Apagadas dos registros feministas por tempo demais, as mulheres negras conquistaram espaço e voz para denunciar que a tal sororidade não só parava diante dos limites das periferias e zonas marcadas pela exclusão, como também ignorava experiências e teorias construídas fora do eixo colonialista.
Intelectuais como Grada Kilomba, Chimamanda Ngozi Adichie e Djamila Ribeiro ganharam destaque internacional e contribuíram para a retomada do pensamento de suas antecessoras. Pensadoras indispensáveis, como Audre Lorde, Bell Hooks e a própria Angela Davis, foram descobertas por novas gerações de leitores. No Brasil, nomes como Lélia Gonzalez, Neusa Santos Souza e Beatriz Nascimento voltaram às teses universitárias e ao debate político. Isso tudo, evidente, veio por meio de avanços e mudanças no conjunto dos movimentos negros, considerando aí a abrangência de sua militância.
A quarta onda questiona pensamentos consolidados e rotas cansadas. Às vezes radicalmente. A socióloga nigeriana Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí, por exemplo, analisa a validade da categoria mulher para algumas sociedades africanas em que nem gênero nem sexo têm importância decisiva na divisão social do trabalho. Assim, a opressão não consegue ser definida a partir de um grupo chamado “mulheres”, muito menos as reivindicações cabem sob a ideia de “feminismo”. E isso leva a uma série de questões, muitas delas ligadas obviamente aos rumos do colonialismo.
Oyěwùmí nos faz até mesmo rever a célebre ideia de Simone de Beauvoir expressa na frase: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”. Essa afirmação foi e ainda tem sido muito lida a partir da separação de sexo e gênero. Ou seja, a pessoa nasceria com um sexo “biológico” e seria marcada, para o bem e para o mal, pelas construções socioculturais relacionadas a cada gênero, inclusive podendo decidir sobre seu pertencimento.
Mas Simone e sua obra disseram mais que isso, foram mais longe. E Oyěwùmí nos ajuda na releitura dizendo que a própria categoria sexo não é biológica no sentido de natural, mas também ideológica. Isso bagunça as coisas bem onde elas têm de tremer.
Intelectuais trans (uma parte indissociável da quarta onda feminista) também trazem suas questões. Não só no sentido da despatologização de suas existências, mas de questionar o âmago do sexo.
Assim não se trata de “aceitar” ou não pessoas trans entre as fileiras feministas. O feminismo, qualquer que seja e reivindique validação, aliás, deveria sustentar sua recusa inegociável da transfobia.
Uma das questões é, sim, analisar o que as pautas trans podem revelar sobre o sexual. Para seguir aqui a trilha de Judith Butler, Paul Preciado e da filósofa eslovena Alenka Zupančič, a ideia não seria encontrar um padrão ou mesmo vários, mas admitir que nisso que chamam de identidade sexual lidamos com uma indeterminação radical que pode se “resolver” por caminhos muito específicos. Já pensaram nisso?
As implicações e possibilidades abertas por essas discussões são impressionantes, de mudar a cara e a coragem do mundo.
Em vez de nos ajeitarmos com um feminismo de card e frases feitas, esse que usa o antirracismo para sustentar racismo, esse que usa populações periféricas para sustentar superioridade de classe, esse que é só pose e zero entrar pra jogo, devemos nos posicionar e buscar envolvimento. Devemos nos organizar e viver as lutas e os debates, em vez de nos conformarmos ao tal “futuro feminino”. Há horizontes e utopias melhores no ar. Há muitas perguntas a serem feitas.
Enquanto certo feminismo de ocasião segue encalhado nos escombros de construções já colapsadas, a quarta onda avança. E, segundo diz o ditado, feminista que “dorme” a onda leva.