Nem tudo é cor-de-rosa na vida, mas, ao que tudo indica, o live action sobre a vida da boneca Barbie é. As primeiras imagens da produção dirigida por Greta Gerwig (Lady Bird), com Margot Robbie como Barbie e Ryan Gosling como Ken, abusam das tonalidades pink e prometem um imaginário de sonho para a multidão de fãs que viraliza as cenas do filme desde já, um ano antes da estreia, prevista para julho de 2023.
E aqui não vale a máxima conservadora de que meninas vestem rosa e meninos vestem azul. No que pudemos ver até agora, o Ken de Gosling vem todo trabalhado no rosa sobre patins amarelo-limão, em figurino par de vasos com o da Barbie de Robbie. Em outra foto, de visual que a princípio faz pensar num filme pornô gay estadunidense dos anos 1980 ou 90, ele aparece de jeans, colete (sem camisa por baixo), mostrando o abdômen tanquinho, num cenário tão cor-de-rosa quanto as caixas que há mais de seis décadas embalam o imaginário infantil mundial e fazem crianças brincarem de ser adultas, em devida sintonia com o consumismo.
Tida como a primeira personificação de uma mulher na história das bonecas, Barbie nasceu Barbara Millicent Roberts, em 1959, e já foi reproduzida mais de 1 bilhão de vezes pela fábrica de brinquedos Mattel. Sob a mesma fórmula de traduzir o “american way of life” para crianças, o namorado, Kenneth Carson, ou simplesmente Ken, surgiu dois anos depois, em 1961, como um satélite orbitando ao redor da diva jovem, glamourosa e quase sempre loira.
Eventualmente vestido por Jean Paul Gaultier e Franco Moschino, o boneco de estimação de Barbie vive em função dela, uma dinâmica rara entre casais de 60 anos atrás, quando Ruth Handler idealizou o brinquedo lançado pela Mattel, fundada por seu marido, Elliot Handler (Barbara e Kenneth eram os nomes dos filhos do casal). O primeiro modelo usava apenas uma sunga vermelha, sandálias e portava uma toalha amarela. Naquele momento, ao menos no universo lúdico, Barbie podia encarar os homens como brinquedos disponíveis para seu prazer – um objeto sexual, diríamos, se a boneca fosse feita para consumidoras adultas.
Nem sempre a vida de Ken foi fácil como a da namorada. Apesar dos músculos, ele não é um ícone tradicional de masculinidade e sofre constrangimentos por isso. Basta lembrar que – assunto desconfortável – a genitália do boneco é idêntica à de Barbie, e sua silhueta, mesmo quando está vestido, jamais revela saliências, volumes ou protuberâncias.
Getty Images
Ken chegou ao Brasil somente em 1984, pela Estrela, dois anos depois da namorada. Inicialmente foi rebatizado de Bob, segundo consta, devido à dificuldade das crianças daqui para pronunciar o nome original. Encontrou no país concorrência acirrada: o boneco Falcon, adaptação brasileira do estadunidense G.I. Joe, havia sido lançado pela Estrela em 1977, como brinquedo para meninos, mais do que para meninas. Falcon espirrava testosterona em músculos hipertrofiados, uniformes militares e invariáveis barbas negras, loiras ou ruivas. Apesar do visual “macho man”, Falcon, tal como Ken, não tinha pênis. Uma cisão infernal para a identidade masculina dava o tom da brincadeira: meninos deviam brincar com bonecos viris e marrentos (e olhe lá!), meninas preferiam o ar mais despojado e leve de Ken, possivelmente um antepassado dos chamados metrossexuais.
“Apesar dos músculos, ele não é um ícone tradicional de masculinidade e sofre constrangimentos por isso. Basta lembrar que – assunto desconfortável – a genitália do boneco é idêntica à de Barbie.”
Ken não pagou barato pela tentativa libertária. Em 1993, Earring Magic Ken, mais uma variação do boneco, causou controvérsia por causa de um visual próximo ao de Gosling no filme, com mechas loiras no cabelo, originalmente castanho, e vestido com colete de couro roxo sobre blusa semitransparente, colar e um brinco único na orelha esquerda. A controvérsia: todas as novas características do boy o aproximavam, supostamente, de um homem gay estereotipado, e o aro no colar foi comparado – surpresa! – a um anel peniano. Esse se tornou o modelo mais vendido de Ken na história, mas isso não impediu que o boneco de brinco fosse retirado de linha ainda em 1993, sem maiores explicações.
Diferentes em quase tudo, Ken e Falcon cumpriram o destino de ser apropriados como símbolos gays, menos por merecimento próprio do que devido às interdições impostas sem trégua por mitos machistas destinados a inibir liberdades, comportamentos, emoções e afetos masculinos. Independentemente dos boatos, escalaram muros altos e provocaram alguns abalos na infame fragilidade masculina, mais em xeque do que nunca neste século 21. Ken radicalizou na transgressão, deslizando com fluidez por modos mais modernos e livres de masculinidade, ganhando até uma versão com estética queer, maquiada e com cabelo neon.
Sobretudo nestes anos 2000, o triunfo da valorização da diversidade humana em todas as suas possibilidades deu ainda um pouco mais de liberdade ao coadjuvante de Barbie (ela própria cada vez mais livre, leve e solta). Assim como a namorada, ele tem ganhado, desde os anos 1970, versões em diversos tons de pele, cor dos olhos e dos cabelos. Mais recentemente, por exemplo, o planeta tem recebido Kens cadeirantes e portadores de vitiligo, que se somam às dezenas e dezenas de Kens médicos, veterinários, bombeiros, salva-vidas, mergulhadores, modelos, diretores de arte…
“Mesmo sob a distensão dos anos 2000, a ditadura da forma física persegue o boneco, que somente em 2017 passou a ter três portes físicos.”
Em seis décadas, Ken tem se espalhado por incontáveis metamorfoses, sempre conectadas às modas e aos modismos de cada momento. Seus cabelos já foram ou são crespos, longos negros escorridos ou loiros surfista, black power, roxos, adornados por coques ou tranças afro. Chegou a usar bigodes, barbas e costeletas nos anos 1970. E sua vasta gama de roupas inclui macacão metálico, smoking (com faixa pink na cintura e rosa na lapela), camisa floral havaiana, figurino discothèque ou caubói, looks étnicos, kitsch, clubbers, mauricinhos, aristocratas, rappers, gamers, nerds, desconstruídos etc.
Mattel/Divulgação
Mesmo sob a distensão dos anos 2000, a ditadura da forma física persegue o boneco, que somente em 2017 passou a ter três portes físicos: original, slim (magro) e broad (largo). Não, no mundo de fantasia não existe Ken com sobrepeso; muito eventualmente surgiram Kens de meia-idade ou idosos – nesse último caso, com cabelo e barba grisalhos, mas de aspecto tão jovial quanto o dos sobrinhos e netos.
Um detalhe ao gosto do antirromantismo e da volatilidade de tempos virtuais: Barbie e Ken romperam o namoro em 2004, se tornaram apenas bons amigos e reataram em 2011, na data-fetiche ultraconsumista do Valentine’s Day, o Dia dos Namorados dos estadunidenses. De obstáculo em obstáculo, Ken continua vestindo rosa quando deseja e cutucando dogmas machistas arraigados.
Esta reportagem foi publicada originalmente em julho de 2022, na ELLE View, nossa revista digital mensal. Faça a sua assinatura e tenha acesso a todas as edições.