Morre Pierre Cardin aos 98 anos
Vanguardista, estilista foi um dos pioneiros do prêt-à-porter na França. Família não divulgou causa da morte.
A morte de Pierre Cardin, aos 98 anos, foi confirmada nesta terça-feira (29.12) pela Academia Francesa de Belas Artes. O eterno futurista morreu no American Hospital, em Neuilly-sur-Seine, perto de Paris. A sua aparição pública mais recente foi em setembro deste ano, durante a comemoração dos 70 anos de sua marca homônima e um dos últimos projetos em sua homenagem foi o documentário House of Cardin, que estreou no Festival de Cinema de Veneza, no final do ano passado. Neste texto, recuperamos algumas das grandes frases ditas pelo designer, para contar a sua história.
“Eu me inspirei em satélites, em lasers e na lua. Olhei para o futuro e não para o corpo de uma mulher. Os meus vestidos são como esculturas que moldei e depois vesti em alguém. É mais como arquitetura ou arte.”
O costureiro era do tipo lunático, que podia ir até “o mundo da lua” para se inspirar. Mas a ambiguidade do termo vale, porque de fato foi considerado louco por alguns contemporâneos. “Sempre fui inconformista, como uma revista que faz coisas provocativas em comparação a um jornal tradicional”, explicou em outro momento. Fato é que maluco ou genial, Cardin alcançou feitos extraordinários: mergulhou na Era Espacial para desenhar uma ideia de futuro que ainda hoje prevalece no imaginário de muita gente e revolucionou o mercado de moda ao ser um dos grandes embaixadores do prêt-à-porter, o termo francês para a roupa pronta para vestir, que já está disponível na loja — em resumo, moldou o jeito de vender roupa como nós conhecemos hoje. Não à toa, em 1992 se tornou o primeiro costureiro a virar Membro da Academia de Belas Artes Francesa e, em 2010, considerado uma lenda viva pelo Fashion Group International. Adicione aos títulos ainda termos como acadêmico, empresário, mecenas, além de Embaixador da Unesco.
“Eu era considerado radical. Mas nunca quis tirar ideias de filmes ou de décadas passadas ou das ruas. Sempre quis sonhar com algo e realizar este sonho. Se eu não pudesse fazer isso eu preferia nem sonhar”.
Foram formas geométricas que ajudaram Pierre Cardin a materializar seus sonhos. Um colar ou uma bolha de vestir; microvestidos em formato de A, vazados e usados com meia-calça e segunda pele; chapéus aerodinâmicos de colocar inveja na Nasa; óculos de acetato, como o Evolution (premonição da Face Shield) que remetiam aos olhos de insetos; luvas futuristas; e botas Barbarella foram algumas de suas grandes produções. O legado ainda conta com o uso de materiais inusitados, como a folha de prata, o papel e principalmente o vinil na confecção das roupas, além do uso de tridimensionalidades proporcionadas pela ilusão de estampas gráficas ou por relevos saltados nas roupas.
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“Nasci artista, mas sou um empresário”.
Além de exímio criador, foi um grande businessman, vanguardista não só nas ideias, nos conceitos, mas também na comercialização de seu nome. É por isso que Cardin ganhou também títulos não oficiais, como o de “Napoleão dos licenciamentos”, ou de “o estilista das massas”. Quando no final da década de 1950 decidiu se licenciar para uma loja de departamentos criou uma rixa com estilistas contemporâneos franceses, que acreditavam que um couturier não poderia se rebaixar a tal nível. Sem medo, afirmava que era a única maneira de fazer dinheiro, mesmo que isso custasse o posto que ocupava na Câmara Sindical de Alta-Costura. Além de popularizar o próprio design, ele fez movimentos anos atrás que hoje são largamente reproduzidos por grandes grifes: investiu em mercados do Oriente, se apresentando na China, em 1979, desfilando na Praça Vermelha, em Moscou, em 1991; e compreendeu antes de muitos designers que o universo de uma marca de moda é bem maior do que as roupas que ela vende, aproveitando o potencial mercadológico de seu nome.
“Moda não é suficiente. Não quero ser apenas um designer”.
E não foi. Pierre Cardin virou um nome internacionalmente conhecido, ainda que muitos não saibam quem ele de fato tenha sido. O seu leque de licenciamentos chega a 900, em cerca de 120 países diferentes, espalhados por cinco continentes. Os produtos com seu nome vão de gravatas e óculos, passam por mesas e cadeiras e chegam até mesmo ao setor de produtos alimentícios. Avaliado em mais de $1 bilhão de dólares, o seu império já vendia perucas masculinas, em 1970, carros para a American Motors, em 1972, e tinha abocanhado em 1981 a rede de restaurantes Maxim’s. Cardin fez presença ainda no mercado imobiliário, investindo em grandes símbolos da arquitetura, como o Palácio de Casanova, em Veneza; o Castelo do Marquês de Sade, em Lacoste; o Palácio de Bolhas (também conhecida como Bubble House), em Théoule-sur-Mer, próximo a Cannes; além de teatros (como o Espace Cardin, palco de alguns de seus desfiles) e vários barcos a beira do Sena… A lista de bens é vasta.
Apresentação da coleção Pierre Cardin 2016 no Chateau Du Marquis de Sade, parte do Paris Fashion Week em 2016.Getty Images
“Sempre tentei ser diferente, ser eu mesmo, as pessoas gostem ou não. Não é isto o que importa.”
Filho de franceses com ascendência italiana, Cardin sonhou ser ator, chegou a modelar e a dançar, mas não se fez nos palcos. Nascido no norte da Itália, se mudou para Vichy, na França, ainda adolescente, quando virou aprendiz de alfaiate. Durante a Segunda Guerra trabalhou para a Cruz Vermelha. E, no retorno, para nomes como Paquin e Schiaparelli, além de tocar a produção de figurinos para o teatro e o cinema. Em 1947 foi um dos primeiros funcionários da Dior, onde se tornou chefe do ateliê de alfaiataria da maison. O ano dá a dica: Cardin quem trabalhou na clássica Bar Jacket, peça fundamental da silhueta New Look, assinada por Christian Dior naquele mesmo ano.
O costureiro afirmava que havia sido convidado a assumir a direção artística da Chanel, na década de 1950, mas negou o posto para fundar o próprio negócio. Logo de cara veste de Salvador Dalí a Jean Cocteau, mas é nos 1960 que o seu design reina. Ao lado de Courrèges, vira um sinônimo da década e da vanguarda visual da época. A sua linha de alfaiataria masculina (boa parte feita em parceria com o assistente André Oliver), que dispensava o colarinho, cai nas graças dos Beatles — apesar de, curiosamente, a banda não ter usado peças originais do estilista, mas cópias da sua silhueta que se disseminavam e muito naquele momento. Ao longo de sua carreira, Cardin contratou e impulsionou nomes como Jean Paul Gaultier e Roberto Cavalli e vestiu ícones como Vanessa Redgrave e Jeanne Moreau.
“Eu não preciso conhecer pessoas socialmente. Eu como em meus próprios pratos. Eu bebo em minhas taças. Me lavo com o meu próprio sabão e uso o meu próprio perfume. Me cubro com os meus lençóis. E tenho os meus produtos alimentícios. Eu posso me sentar na minha própria poltrona. Eu vivo em mim. O que é bastante raro. provavelmente sou o único homem no mundo que pode afirmar isso.”
Dono de uma personalidade única e segura, para não dizer provocativa, afirmava já ter visto todos os museus do mundo só para assegurar que nunca copiou ninguém, que sempre foi dono de suas próprias criações. Cardin também dizia abertamente que se considerava mais jovem do que muitos jovens por aí, principalmente quando era questionado sobre colocar um nome mais fresco na direção de sua marca.
Em entrevista a ELLE, aos 95 anos de idade, em dezembro de 2017, contou à jornalista Ana Garmendia, que amava várias partes do Brasil, particularmente a cidade de Maceió, que já havia ficado hospedado na casa de Fidel Castro, em Cuba, a convite do próprio, e que acreditava que “a moda é livre”: “A desordem da vida se encontra na moda. A vida é o reflexo da moda, ou o contrário. A moda não é algo estagnado. É um momento.”
PIERRE CARDIN, UM DESIGNER LUNÁTICO (1922-2020)
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