No início deste mês, quando os convidados da Chanel entraram no estádio do centro equestre L’Étrier de Paris para assistir ao desfile de alta-costura, eles foram recebidos por instalações geométricas que formavam um carrossel onírico suspenso. Em se tratando da etiqueta francesa, se costuma saber o que esperar de suas coleções. Mas, dessa vez, a locação 一 longe do Grand Palais, aliás 一, já anunciava que haveria algo a mais.
Na passarela, as modelos surgiram vestindo os tailleurs com os padrões de tweed instantaneamente reconhecíveis. Elas, porém, tinham os seus pés adornados por botas caubóis e as suas cabeças por chapéus de aba larga. “Imaginei o show como uma continuidade do anterior, deixando espaço para experimentação”, afirmou Virginie Viard em comunicado divulgado à imprensa. A diretora criativa se referia ao verão 2022 de alta-costura, finalizado por Charlotte Casiraghi cavalgando.
A relação da Chanel com o campo equestre não é nova. Ao longo da história, o contato com cavalos costumava ser reservado apenas aos homens. Enquanto isso, o próprio guarda-roupa feminino era um impeditivo para que as mulheres montassem no animal. Graças ao fascínio da fundadora da casa, Coco, pelo hipismo, a liberdade passou a ser introduzida ao vestuário, devolvendo a flexibilidade dos movimentos e garantindo o conforto para elas.
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Na passarela de Virginie, no entanto, a ideia se torna um tanto mais pop. Os símbolos western existiam ali em referência a Coco, mas também adentravam as conversas sobre o mito dourado do Oeste estadunidense, que não de hoje influencia a moda. Pense, por exemplo, em Marilyn Monroe posando para a icônica sessão de fotos de Dia dos Namorados em um visual digno de vaqueira. Ou na princesa Diana, que, ao contrariar as tradições da família real britânica, vestia jeans e calçava botas country. Mais tarde, na virada do milênio, ainda houve Britney Spears adicionando strass à estética.
Se vestir como um caubói tem sido umas das tendências mais duradouras de todos os tempos, mas 一 não tão surpreendentemente 一 é também uma das mais polarizadas. O tema já havia sido investigado por Raf Simons, que, à frente da Calvin Klein, se dedicava a virar do avesso os sonhos dos Estados Unidos. No inverno 2017, o belga fez a sua estreia na marca pela perspectiva de um forasteiro. Entre camisas de gola pontiaguda com bolsos no peito e botas country com bico de aço, as modelos surgiram na passarela ao som de “This is not America”, de David Bowie.
Os calvinismos estavam ali, assim como os americanismos. Na coleção, havia um clima geral de reavaliação e contenção sobre o que a história daquele país representa. O questionamento incluía as cenas daqueles clássicos filmes de faroeste em que caubóis estão bebendo em um bar e os sons das botas rangem no chão, enquanto os seus cavalos os esperam do lado de fora. Raf parecia ciente de como as produções que dominaram grande parte do século 20 são, na verdade, um passado mitificado inventado por Hollywood.
David Koma
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Como a fantasia de um éden perdido, a nostalgia que habita na ideia do Oeste dourado exclui o lado obscuro da história. Prova disso é a Corrida do Ouro, ocorrida na década de 1850. Quando riquezas foram descobertas às margens de um rio em Coloma, na Califórnia, não só caubóis foram até a região, como também estrangeiros. O ouro, porém, era finito, passando a ser taxado quando descoberto por pessoas de fora. Os conflitos se radicalizaram: indígenas foram exterminados, chineses foram maltratados e os mexicanos explorados.
São essas complexidades e contradições que têm tornado o tema atraente para estilistas. No verão 2023 masculino, a Casablanca construiu uma espécie de rancho psicodélico, redefinindo o passado e dando o tom em uma narrativa de heróis inclusivos. Já a Burberry, em seu resort 2023 cocriado com o artista Jared Buckhiester, os cintos de vaqueiros foram elevados ao busto, em um aceno ao peso da masculinidade dos caubóis. Na mesma temporada, o espírito também surge para David Koma, que contrasta botas country com vestidos delicados.
Burberry
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“É um jogo de opostos: duro e macio, agressivo e sensual”, disse o estilista em entrevista ao WWD. Talvez essa seja a melhor definição para a tendência que, mesmo sob o espectro de novos significados, ainda parece manchada pela forte associação com os republicanos. Trazer o Velho Oeste para 2022 significa jogar luz para abrir novas fronteiras, mas sem esquecer que os caubóis nem sempre foram heróis nessa narrativa. Para a moda, felizmente, ainda não é o fim da história.