Martin Margiela, o homem invisível que transformou o jeito de se fazer moda
Ninguém conhece seu rosto, mas seu trabalho avant-garde com forte pegada artística ajudou definir uma nova maneira de apresentar desfiles e de se criar no prêt-à-porter a partir dos anos 1990.
Martin Margiela estudou na Royal Academy of Fine Arts, onde também se formou o influente grupo belga Antwerp Six. Seu primeiro trabalho em Paris foi como assistente de Jean-Paul Gaultier. Em 1988, ele fundou a Maison Margiela, com um DNA avant-garde que é apresentado desde a primeira coleção. Apesar do nome forte, ele opta pelo anonimato para que todos focassem apenas em suas criações.
O começo da Maison Margiela
A Maison Margiela – antes conhecida por Maison Martin Margiela – foi fundada em 1988 pelo belga Martin Margiela, em Paris, com a sócia Jenny Meirens, a parte empresária da casa. Desde então, ele já implementava o código de vestimenta que valia para toda a equipe, com a blouse blanche, uma espécie de jaleco branco com corte de sobretudo, como uniforme oficial. Outra característica fundamental já definida na fundação era a sede toda em branco – inclusive os móveis – com cadeiras e sofás cobertos por tecidos de algodão. As lojas ainda seguem essa estética com pequenas variações.
Formado em 1987 pela Royal Academy of Fine Arts, da Antuérpia, na Bélgica, Margiela contribuiu com bastante força para um design influenciado pelo pauperismo japonês e com um olhar contemporâneo, voltado para a rua e para elementos banais do cotidiano. Apesar de alimentarem essa mesma corrente, ao contrário do que muitos pensam, ele nunca foi parte do Antwerp Six, coletivo belga de estilistas que influenciou muito no jeito de se pensar e de se fazer moda depois dos anos 1990. Margiela atuou paralelamente.
Em sua primeira coleção, já mostrou que sua grife vinha para subverter as tendências dominantes da época e apresentar uma nova forma de se fazer desfile. O palco foi o Café de la Gare, maior e mais famoso teatro marginal de Paris. Ao caminhar pela passarela, as modelos deixavam pegadas de tinta em uma faixa de tecido branco estendida pelo chão. E não era uma marca qualquer, mas o solado das botas Tabi, que levam uma separação entre o dedão e o indicador, assim como a meia tradicional japonesa de mesmo nome.
Importante ressaltar que, antes disso, seu primeiro emprego em Paris foi como assistente de Jean-Paul Gaultier. O mestre conta em entrevistas que disse a Margiela que ele estava pronto e não precisava de mais experiência para lançar a própria linha, porém o belga insistiu em uma chance de trabalhar com o francês. Conseguiu. Atuaram juntos por três anos até o pupilo se despedir para, enfim, lançar a sua própria etiqueta.
O estilo disruptivo de Margiela
Se a moda até os anos 1980 falava alto com cores vibrantes e ombros avantajados, com Mugler, Lacroix e Versace, os belgas desceram o tom das cores e jogaram a bola para o conceito. No caso de Margiela, isso apareceu principalmente em símbolos como a roupa rasgada, inacabada, desfiada, costura a mostra, entre outros detalhes. Seu jogo foi de desconstrução – o que não significou uma negação do passado, mas um olhar do presente para o que já tinha sido feito.
Ele descosturou e costurou roupas com intervenções. Reorganizou a alfaiataria, mexendo nos ombros, brincando com a silhueta. Usou elementos da própria fabricação da roupa, como o colete que fez com o próprio manequim. Além de incluir na moda itens do cotidiano, como fez no colete de porcelana quebrada, na bolsa com formato de sacola plástica, no casaco de peruca ou nos colares de gelos com corantes, que tingiam as roupas na passarela enquanto derretiam.
Considerado um dos designers mais radicais, criou uma produção que se equipara bastante com a das artes plásticas. As lojas da grife, inclusive, lembram uma galeria de arte contemporânea e as etiquetas das roupas, um retângulo formado por numerais, parecem indicar a tiragem de uma obra.
A herança de Margiela é vista até hoje, como nos castings formados por não modelos e nos desfiles em locações surpreendentes. Foi ele quem começou com essa história de se apresentar em um teatro antigo, em uma boate, ou até mesmo em um playground abandonado – caso do seu icônico desfile de verão 90, que fez história na moda ao tirar a passarela do pedestal glamuroso.
Martin Margiela: o homem invisível
A influência de Margiela só não é maior que o seu anonimato. Sem conceder entrevistas à imprensa ou permitir fotografias, ele ficou conhecido como o homem invisível da moda, um prato cheio para teorias da conspiração, que passam até mesmo pela hipótese de que ele não exista. Mas acontece que essa preservação da própria imagem não rolou sempre. Há quem lembre, sim, do homem alto, magro, de cabelos cinzas presos em um rabo de cavalo e que só decidiu ficar na sua ali nos anos 1990, enquanto o mundo supervalorizava a figura celebridade.
Como o diabo foge da cruz, Margiela fugiu de jornalistas. Um dos perfis mais completos sobre ele foi escrito por Rebecca Mead, para a New Yorker, em 1998, quando ele foi nomeado diretor criativo da Hermès. E isso só rolou porque as respostas puderam ser enviadas por fax. No texto intitulado The crazy professor, a jornalista brinca que, em alguns momentos, a pouca abertura fazia parecer que não falavam de moda, mas, sim, de algum projeto que envolvesse uma bomba nuclear. E as respostas eram realmente bem diretas. Ao ser questionado sobre o que trabalhar na Hermés trazia de novo para ele, respondeu: trabalhar na Hermès.
O anonimato, que pode ser entendido como uma frieza excessiva ou certa arrogância, trata-se muito mais de um não culto à personalidade, a eliminação do individual. Isso aparece na marca com o artifício das modelos frequentemente mascaradas e dos próprios funcionários que usam jalecos como uniformes. O trabalho é o produto de um ateliê e não de uma única pessoa. E é interpretado pela crítica de moda Cathy Horyn da seguinte maneira: “Ao se recusar a falar sobre suas roupas, Margiela nos faz um favor: nos faz pensar mais.” O design fala por si só. É tudo sobre a roupa e não sobre a modelo, o estilista ou qualquer outra coisa.
As modelos mascaradas de Margiela
Revelações no documentário Martin Margiela: In His Own Words
Justamente por essa preferência por fugir dos holofotes, o documentário Martin Margiela: In his own words tem dado o que falar desde que estreou em novembro de 2019 em Nova York. Além de personalidades como Jean-Paul Gaultier, Carla Sozzani e Cathy Horyn, o filme conta com a participação do próprio Margiela falando de sua produção. Em agosto do ano passado, ele ficou disponível para alguns países em uma série de streamings – mas ainda não tem data de estreia prevista no Brasil
Essa não é a primeira produção sobre o designer, mas se destaca por apresentar o que até agora parecia impossível: o próprio Margiela contando a sua história. Ainda não é possível ver o seu rosto, apenas as suas mãos, mas é ele quem narra o longa. E qualquer um que espere um indivíduo frio ou arrogante se surpreende. Margiela conversa de maneira afetuosa e gentil. Na casa dos 60 anos, revela, inclusive, que às vezes lamenta ter tomado essa decisão difícil para se salvar. Mas sempre soube que entregaria muito mais se estivesse protegido pelo anonimato.
Ele mostra o ingresso falso usado para entrar em um desfile de Jean-Paul Gaultier nos anos 1980. O francês se tornou mentor do belga anos depois dessa pequena fraude com boa intenção. Margiela também conta sobre como descobriu a moda na infância, assistindo às criações de Pierre Cardin e Courrèges na TV.
Inspirado nelas, personalizou versões das roupas para as suas bonecas, com a ajuda da avó. Cortou as pontas das botas das suas Barbies, fez terninho de flanela para elas – e isso explica bastante a Doll Collection, que apresentou em 1994. Outra explicação que aparece no longa é sobre o motivo de ele ter tanta obsessão por peruca. É simples: seus pais trabalhavam cortando cabelos reais e vendendo cabelos falsos.
Há críticas de que o documentário é mais conservador do que o próprio estilista e que algumas partes mais caóticas foram ocultadas, como a sua saída em 2008 da marca que ele mesmo criou, além das tensões comerciais e criativas que teve com os investidores. De fato, a saída abrupta, após 20 anos de trabalho, da casa que ele mesmo fundou, foi uma fuga sem despedidas e o tema não é retratado de maneira tão dramática.
A Maison Margiela faz parte do OTB Group, que detém marcas como Diesel, Marni e Viktor&Rolf, desde 2002. E o que se imagina é que isso seja resultado de uma incongruência entre a mente tão disruptiva e uma corporação preocupada com resultados financeiros. Desde 2014, a marca conta com John Galliano na direção artística.
Mas há uma ótima justificativa para um documentário com poucas polêmicas: a presença do próprio, o que só foi possível com a supervisão do retratado. O filme é escrito e dirigido por Reiner Holzemer, que também fez Dries, documentário sobre o estilista belga Dries van Noten. Bastante distante da moda, ele acredita que este fator foi um ponto positivo para conseguir o aceite de Margiela tão depressa. Ou talvez tenha sido o homem certo na hora certa que encontrou o estilista, que já não faz mais roupas, e está mais focado em pintar e esculpir, pronto para falar.
E agora a gente pede perdão para um spoiler importante. Ao ser questionado se já fez tudo na moda, Margiela responde: não. O próprio diretor avalia que isso está longe de ser uma promessa de retorno. Mas, de qualquer maneira, a gente quer acreditar que ele pode voltar assim tão misteriosamente como um dia se foi.
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