O peso do corpo

A volta dos anos 2000 desengaveta não só calças de cintura baixa, mas também a ideia perigosa de que é preciso enxugar a silhueta para entrar nelas.

Eu não sei se tem acontecido com você, ou se ando mesmo seguindo as pessoas erradas. Mas, cada vez que entro no Instagram, tenho a sensação de que as mulheres estão murchando, de que suas barrigas estão sendo sugadas para dentro das costelas, suas bochechas se diluindo entre os músculos masseter e bucinador e suas coxas se distanciando cada vez mais umas das outras, criando um vão entre as pernas. Parece um flashback meio doido dos anos 2000, que ainda estavam na ressaca do heroin chic dos 1990. Mas, epa, estamos em 2022.

E, depois de uma longa e recente caminhada pró body neutrality, imaginar que o corpo voltou a ser visto como tendência, como produto, portanto como algo a ser construído e moldado, me causa arrepio.

Veja, eu sempre fui magra, por genética mesmo. E, a priori, não acho que exista nada de errado em alguém querer perder quilos ou mesmo se submeter a cirurgias plásticas se julgar válido, se isso for fazê-lo de alguma maneira mais feliz (ainda que tenha dúvidas de que essa felicidade se sustente a longo prazo. Mas isso é outra história).

O negócio, para mim, azeda quando essas imagens com um padrão corporal seco começam a ser tão frequentes, tão marteladas e banalizadas, que de repente ficamos com a sensação de que nossos corpos estão fora de contexto, “errados”, grandes demais, aceitos de menos. Demodé.

E nem deveria mais ser preciso falar – ou talvez ainda seja necessário falar e falar – que corpos muito distantes da maioria da população podem ser gatilhos para doenças físicas e mentais. “Você fica frustrada, insatisfeita, e acaba buscando mudanças para atingir esse corpo não importa como”, diz Fernanda Imamura, nutricionista e colaboradora do PROTAD (Programa de Atendimento, Ensino e Pesquisa em Transtornos Alimentares na infância e na adolescência, do IPq-HCFMUSP). “E aí a indústria de dietas vende um monte de soluções mágicas e procedimentos de beleza, que se transformam em uma busca incansável, porque esse corpo não vai vir, mesmo com muito sacrifício.”

Parece um flashback meio doido dos anos 2000, que ainda estavam na ressaca do heroin chic dos 1990. Mas, epa, estamos em 2022.

Sacrifícios que são exaltados em algumas redes. Não é raro rolar o feed do TikTok e esbarrar do outro lado da tela com garotas se vangloriando do próprio corpo – em geral, um corpo magro e branco. Indo mais fundo, você pode chegar à hashtag #thinbody, que tem 127,2 milhões de visualizações (até o dia 8 deste mês) e frases chamativas, como “How to make your waist smaller” (“Como deixar sua cintura menor”), “Say goodbye big belly” (“Diga adeus, barriga grande”), ou ainda conteúdos como “O que todo mundo quer (com fotos de mulheres curvilíneas) e o que quero para mim (com fotos de Kendall Jenner e Bella Hadid em versões size zero)”.

Soma-se a isso a quantidade de vídeos que mostram modelos como Kate Moss nos anos 1990 em fotos glamourosas, com alto apelo viral e potencial para se transformar em “objeto” de desejo. E, se você não tem total certeza do que isso significa na prática, eu pego aqui emprestado um trechinho do livro Beleza do século (2000), publicado pela extinta editora Cosac Naify.

“Kate Moss, a nova sensação das passarelas, anuncia uma mudança de época. Menos cintilante, mais decadente… Lolita magricela, suas formas nascentes e seu rosto de criança perdida despertam um desejo confuso. Com seus 44 kg e 1,70 m de altura, subverte os cânones da beleza (…). É o reinado do look ‘heroína chique’. Atrás de Kate, emerge uma geração de modelos magérrimas, Stella Tennant, Jodie Kidd, Trish Goff.”

Deixando Kate para trás no feed, uma garota “normal”, Gabrielle, aparece de biquíni, ossos à vista, em um vídeo ao som de “Love you like a love song”, de Selena Gomez. O vídeo tem 1,2 milhão de visualizações, 705,8 mil curtidas e 17,9 mil salvamentos. E, ainda que tenha comentários divididos entre “gosto”, “não gosto”, o corpo é o entretenimento.

O corpo feminino

“As mulheres são majoritárias no meu consultório, e a grande maioria quer emagrecer por estética, não por saúde. Elas se sentem inadequadas, frustradas com o próprio peso, feias”, completa Fernanda. “Muitas, inclusive, relatam uso prévio de medicamentos e de dietas restritivas. Com informações tão fáceis, tão acessíveis, a gente perde o filtro. Tem conteúdo incentivando transtorno alimentar e qualquer um pode acessar isso.”

Historicamente, o corpo feminino sempre esteve em escrutínio, fosse em quadros da Renascença em que mulheres aparecem desnudas, fosse ao longo dos séculos em que nós, mulheres, tivemos de apertar cinturas em espartilhos ou seios em faixas para conquistar o look à la garçonne. Não é exatamente novidade que ele volte a ser debatido, mas isso não me dá nenhuma tranquilidade.

“Quando a gente pensa na moda, a gente sempre volta para trás. Os anos 2000 vêm com a cintura muito baixa, o piercing no umbigo, ícones supermagros, como a Paris Hilton… E os 1990, que também estão por aqui, são ainda piores, porque trazem esse padrão que chega a fazer ode às drogas, enaltecer o cigarro e as bebidas que acompanham um corpo muito magro”, analisa Alexandra Gurgel, fundadora do Movimento Corpo Livre e autora dos livros Pare de se odiar, de 2018, e Comece a se amar, de 2021.

Volto para o Instagram e constato que Kim Kardashian, dona do corpo mais famoso desse milênio, ao ponto de ser reconhecida mesmo quando está com a cara coberta (caso do look Balenciaga, no MET do ano passado), parece ter desistido das curvas em prol do novo visual do momento.

Claro, ela não está sozinha.

Vejo outras influencers e mulheres que conheço fora das telas se juntando à turma do manequim 36, talvez 34, mesmo. Juro, levei um susto outro dia ao ver o osso externo de uma delas como se estivesse em uma aula de anatomia.

“Somos líderes em cirurgia plástica, revezando essa posição com os Estados Unidos. E as próprias Kardashians estão emagrecendo agora. A Kim, que tinha a bunda no seguro, valendo milhões, falou recentemente que odeia a bunda dela. E você vê todas murchando, tirando silicone etc.”

Não quero ser alarmista, mas meu sinal amarelo acende e penso que agora o buraco é mais fundo do que no século passado, porque a verdade é que nunca ficamos tanto tempo prestando atenção em imagens, com o celular grudado nos dedos. Fernanda confirma meus temores: “Nos anos 1990, ainda tinha um certo distanciamento, tinham as revistas e tudo mais. Mas não era algo tão acessível, nem todo mundo conseguia comprar revistas de moda. Hoje, podemos ver o corpo de todo mundo no Instagram, corpos superemagrecidos, com filtros, edição de imagem, Photoshop. Acho que só piorou nesse sentido”.

Mas Alexandra me dá esperança. “Anos atrás, a gente não tinha essa força na internet. O Movimento Corpo Livre, por exemplo, tem 400 mil pessoas, tem um levante que pode gerar uma mudança. Acho muito simbólico, por exemplo, ver o fim dos desfiles das angels da Victoria’s Secret, a Rihanna colocando diferentes corpos felizes dançando na passarela ou um comediante do SBT sendo demitido por gordofobia.”

E com ela ganho também o mapa para um possível caminho mentalmente mais saudável e socialmente mais inclusivo. “Se a gente morasse em uma bolha e não tivesse ninguém para se comparar, não nos compararíamos. Então, temos que pensar por que não mudamos nossas referências. Nos 2000, tínhamos ícones irreais e diziam para gente: ‘Você nunca vai ser garota da capa’. Hoje é preciso saber que você não vai ser a garota do Instagram, porque ela prega não só uma imagem irreal, como uma vida irreal, uma imagem ligada ao elitismo, em que você está às 3 da tarde de uma terça-feira na Tailândia e deixa todo mundo insatisfeito, em um país no qual 92% das mulheres estão insatisfeitas com o próprio corpo.”

Sim, é difícil não sucumbir em um mundo que exalta mais o corpo de J.Lo do que o seu trabalho, porém é revigorante saber que, nas palavras de Alexandra, “onde tem a árvore do veneno tem a árvore do antídoto”. Ou seja, as próprias mídias sociais podem tanto ditar corpos esquálidos, festa estranha, gente esquisita, quanto ser um lugar de acolhimento e de respeito a todos, gordos, magros, brancos, amarelos, pretos.

Dou unfollow em algumas pessoas, acrescento outras à minha lista e abro o livro Uma história da beleza, de Umberto Eco, para compartilhar o mesmo desejo dele: “Que o explorador do futuro seja obrigado a render-se diante da orgia de tolerância, de sincretismo total, de absoluto e irrefreável politeísmo da Beleza”.