​É possível levar uma vida boa em uma vida ruim?

Sobre ideias de Judith Butler e o silêncio na sala de jantar.


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Sigo com Judith Butler em seu livro Corpos em Aliança e a Política das Ruas. Às voltas com o estatuto dos corpos, de seu encontro e abraço político atravessado por ideias como vulnerabilidade, dependência (assunto da minha coluna passada) e democracia, ela escreve um capítulo em parte inspirado pelo filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno*. Butler encontra uma forma de se juntar a ele na questão que dá nome e rumo a esse trecho do livro: “É possível levar uma vida boa em uma vida ruim?”.

Como ela nota em detalhe, a tarefa de descrever o que seria, em primeiro lugar, uma vida boa, já encontra uma série de obstáculos e questões a serem resolvidas. O que é boa, o que é vida, o que é viver a vida, coisas nada simples de responder. Mas podemos olhar à nossa volta e perceber que há uma certa noção do que isso seria, um conjunto de discursos, práticas e imagens do que se considera sucesso, felicidade, uma existência prazerosa. É fácil perceber, logo de cara, que sucesso, felicidade e prazer são também entendidos segundo certas coordenadas.

Diz Butler sobre as considerações de Adorno. “Na verdade, ele também está perguntando como as operações mais amplas de poder e dominação penetram ou interferem em nossas reflexões individuais sobre como viver melhor. Ele escreve: (…) a conduta ética, a conduta moral ou imoral, é sempre um fenômeno social, em outras palavras, não faz absolutamente nenhum sentido falar sobre a conduta ética e moral separadas das relações dos seres humanos uns com os outros, um indivíduo que existe puramente para si mesmo é uma abstração vazia”. Ah, Adorno, se você lesse os cards ficaria horrorizado.

Há já bem cimentado no senso comum um papo sobre “fazer a sua parte”, um papo que não define bem o que seria essa parte, em que termoscomo poderíamos fazê-la. E se ela é parte, é afinal parte de quê? Quando você faz a sua parte, participa de quê, exatamente?

A sua parte é necessariamente ligada ao outro e aos outros porque isso que você chama de eu também é. O que, evidente, não resolve tudo. Não conheço, aliás, uma coisa que resolva tudo. Nem a morte. Da morte sempre sobram os vivos, e não só. Mas se não partirmos daí, de que há sempre outro, ficamos desertos.

E como pensamos nossas relações? Tendemos, porque temos sido ensinados, a pensar nossas relações dando por certas ou naturais coisas que são incertas e construídas. Para nos sentirmos maiores, mais poderosos, subestimamos o que tem do mundo nisso que chamamos de próprio. Eu gosto disso, eu quero aquilo, eu sou assim.

A questão da vida boa na vida ruim mexe em limites e questiona a certeza de certos modelos. Se enfrentarmos o caminho, veremos balançar as noções de dentro e fora, perto e longe, antes e depois, junto e separado. Isso, é claro, para além do clichê publicitário. É uma mudança importante de perspectiva que exige mais envolvimento e menos

engajamento padrão. As pessoas soltam e pegam as mãos umas das outras. E isso tanto não é algo sem consequências quanto não pode ser reduzido a cálculos cínicos.

E lá vem a Butler. “Ao admitir a necessidade que temos um do outro, admitimos do mesmo modo princípios básicos sobre as condições sociais e democráticas do que ainda podemos chamar de a vida boa”. E ainda mais: “Se vou levar uma vida boa, vai ser uma vida vivida com outros, uma vida que não é uma vida sem esses outros (…), serei transformado por essas conexões”.

Tudo muito bom, tudo muito bem com essa citação até o momento em que esses outros passam a ser muitos e todos com direitos iguais, inclusive aqueles fora dos nossos círculos de conforto. Se o mundo em que vivemos, como argumenta Butler, pretende dividir as pessoas entre “dependentes e não-dependentes”, isso acontece a serviço das desigualdades. E acontece a partir de um tipo de essencialização. Por exemplo: não existe um ser humano essencialmente pobre, não existe “o pobre”, existem relações sociais que marcam lugares de pobreza. Mas em certo discurso, não só existe o pobre como ele, em relação ao rico, é dependente. Ainda nesse contexto, ele é um “peso”, um “aproveitador”, um “vagabundo”, um “incapaz” e todos os absurdos supremacistas que temos engolido diariamente como se fosse chazinho.

“Uma vida que não é vida sem esses outros”. Ecoam Fanon e Césaire, de novo e de novo. Aquele que bestializa o outro não o faz sem necessariamente bestializar a si mesmo. Antes e com mais força, eu diria, mas com quais consequências? Pede-se comida onde ela sobra, e nem sempre se ganha. Passa-se fome diante daquele que gostosamente mastiga. Vitrines de doces finos, banquetes, redes de fast-food, carrinhos abarrotados. As prisões recebem mães que roubaram pão e pedaços de frango.

Butler tem razão. Não há vida onde se aceita a fome nesses termos. E ainda assim se vive. Mas com que gosto, com que pulso?Se nos esquivamos diante da pergunta de Butler e Adorno, vamos abrindo mão da liberdade que nos permite parar de olhar para a realidade de costas curvadas, adotando discursos covardes, aceitando que pessoas possam ser marcadas como descartáveis. E precisamos desesperadamente dela.

É com liberdade que sonhamos.

*O conteúdo foi também parcialmente citado por Butler uma conferência pública na ocasião da entrega do prêmio Adorno em 2012, na cidade de Frankfurt.

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