Cinco fatos sobre Beatriz Nascimento
Coletânea de textos joga luz sobre a obra da historiadora, que abriu caminhos como intelectual negra.
Para entender com precisão a história do Brasil, ciente de que existe a versão do colonizador europeu e, do outro lado, diferentes perspectivas, é necessário mergulhar em águas profundas. A historiadora Beatriz Nascimento (1942-1995) fez essa imersão e deixou um legado intelectual pioneiro que resgata a história negra, feita por pessoas negras, em um país que ainda hoje carrega as feridas abertas do período colonial.
Beatriz foi professora, poeta, roteirista e ativista. Graduada em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com especialização na mesma instituição, abriu caminhos como intelectual negra. Mesmo tendo pouca reverberação do seu trabalho no espaço acadêmico nos anos 1970 e 1980, que privilegiava o conhecimento hegemônico branco e masculino, seu pensamento está na base dos movimentos antirracista e feminista no Brasil. Beatriz jogou luz sobre o fato da população negra ser estudada nas universidades unicamente no âmbito da escravização e objetificação.
Suas pesquisas abordam relações raciais, quilombos e as culturas negras numa perspectiva que reposiciona homens e mulheres negras na história como protagonistas e sujeitos de conhecimento, da arte e política.
Foto: Divulgação
Para o antropólogo Alex Ratts, biógrafo de Beatriz, seu nome evoca o de outras/os intelectuais ativistas: os que a antecedem, mas também contemporâneos como Abdias do Nascimento, Clóvis Moura, Eduardo de Oliveira, Lélia Gonzalez, Helena Theodoro, Zezé Motta e Conceição Evaristo. “Uma intelectualidade negra ativista e artista que precisa ser mais conhecida e mais lida”, aponta Ratts. Em Uma história feita por mãos negras, livro recém-lançado pela Editora Zahar, o antropólogo organizou 24 textos escritos por Beatriz entre 1974 e 1994. “A relevância de trazer mais uma vez parte da obra de Beatriz Nascimento é para conhecer seus estudos e seu pensamento acerca das relações raciais no país, da articulação entre raça/sexo/gênero, classe e espaço (que antecede a ideia de interseccionalidade), das questões da mulher negra (trabalho, afeto), da diáspora africana para as Américas, da corporeidade e dos territórios negros e também da imagem”, diz o antropólogo. A ativista teve apenas um livro publicado em vida, Negro e cultura no Brasil, em parceria com Helena Theodoro e José Jorge Siqueira.
Segundo Lélia Gonzalez, Beatriz foi responsável pelo o renascimento do movimento negro no Rio de Janeiro nos anos 1970. A ativista esteve à frente da criação do Grupo de Trabalho André Rebouças (possivelmente o primeiro coletivo negro estudantil do país), na Universidade Federal Fluminense (UFF), e participou como conferencista na célebre Quinzena do Negro, em 1977, na USP.
A seguir, cinco fatos sobre Beatriz:
Pé na estrada
Beatriz Nascimento nasceu em 17 de julho de 1942, em Aracaju (SE). Sua família, composta por dez filhos, mudou-se para o Rio de Janeiro na década de 1950 em busca de uma vida com melhores condições. No decorrer da sua caminhada, Beatriz fez algumas viagens internacionais. Foi a Angola (para trabalho de campo sobre quilombos históricos, a partir de Luanda) e ao Senegal (no Festival Pan-Africano de Arte e Cultura), Martinica e Alemanha. De acordo com um artigo da também historiadora Raquel Barreto, ela provavelmente foi a primeira militante do movimento negro a receber um convite para visitar um país africano em uma época que o trânsito internacional de militantes e intelectuais negros não era frequente em função da Ditadura Militar (1964-1985), que criava uma série de empecilhos para realização desse tipo de viagem.
Foto: Divulgação/Acervo pessoal
Quilombos
Beatriz teve como uma de suas principais pesquisas a formação social dos quilombos como base de uma interpretação do mundo. Genericamente nomeados de quilombos (palavra africana da língua quimbundo que significa “união”), os assentamentos sociais alternativos formados por homens e mulheres negras no período colonial poderiam incluir de 5 mil a 15 mil pessoas, como foi o caso de Palmares. “No momento em que o negro se unifica, se agrega, ele está formando um quilombo, o nome em africano é união”, escreveu. Enxergar o quilombo como uma das páginas mais belas da nossa história fez com que Beatriz criasse o conceito de “paz quilombola” para definir o processo de humanização alcançado nos momentos em que os quilombos se estabeleciam. Ela ainda defendia que o quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de resistência cultural negra e reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior autoafirmação étnica, nacional. “O fato de ter existido como brecha no sistema ao qual os negros estavam moralmente submetidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforço à identidade cultural”.
Poeta
Bethania Nascimento, filha e curadora do trabalho da ativista, conta que a poesia de Beatriz nasceu da sua expressão com o violão, deixado de lado após ela lidar com questões de saúde mental. “Éramos mãe e filha muito amigas. Sempre conversávamos sobre como ser feliz e se libertar das dores e opressão através da arte. Em um momento ainda na adolescência, me deparei com poemas escritos por ela. E foi aí que incentivei a minha mãe a continuar se expressando através da poesia, pois assim eu poderia entender melhor a Beatriz intelectual, pensadora futurista”. Dessa forma, Beatriz manteve o hábito de escrever poemas, colocando nos versos muito da sua essência. Em 2015, Bethania e Ratts lançaram o livro Todas (as) distâncias, uma coleção de poemas, aforismos e ensaios de sua mãe. “Hoje ela é para mim, além de mãe, uma referência, uma luz que me guia e também uma grande responsabilidade. Sou sua curadora e também protetora. Este cargo, apesar de parecer pesado, só me faz mais forte. Beatriz é uma estrela dona de todas as cores que nos guia”, diz Bethania.
Ôrí
“Trata-se de um filme fundamentado em minha trajetória de vida enquanto mulher, enquanto negra e especializada em história do Brasil, assim como minha inserção no movimento político de afirmação da negritude”, disse Beatriz sobre o documentário Ôrí (1989), narrado pela própria e dirigido pela socióloga Raquel Gerber. O longa, cujo fio condutor é a história pessoal de Beatriz, apresenta os movimentos negros brasileiros entre 1977 e 1988, buscando a relação entre Brasil e África, com trilha sonora de Naná Vasconcelos. Vemos um panorama social, político e cultural do país em busca de uma identidade que contemple também as populações negras, mostrando a importância dos quilombos na formação da nacionalidade. Outro importante documentário que conta com a participação da historiadora é O negro: da senzala ao soul (1977), dirigido por Gabriel Priolli Netto e Armando Figueiredo Neto, na TV Cultura de São Paulo. A reportagem documental registra a rearticulação do movimento negro brasileiro, na segunda metade da Ditadura Militar, e conta com depoimentos de intelectuais negros e ativistas.
Feminicídio
Beatriz teve a vida ceifada precocemente, aos 52 anos. Em janeiro de 1995, ela estava em uma lanchonete no bairro de Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, quando foi assassinada a tiros pelo namorado de uma amiga. O homicídio foi motivado pelo fato de Beatriz aconselhar a amiga, que sofria violência doméstica, a encerrar o relacionamento com o agressor. A forte pressão do movimento negro e a divulgação nacional expressa nos maiores jornais, contribuíram para a detenção do acusado em poucos dias. Quase três décadas depois, os números apontam que cerca de 75% das mulheres assassinadas no primeiro semestre de 2020 no Brasil são negras, e a taxa de feminicídios no país é a quinta mais alta do mundo.
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