Ponto de interrogação

E no modão sertanejo, você tá como?

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O mood sertanejo é muito maior do que um bando de agroboys machistas envolvidos com desvio de verba pública. O sertanejo tem raízes populares e multirraciais que encontram diferentes encarnações em diversas regiões do Brasil, além de seus “parentes” internacionais, como os caubóis estadunidenses.

Sertanejo de, claro, sertão. Há linhas de pesquisa que defendem uma separação entre sertanejo do Norte e Nordeste e música caipira, essa última mais focada nas populações rurais de estados do Sudeste e parte do Centro-Oeste. Mas o fato é que elas se encontram em alguns pontos e compartilham, além de instrumentos, alguns códigos, do look ao lamento. Sertanejo de herança dos ex-bandeirantes e da violência colonizadora, das comitivas de boi, dos trabalhadores da lida, dos agricultores de pequenas roças. Complexo como o Brasil.

Sim, eu sei, tem muita coisa péssima e machista nas letras e iconografias de hoje. Elas, sem nenhuma surpresa, estão conectadas a nomes defensores do agronegócio em sua face mais mortífera, a discursos fascistas violentos, e colocam as mulheres em um lugar lamentável. Ouvir é questão de escolha porque, sim, tem coisa bem melhor disponível.

A tradição de mulheres, por exemplo. Claro, algumas se colocam ao lado do preconceito, infelizmente. Mas tantas outras fazem escolhas melhores. Marília Mendonça e seu estilo ganharam essa geração, mas antes dela vieram outras. As Irmãs Galvão com aquela do “encosta sua cabecinha no meu ombro e chora”. A icônica e maravilhosa Inezita Barroso com a marvada pinga, mas também com faixas lindas, como Galope à beira-mar e a pérola Luá, luá, um drama cangaceiro que faz apelo à Lua. Ousadas, As Marcianas, com o hit Vou te amarrar na minha cama. A pioneira Ana Eufrosina, mais conhecida como Inhanha, da dupla com Cascatinha, sua voz cantando Índia ou Meu primeiro amor. Triste e sensível, de uma grande delicadeza. A viola caipira da fantástica Helena Meirelles. Sula Miranda posando na frente de um caminhão cor-de-laranja em seu disco de 1986, como a mulher que espera o companheiro estradeiro em Caminhoneiro do amor. A babadeira Roberta Miranda e seu vozeirão, seu hit latiníssimo Vai com Deus. As influências da música indígena de vários países da América do Sul aparecem em muitas canções.

Nos anos 1990, a figura da “peoa” de rodeio foi retratada na novela da Manchete A história de Ana Raio e Zé Trovão, que misturava o cotidiano de duas caravanas de rodeio com temas como a violência do estupro e a violência no contexto das fazendas. Em 2005, no cinema, Os dois filhos de Francisco trouxe o tema daqueles que deixam a roça buscando o sucesso na cidade. Isso para não falar da extensa e popularíssima obra de Mazzaropi, dos anos 1950 aos 80, com a figura do “Jeca” e dos caipiras do interior paulista.

Também na década de 1980, em termos visuais, houve uma estilização do look cowgirl a partir do ambiente urbano, com o uso das botas típicas com looks street, assim como de elementos como estampas de vaca e franjas de couro, um olhar deslocado sobre a roupa de trabalho rural.

O sertanejo, de todo modo, tem algo de triste, às vezes de melancólico. Estrada da vida, Ainda ontem chorei de saudade, só soco direto no peito. A onda pop do eixo 1990-2000 é mais focado numa abordagem sentimental das paixões. Hits dessa época, como Evidências, Não aprendi a dizer adeus, Alô, eu juro ou Ela é demais (aquela do uma deusa, uma louca, uma feiticeira) não me deixam mentir. Tudo o que certa abordagem diria ser cafona aqui não só é permitido, como essencial. E que o cafona inspire o chic é uma contradição bastante comum.

De Raf Simons ao mais recente show da Margiela Artisanal (equivalente à couture), a complexidade dessa figura do caubói/caipira/sertanejo sempre atraiu os designers de moda. No Brasil, em diferentes registros, estilistas como Marcelo Sommer, Ronaldo Fraga e Alexandre Herchcovitch deram suas impressões sobre as modas e os modos do interior. O popular aparece aqui como estética que, mesmo quando romantizada ou festiva, não deixa de falar de certa disputa de poder.

Aí talvez pudéssemos pensar no quanto a tristeza e o lamento de muitas dessas manifestações falem não só de um isolamento, mas de uma vontade de abrir portões mais largos, horizontes ainda mais amplos do que os vistos nas antigas e lindas propagandas de Marlboro, com seus cavalos e paisagens.

Dos caubóis gays de Brokeback Mountain aos afrontes femininos da saudosa Marília, há muitas vozes pouco ouvidas nesse mundão dos interiores de países enormes como o Brasil e os EUA. Verdades inconvenientes que vão aparecer sempre, ficando mais evidentes a cada investida contrária, a cada tentativa de calar e de abafar desejos.