“Travesti não é bagunça!”, disse Luana Muniz, trabalhadora sexual e ativista da causa LGBTQIAP+, após um cliente desrespeitá-la em seu local de trabalho.
Assim como Luana, que desempenhava um ativismo social nas noites no que diz respeito à prevenção das ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis), diversas travestis e pessoas trans têm afirmado, por meio de suas atuações políticas, sejam elas institucionais ou não, que nós, população trans, não somos bagunça, que somos sujeitas e sujeitos de direito, que temos outros projetos de mundo a propor, como bem disse Maria Clara Araújo dos Passos, travesti e intelectual negra brasileira.
Em 2022, pela primeira vez na história do Brasil, cinco parlamentares trans e travestis foram eleitas nas eleições estaduais e federais do país, sendo duas delas como deputadas federais, Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), duas como deputadas estaduais, Dani Balbi (PCdoB-RJ) e Linda Brasil (PSOL-SE), e uma como codeputada estadual, Carolina Iara, da Bancada Feminista (PSOL-SP).
Mas, até chegarmos a esse momento histórico e que representa, como diria Linn da Quebrada, “criação de novos imaginários sociais”, muitos caminhos foram percorridos.
A atuação política das travestis e transexuais começou nas ruas, no contexto da prostituição e como uma forma de resistência às investidas policiais que, à época, perseguiam e agrediam os “invertidos” ‒ termo pejorativo usado para se referir às travestis e pessoas da comunidade LGBTQIAP+ naquele período ‒ sob a justificativa do artigo 59 da Lei N° 3.688, de 1941, popularmente conhecida como Lei da Vadiagem.
Como resposta às constantes perseguições e prisões arbitrárias, em 1979, Jovanna Baby, matriarca e fundadora do Movimento de Travestis e Transexuais no Brasil, juntamente com outras trabalhadoras sexuais de Vitória, fundaram a Associação Damas da Noite.
Essa atuação pioneira, aliada ao trabalho como multiplicadora da informação sobre questões relativas às ISTs, sobretudo HIV/aids, feito em parceria com o Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser) no início da década de 1990, no Rio de Janeiro, possibilitou à Jovanna familiaridade com as questões políticas, o que foi de suma importância para que em 1992, em conjunto com outras travestis ativistas, fundassem a Astral (Associação de Travestis e Liberados).
“É muito importante discutirmos a história do movimento para estourarmos a bolha do apagamento. Nesse sentido, os Encontros Nacionais de Travestis e Liberados (Entlaids), que surgiram em decorrência da Astral, foram cruciais para o processo de formação e conscientização política do movimento. Foi a partir desses encontros que surgiu a questão do nome social, na época chamado de “codinome”, assim como as estratégias de enfrentamento ao HIV/aids. A luta, que começou lá nos anos 1970, possibilitou que hoje pessoas trans e travestis chegassem às universidades e fossem eleitas para cargos políticos. Agora, cabe a essa nova geração, o resultado dos esforços das anteriores, continuar esse legado de acolhimento, resgate e suporte, para que outras e outros também acessem esses espaços de cidadania”, afirma Jovanna Baby, matriarca e fundadora do Movimento de Travestis e Transexuais do Brasil.
Para um maior aprofundamento sobre a história do Movimento de Travestis e Transexuais, indico os livros Bajubá odara: resumo histórico do nascimento do movimento de travestis do Brasil, de Jovanna Baby, e Pedagogias das travestilidades, de Maria Clara Araújo dos Passos.
“Travesti não é bagunça!”
Este ano, o movimento fundado por Jovanna e as demais travestis celebra, oficialmente, 30 anos de existência. De lá para cá, muitas lutas foram travadas e direitos conquistados, mas a realidade brasileira ainda se mostra desumanizante e desafiadora para pessoas trans e travestis.
Há 14 anos consecutivos o Brasil ostenta o título de país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, segundo ranking anual da Transgender Europe (TGEU). Também é verdade que, segundo a Antra, Associação Nacional de Travestis e Transexuais, a expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos e que esse número cai para 29 quando a pessoa, além de trans é negra, ao passo em que o brasileiro vive, em média, 72,2 anos, segundo o IBGE.
Frente a esse cenário de extrema vulnerabilidade e violência, as eleições de parlamentares trans e travestis representam, como bem nos ensinou a intelectual negra brasileira Giovana Xavier, a “restituição de humanidades negadas”, que nada mais é do que um processo de retomada e reparação histórica em decorrência das opressões sofridas pela população trans e travesti.
Erika Hilton, a primeira deputada federal negra e travesti eleita na história do Brasil, entende que: “Há uma forte predominância e uma forte presença dentro do movimento trans e travesti de mulheres trans negras, que têm conduzido esse processo de restituição da humanidade e têm tentado propor, inclusive através das eleições, pactos de civilidade e processos democráticos que levem em consideração as nossas vozes. A restituição das nossas humanidades também passa pela colocação de mulheres negras, de mulheres trans e travestis em espaços de poder, em espaços de tomada de decisão, e que possam pôr em prática projetos políticos de transformação, autonomia e independência”.
Se por um lado a presença de parlamentares trans e travestis na política institucional possibilita novos horizontes e que a voz do subalterno, em alusão a Gayatri Spivak, seja representada, por outro também é motivo de ataques e resistências.
Nos últimos anos, vimos no Brasil um crescimento exponencial da extrema direita e de setores neoconservadores, o que resultou em projetos de lei que objetivavam institucionalizar a LGBTfobia, como os PLs 346/19 e 504/20, apresentados à Assembleia Legislativa de São Paulo, e o 680/21, apresentado à Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Sobre esses pontos, Carolina Iara, codeputada da Bancada Feminista (PSOL) e primeira deputada travesti intersexo eleita na cidade de São Paulo e nas Américas, comenta sobre o futuro e o que espera para o seu período de governabilidade: “O cenário político que iremos enfrentar durante o mandato exigirá não só proposições da nossa parte, mas também resistência aos ataques que surgirão, frutos do extremo conservadorismo semeado ao longo dos últimos anos. A nossa atuação política é marcada pela busca do bem-estar e da garantia de direitos das populações mais pobres e vulneráveis, o que significa advogar por aqueles que, historicamente, foram negligenciados e esquecidos. Para isso, é fundamental o ativismo social que todas nós, parlamentares trans e travestis eleitas, temos desempenhado ao longo de nossas trajetórias de vida. É esse fazer social coletivo, aliado à nossa presença na política institucional, que nos dará maiores condições de enfrentamento à LGBTfobia e às demais violências”.
Do pioneirismo de Kátia Tapety, primeira travesti eleita na história da democracia brasileira, em 1992, até a chegada das cinco parlamentares ao Congresso Nacional e Assembleias Legislativas, nós, travestis, mulheres trans e pessoas trans em geral, temos trilhado um percurso de luta e resistência contra as violências interconectadas que nos atingem.
Esta matéria, escrita por uma jornalista que é, também, mulher trans, faz parte desse processo de afirmação de que nós, travestis, mulheres trans e pessoas trans, “não somos bagunça”, que temos muito a contribuir com a sociedade e queremos romper com “as histórias únicas”, em menção à Chimamanda, comumente atreladas a nós.
Que, ao dizermos a palavra “travesti”, a imagem que se forme no imaginário das pessoas não seja mais sinônimo de violência e estigmatização, mas de uma parlamentar eleita, uma professora lecionando, uma estilista desenhando ou qualquer outra imagem que remeta à dignidade e à humanidade.
Esta reportagem foi publicada originalmente em novembro de 2022, na ELLE View, nossa revista digital mensal. Faça a sua assinatura e tenha acesso a todas as edições.