“Hoje eu posso estar por baixo/ Mas amanhã eu tô por cima/ Desatola bandida/ Seja na lama ou no asfalto, a estrada ensina”, canta Raíssa (Alice Wegmann), uma candidata a estrela sertaneja no seriado Rensga hits! (Globoplay). Tempos atrás, “Desatola bandida”, a canção, levaria a assinatura de um grupo de compositores homens, que dariam a sua versão particular para o drama da sertaneja que largou o noivo ao pé do altar depois de descobrir que ele tinha outra. Mas dessa vez optou-se por utilizar alguém que possui – para usarmos um termo bastante popular nos últimos tempos – “lugar de fala”. bibi (assim mesmo, com letras minúsculas) criou os dez temas musicais do seriado, ao lado de um time de jovens compositores e sob a supervisão do produtor Dudu Borges. “O mais especial sobre esse projeto é ser uma autora escrevendo sobre uma autora. Me vejo muito nas personagens da série”, diz a compositora.
bibi Divulgação
A preferência por bibi, além do óbvio talento da autora, reflete uma tendência atual no universo do showbiz: é cada vez maior a presença de mulheres na criação de canções que reflitam o dia a dia feminino. “É necessário que tenhamos a nossa própria voz”, completa a jovem artista.
bibi não está sozinha na transcrição desse universo tão particular e especial. Carol Biazin, Jenni Mosello, Day Limns e Carolzinha, entre tantas outras, possuem criações na voz de grandes artistas pop nacionais, como Anitta, Luísa Sonza, IZA e até as veteranas do quinteto Rouge. Embora a média de idade seja 28 anos, elas possuem uma longa trajetória. bibi canta desde os 13 anos e trabalhou como assistente de Borges, principal produtor do segmento sertanejo (e que hoje se dedica mais ao pop e à música eletrônica). Carol, Day e Jenni participaram dos principais programas de calouros dos últimos anos: as duas primeiras foram fortes candidatas no The voice (Rede Globo), e Jenni ficou em segundo lugar na única edição de X-Factor (Rede Bandeirantes). Carolzinha tem uma dupla pop ao lado da irmã, Vitoria. “Comecei na música como intérprete. Após algum trabalho, conquistei a liberdade para ser artista autoral. Em seguida, fui me interessando pelos processos criativos alheios”, diz Jenni. “É fascinante dividir arte. Hoje sou 50% compositora, 50% cantora.”
Carol Biazin Thais Vandanezi
Como ela pontua, os trabalhos de criação não se limitam a criar hits para terceiros. Jenni finalizou o álbum FEMMINA, que tem parcerias e participação de Alice Caymmi, Cleo, Jade Baraldo, Day, King, Carolzinha, Rafa Villela e Bivolt, além de Carol. Day lançou, semanas atrás, o single “Muito além”, um dueto com Di Ferrero. E Carol prepara seu primeiro disco. Ela, aliás, estará no Lollapalooza 2023, um sonho há muito tempo perseguido. “Eu vejo muito a minha trajetória no mercado com passos pequenos, mas muito conscientes de onde eu quero chegar”, afirma.
Chiquinha, Ivone e outras antecessoras
Não é preciso ser um expert em sociologia para saber que há séculos as mulheres lutam por um espaço justo na sociedade. E na música não foi diferente. A compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga (1847-1935) abandonou o casamento e foi repudiada pela própria família – que tinha suas origens na aristocracia carioca – porque decidiu prosseguir na carreira musical. Dona Ivone Lara (1922-2018) foi a primeira mulher a fazer parte da ala de compositores de uma escola de samba quando “Os cinco bailes da história do Rio”, de 1965, foi usado como enredo na Império Serrano. E só em 1977 lançou seu primeiro disco.
Ainda na década de 1960, a cantora e autora carioca Joyce Moreno criou o “eu feminino”. Explicando melhor: letras que eram criadas sob o ponto de vista da mulher. É o caso de “Me disseram”, de 1967, que traz o verso “me disseram que meu homem não me ama”. A composição foi apresentada num festival de MPB no Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, e recebeu uma sonora vaia da plateia. “Falei do ponto de vista da mulher, da jovem e da velha que sou”, lembrou Joyce há pouco tempo. Posteriormente, nos anos 1970 e 80, autoras como Fátima Guedes e Sueli Costa engrossaram o caldo do “eu feminino” e criaram composições para as maiores intérpretes da música brasileira. Elis Regina, Gal Costa, Maria Bethânia, Simone e muitas outras gravaram criações desse trio.
Jenni Mosello Divulgação
O sertanejo, gênero mais popular do país, presenciou seis anos atrás a ascensão do feminejo com compositoras como Marília Mendonça, Maiara & Maraísa e Paula Mattos. Uma revolução e tanto, visto que nesse gênero a hegemonia era masculina, que criou letras a respeito de mulheres ingratas e infiéis. A pioneira Roberta Miranda e Paula Fernandes foram algumas das poucas autoras que furaram esse bloqueio.
As criadoras atuais se apoiam principalmente na linguagem pop e no empoderamento das performers de hoje. Muitas artistas chegam a incentivar a produção de composições escritas por mulheres. “Uma vez, uma cantora pop, cujo nome prefiro não revelar, vetou todas as músicas que tinham sido apresentadas a ela porque não se via naquelas letras. Curiosamente, elas tinham sido criadas por autores homens”, diz Jenni. Outras se apoiam na pauta do empoderamento e do feminino para ajudar na criação de seus hits. “A Luísa costuma trazer textos a respeito do assunto que deseja falar. Desenvolvemos as letras com base neles”, completa Day, uma das coautoras de “Anaconda”, hit da gaúcha.
O pop atual costuma ser gestado em laboratórios de criação para novos artistas – os song camps. Basicamente, são reuniões dos artistas com um grupo de autores onde eles definem o tema e o ritmo a ser trabalhado. Os criadores se reúnem em pequenos núcleos, criam as canções e as mostram para os intérpretes. Cabe a eles dar a palavra final sobre o que será gravado ou não. Um dos mais conhecidos é o Canetaria, que recentemente trabalhou no repertório do novo projeto de Claudia Leitte e está gestando os singles das MCs Rebecca e Pocah. “A gente procura contar histórias. Um time muito plural de criação e vivências”, diz Tiê Castro, criador do Canetaria, que tem Jenni e o marido dela, o produtor Lucas Vaz, como sócios. Tiê reforça a importância do gênero feminino nesses trabalhos. “Todos os grupos sempre têm de ter uma mulher liderando, para não passar uma visão machista ou misógina”, diz. “As mulheres têm uma visão melódica muito grande.”
Carolzinha Lana Pinho
As compositoras femininas conquistaram sua posição nesses locais à custa de muita luta. Normalmente, havia homens à frente dos grupos de criação. “Antigamente, a gente via duas, no máximo três mulheres entre dez, 12 homens. E hoje a gente consegue ver nos camps, às vezes, até mais mulheres do que homens. Principalmente nos camps de pop, ou quando escrevemos para outra mulher”, revela Carol, que desde 2018 participa desses processos. “Acho que faz muito mais sentido serem várias mulheres escrevendo do que só homens, conseguimos pegar mais a visão”, continua.
Pelo mundo
O próximo passo das empoderadas brasileiras da composição é trafegar por áreas internacionais. No final de outubro, Jenni partiu para Paris e Nova York a fim de trabalhar num song camp de composição de Alicia Keys, onde criou melodias e letras em inglês. “Foram cinco dias banhados a feminino! She Is the Music é um projeto criado pela Alicia justamente para dar mais visibilidade e oportunidade às mulheres na indústria da música. De engenheiras de som a compositoras, 100% da equipe foi construída por mulheres. Nunca tinha participado de nada parecido. Foi refrescante criativamente estar imersa em arte com tantas mulheres”, exalta Jenni. Carolzinha passou uma temporada em Portugal, criando para David, Tony e Mickael Carreira, nomes relevantes do pop lusitano.
Day Limns Divulgação
bibi atualmente passa um período em Los Angeles, onde atua em outro núcleo de criação: a academia do Stargate, uma dupla de produtores noruegueses que criou canções para Rihanna, Beyoncé, Coldplay e muitos outros. O projeto se chama Laamp (Los Angeles Academy for Artists and Music Production) e reúne 45 pessoas de diferentes partes do mundo, sendo a divisão harmônica entre produtores, artistas e compositores. “A rotina consiste em 12 horas diárias de estúdio e a presença semanal de ilustres nomes da indústria global, que atuam como mentores do programa. Entre os convidados estão Neyo, Charlie XCX, Emily Warren, Ryan Tedder, Benny Blanco e Diplo. As mentorias também passam por tópicos como saúde mental, gerenciamento de mídias, relacionamentos na indústria e todas as pautas cotidianas da vida na indústria fonográfica”, diz bibi. “Durante anos, ouvi músicas escritas e produzidas por homens, mesmo que às vezes fossem interpretadas por mulheres. Cresci ouvindo o mundo por uma perspectiva masculina. Está na hora de somarmos a voz feminina a essa trilha sonora, se não continuaremos ouvindo o mundo pela metade”, encerra Jenni. O girl power finalmente virou realidade.
ELAS FAZEM A MÚSICA QUE ELAS CANTAM
BIBI
Idade: 26 anos
Principais influências: “De Abba a Beatles, de Rouge a Almir Sater, de Beyoncé a Roberto Carlos.”
Canções que compôs para outros artistas:
“Desce pro play (Pa pa pa)””, Mc Zaac, Anitta & Tyga
“Não perco meu tempo”, Anitta
“Pior que possa imaginar”, Luísa Sonza
“Como se fosse a primeira vez”, Rouge
“Leve”, Sandy & Wanessa Camargo
“Destruição”, Sandy & OutroEu
“Tudo teu”, Sandy & Vitor Kley
“Voltar pra mim”, Sandy & Ludmilla
“Number one”, Pabllo Vittar & Dj Rennan da Penha
“Isso é o amor”, “Band-aid”, Wanessa e Zezé Di Camargo para a série É o amor: Família Camargo (Netflix)
Trilha Original completa da série Rensga hits (Globoplay)
Canções da carreira solo:
“Happy”
“Conta tudo”, com Amanda Coronha & Little Glass
“Imagina amar assim”, João Klein & bibi
Frase que a define: “Música é forma de enxergar o mundo, a parte mais sagrada da alma e a energia mais forte que nos pulsa.”
DAY LIMNS
Idade: 27 anos
Principais influências: “Pop, rock, trap e R&B.”
Canções que compôs para outros artistas:
“Penhasco”, Luísa Sonza
“Não perco o meu tempo”, Anitta
“Juntinho”, Rouge
“Rolê”, Carol Biazin & Gloria Groove
Canções da carreira solo:
“Finais mentem”
“Clichê”
“Geminiana”
“7 Vidas”
“Muito além” (com Di Ferrero)
Frase que a define: “Sou o que preciso ser para me salvar de mim quando eu morrer de mim.”
CAROL BIAZIN
Idade: 25 anos
Principais influências: “Taylor Swift e Marília Mendonça são duas mulheres de segmentos diferentes, mas, ao mesmo tempo, eu amo como conseguem contar histórias por meio da música e de fazer as pessoas se identificarem com aquilo que elas estão cantando.”
Canções que compôs para outros artistas:
“Complicado”, de Vitão e Anitta
“Juntinho”, da Rouge
Cinco canções do álbum Doce 22, de Luísa Sonza: “Penhasco”, “Melhor Sozinha :-)-:”, “VIP *-*”, “2000 S2” e “Anaconda *o*˜˜˜”, com Mariah Angeliq;
Canções da carreira solo:
“Suas linhas”, Rolê, com Gloria Groove
“Raio X”, com Dilsinho
Frase que a define: “Eu amo ser do contra.”
CAROLZINHA
Idade: 23 anos
Principais influências: “Gloria Groove, IZA, Priscila Alcantara e Anitta.”
Canções que compôs para outros artistas:
“Sem filtro”, IZA
“Mó paz”, IZA
“Droga”, IZA
“TE AMO (em caixa alta)”, Kiaz e Anitta
“Arlequina”, Tainá Costa
“Tarada”, Tainá Costa e Mc Fioti
“Rolê”, Carol Biazin e Gloria Groove
“Aguenta caladinha”, Jade Baraldo, Mac Júlia e Karol Conká
“Tô gata”, Laís Bianchessi
Canções da carreira solo:
O EP CARA, “com músicas cheias de influência do pop trap”
Frase que a define: “Ser luz por onde for, somos do tamanho do nosso sonho e gentileza”
JENNI MOSELLO
Idade: 28
Principais influências: “Mulheres na arte, de Ella Fitzgerald a Rosália, Nathy Peluso, Sevdaliza e até a pintora Artemísia Gentileschi.”
Canções que compôs para outros artistas:
“Coragem”, As Baía e Rebecca
“Você me fu**”, de Chameleo
“Na sua mente”, de Cleo e Alice Caymmi
“VIP*-*”, de Luísa Sonza
“Dengo meu”, Claudia Leitte, Lucy Alves e Juliette
“Onda”, de Malía e Léo Santana
Canções da carreira solo:
“Menina má”
“Disfarço”
“C.Alma”
Frase que a define: “Faço pARTE para ser toda”