuir um diploma e sem ter trabalhado para grandes estilistas. Ele não estava pensando fora da caixa – simplesmente parecia não queria caixa nenhuma.
Raf Simons.Foto: Getty Images
Sem juízos de valor, surge uma nova lógica de direção criativa, a qual não exclui a convencional. Há Olivier Rousteing, aquele que estrelou um documentário inteiramente pensado para que você chegue até o final o venerando. Há Demna, aquele que não quer mais ser lembrado pelo seu sobrenome para se firmar na cultura pop, assim como fez Cher e Madonna. Mas ainda há Raf Simons, aquele que nem mesmo possui uma conta pessoal no Instagram, e Virginie Viard, aquela sobre a qual quase nada sabemos.
Às vezes, o futuro diretor criativo é um designer de produto. Às vezes, é um especialista em marketing. Às vezes, é os dois. E tudo bem para as três opções, afinal as rédeas reverenciais nunca inspiraram nada que valesse a pena. O questionamento, porém, talvez devesse se concentrar em quando a natureza efêmera torna o sistema imperativo e impaciente.
Hoje, Riccardo Tisci teria tempo para revolucionar a Givenchy como fez em 2005? Martin Margiela se tornaria um nome estrelado sem nem mesmo mostrar seu rosto? A conversa não deve ser sobre sentimentalismos equivocados, mas sim sobre a contenção de danos.