O chef fica lá na cozinha, só vai ao salão quando bem entende. Se for do tipo que não gosta de papo, muito que bem. O bartender não tem como se esconder, pois está frente a frente com a plateia, em restaurantes e bares de coquetéis. É um misto de mestre de cerimônias, animador de audiências, confidente, especialista em conversa fiada e para-raio de tretas. Talentos que vão muito além da arte de preparar bons coquetéis, sua função primordial.
É preciso muito treino psicológico para não perder a paciência com alguns comportamentos que, infelizmente, são mais corriqueiros do que se gostaria. Tentar levar vantagem, ganhar bebida de graça ou calibrar o teor alcoólico do drinque são algumas das investidas que mais os irritam, vindas de clientes folgados. Como mandam as leis da boa hospitalidade, é preciso manter a fleuma e guardar na manga uma série de estratégias contra as artimanhas e atitudes mimadas de gente com pouca ou nenhuma reserva de noção.
Claro, há bares e bares. Em alguns deles, quem sofre são os clientes, com a falta de técnica, as falhas na execução das receitas, a desorganização na ordem dos pedidos (quem nunca mofou à espera de um drinque?) e a desonestidade no uso e na dosagem de ingredientes (para não falar de bebidas falsificadas). Mas vamos imaginar um mundo ideal em que todos os bares são oásis de felicidade etílica e onde muita coisa poderia ser evitada a fim de não aporrinhar os profissionais da barra. Não custa sonhar.
Ana Paula Ulrich (bar Rabo di Galo, do Rosewood São Paulo), Diogo Sevilio (Cozinha 212), Sylas Rocha (Mundo de Betsy) e Thiago Toalha (do Flora Bar e dono do gozadíssimo perfil Barman Dreprê) comentam as pinimbas de que precisam se safar com certa frequência. Às vezes, causadas por gente que ultrapassa qualquer limite de civilidade e convivência. Em outros casos, passíveis de serem evitadas por quem prestar um pouco mais de atenção aos movimentos do bar e à boa relação entre seres humanos.
“Cadê meu choro?”
Pedir chorinho é o terror para os bartenders – o terror, o terror! Talvez nada os irrite tanto quanto esse hábito tão brasileirinho. Ana Paula Ulrich tem uma técnica para barrar a ação dos abusados. “Quer uma dose dupla?”, sugere, dando a entender que a dose dupla custará o dobro – o que parece bastante óbvio, mas, para algumas pessoas, apenas parece. Ao lidar com pidões insistentes, ela vai mais fundo: “Quando o senhor compra um carro, a concessionária dá outro de brinde?” Há clientes que adotam uma atitude mais agressiva, conta Sylas Rocha: “Seguram minha mão na hora em que estou servindo pra fazer cair mais bebida. Bate aquele segundo de raiva, o sangue vai pra cabeça, mas me seguro e digo: ‘Posso encher seu copo, tá suave. Aí, já comando três doses’”. Diogo Sevilio manda brasa: “Tem gente que acha que chorinho é uma obrigação do bartender ou do local. Cortesia existe, mas nunca se pede. Se conquista”.
“Sabia que o dono é meu amigo?”
Existem os mais ousados, que pedem logo um drinque de graça na cara dura. Alguns empregam a frase-truque “sou amigo do dono” e até ameaçam pedir a cabeça do bartender, caso não ganhem o brinde.
“Ué, mas não tem gelo?”
Tem gente que quer gelo em tudo. Ninguém precisa nascer com o chip de um compêndio de coquetelaria clássica implantado no cérebro, mas é bom procurar saber o que se vai pedir, se o coquetel é forte, seco, doce, refrescante, em que tipo de taça vem, se é servido com gelo ou não. Os bons profissionais de bar estão ali para dar todas essas informações. Se de fato são bons, terão o maior prazer em explicar as características de cada drinque e os que vão ao encontro de seus gostos. “Muita gente quer ver você colocando gelo na taça, e não adianta explicar que aquilo está fora do estilo e da estética do coquetel. Já me irritei bastante com isso e morria de medo que alguém que entendesse de coquetelaria me visse colocando gelo no Dry Martini. Hoje desencanei e sirvo um copinho com gelo à parte para a pessoa dosar do jeito que ela quiser”, diz Thiago.
“Manda um sem gelo, campeão”
O contrário também ocorre e, muitas vezes, com certa malandragem embutida. O boy topzera, sentindo-se esperto e confiante, pede um coquetel no copo baixo sem gelo, imaginando receber um Negroni com bebida até o talo, sem o gelão para ocupar espaço. Em sua presunção, imagina que o bartender não saiba fazer contas. Mas vamos fazê-las. O Negroni é um coquetel composto de 30 ml de gim, 30 ml de vermute e 30 ml de bitter. Contando com a diluição do gelo com que o coquetel foi mexido, dá uns 110 ml. É querer muita boiada receber, pelo mesmo preço, um drinque de 270 ml, a medida média dos copos baixos. “Tento conversar, pergunto se o cliente não quer um coquetel longo, como um Americano ou um Negroni Tônica. Às vezes, nem isso funciona para fazer o sujeito entender”, diz Thiago.
“Vou dar só uma ajeitadinha aqui”
Quem nunca arrumou os objetos da cena para a foto do Instagram? É uma coqueteleira no fundo que não orna, um potinho fora do lugar. Este repórter já fez isso várias vezes, até tomar um pito suave, porém merecido. Os apetrechos estão milimetricamente dispostos no balcão para que o bartender os alcance com facilidade e rapidez. Ele não precisa pensar onde está o frasco de bitter ou o copo de misturas. Se alguém bagunça essa ordem, ele se perde. “Já dou um tapa com a colher de bar na mão de quem mexe nas coisas. Meus amigos estão todos doutrinados”, diz Sevilio, reafirmando o apelido Diogro, como é conhecido na comunidade de bartenders.
“Ai, essa não ficou boa…”
Instagrammers sem noção vão além: pedem que o bartender, com a casa lotada, interrompa o preparo de uma sequência de 30 coquetéis para servirem de modelo para suas revolucionárias captações de imagem, com as quais provavelmente desbancarão a obra inteira de Fellini e Kurosawa. “Já me pediram para tirar o coquetel da taça, voltá-lo para a coqueteleira, mexê-lo e servi-lo de novo, porque o vídeo pro stories não tinha ficado bom”, conta Thiago, rindo para não chorar. Todo bartender terá uma história parecida. “Eu ignoro, pago mais de louco que a blogueira. O que passa na minha cabeça é a pior resposta, por isso fico quieto. Mas uma vez mandei: ‘Você veio ao bar ou ao estúdio de fotografia?’”, diz Sylas, rindo ainda mais.
“Quem é você na fila do drinque?”
Influencer lindo do meu coração, o mundo não gira em volta das suas redes sociais bombadas. Dar carteirada é feio, é cafona. Ana Paula sentiu a pressão da situação quando um trio de bonitas furou fila e ocupou uma mesa que havia acabado de vagar no bar. Ana delicadamente explicou que os lugares eram ocupados por ordem de chegada, mas não houve acordo. “Tenho 900 mil seguidores”, bufou a líder. A bartender manteve a calma e novamente sugeriu que elas liberassem a mesa para o casal que já esperava havia mais tempo. “Sou amiga do filho do dono”, replicou a manda-chuva, já ligando para o filho do dono. “Olha só, é o filho do dono na linha”, esfregou o celular na cara da bartender, demonstrando poder. O filho do dono recomendou que as garotas voltassem várias casinhas. Até seu lugar na fila. O fim.
“Dá pra colocar espuminha?”
O fenômeno da espuma do Moscow Mule, criada anos atrás pelo bartender Marcelo Serrano para suprir a ocasional falta de refrigerante de gengibre no mercado, ultrapassou as medidas. Há quem queira espuminha em tudo, até na Caipirinha. Acontece que cada receita tem uma ficha técnica, em que todos os ingredientes formam o preço. Pedir algo extra é adicionar mais um item à receita e isso tem seu custo. É como pedir camarão num risoto que originalmente só leva funghi. Manja?
“Ah, isso aqui tá muito fraco”
Não ter a sensação alcoólica ao provar certos coquetéis, em bares que se prezam, é uma virtude do produto, sinal de que a receita é bem balanceada e provavelmente foram usados belos ingredientes. Mas tem gente que não entende assim. “Esse coquetel foi criado justamente para você não perceber o álcool”, costuma responder Sylas. Muitas vezes, a reclamação vem acompanhada de um pedido para turbinar a bebida. E de uma interrogação: “Você vai me cobrar mais por isso?”
“É aqui que tem um drinque muito louco?”
Na linha “coloca mais no meu copo”, o pedido por um Gim Tônica fenomenal, com todo o hortifrúti do mercado dentro é comum. “Que frutas você tem para colocar no coquetel?”, há quem pergunte, sem consultar o cardápio. Thiago conta casos em que pedem xarope industrial no Gim Tônica (“Para não ficar amargo”), coquetel com bala Fini (sim, isso existe) e cinco tipos de fruta na Caipirinha. “Essa desconexão me irrita. São expectativas padronizadas movidas pela pasteurização do serviço. Não é porque dez bares têm que todos devem ter igual”, diz Diogo Sevilio. “A pessoa mimada apenas supõe que você possa atender qualquer pedido, sem observar o lugar onde está, sem se dar ao trabalho de procurar saber e sem ao menos olhar o cardápio.”
“Esse eu faço em casa”
Ensinar o bartender a preparar um drinque é outro expediente comum entre folgados que se acham a última aspirina da cartela em manhã de ressaca. “Eu me divirto. Digo: ‘Ah, é? Então, me ensina’. Deixo ele explicar, enquanto finjo que ouço”, diz Sylas.
“Um coquetel levinho para a boneca aqui ao lado”
Bebida não tem gênero. Bebida não tem gênero. Bebida não tem gênero. Algumas pessoas deveriam ter de copiar essa frase mil vezes no caderno, que nem castigo de escola antiga. Ana Paula conta que é bastante comum ver o fortão pedir “um coquetel pra macho”, enquanto aponta para a companheira e ordena “um drinque de menininha pra ela”. Há garotas que, para provar o quanto lhes foi árdua a desconstrução da feminilidade-padrão, sublinham: “Sou diferente. Sou mulher, mas gosto de Negroni”. Já entre os moços há quem reafirme a masculinidade recusando-se a segurar qualquer tipo de haste: “Não gosto de nada servido em taça, viu? Coquetel para mim tem de ser em copo baixo”, avisam. “Tá certo que bar não é lugar de militância, mas, dependendo da situação, às vezes é preciso argumentar sutilmente com o cliente para tentar desfazer esses estereótipos, refletidos até no que as pessoas escolhem para beber”, diz Ana Paula.
“Mas ele tem pedigree!”
Há quem ame incondicionalmente seu pet e acredite que todos devam compartilhar dessa paixão. Mas há regras. A primeira é certificar-se de que o lugar aceita a presença de animais, se há áreas específicas para eles ou não. Thiago certa vez atendeu uma reserva para cinco pessoas – duas delas eram os gatos da cliente. “Mas eles não sentam no chão”, retorquiu a folgada, que foi embora indignada, ao ser informada de que os bichanos não poderiam ocupar dois lugares no bar. Ou melhor, nem poderiam permanecer ali dentro. Outra, fula da vida do lado de fora com seu cão, pediu à equipe do bar que secasse a calçada molhada, para o conforto do seu totó. Havia acabado de chover.
“Tô pagando”
O momento sinhazinha protagonizado pela cliente que queria a calçada seca não é exceção. Nem no bar nem em qualquer âmbito da vida brasileira. “Entendo o bar e o restaurante como lugares de hospitalidade, de acolhimento, que fazem muito mais do que apenas vender bebida ou comida. Só que receber os clientes em casa não significa ter de fazer todas as suas vontades. Muitas vezes, ainda prevalece o comportamento do ‘tô pagando’, do cliente ter sempre razão, o que não é verdade. Há quem não se acostume com a ideia de que possa ouvir um ‘não’ de um serviçal”, constata Diogo.
“Lá no meu bairro é mais barato”
Hoje há um mundo de recursos para saber o quanto se pode gastar num lugar, por resenhas de revistas, sites e aplicativos ou por cardápios no Google. Os preços estão pela hora da morte em todos os cantos e é preciso fazer uma pesquisa prévia, a não ser que se nade em dinheiro, o que é o caso de pouca gente. Chegou ao lugar e sentiu que os valores estão fora de seu orçamento? Peça suco de uva na taça, fingindo que é vinho (o bartender vai te olhar feio, mas tudo bem), ou água com gás, gelo e rodela de limão no copo alto, fazendo de conta que é Gin Fizz. Faça a bonita e sorria. Tecer comparações e reclamar do preço com o bartender, que na maioria das vezes nem é dono do estabelecimento, é que é uó.