Pense na protagonista de um dos filmes com a maior bilheteria dos anos 2000. Ela estuda direito em Harvard, é vegetariana e luta pela causa animal. Após um término conflituoso, reconquista a sua autoestima e dá fim à rivalidade entre mulheres em sua vida. Por conta própria, subverte a falta de credibilidade ao intelecto feminino, resolve um caso de assassinato e, sem hesitar, denuncia o professor que a assediou sexualmente.
Não sei em quem você pensou, mas estou falando de Elle Woods, de Legalmente loira. Alguns a definiriam como uma patricinha cor-de-rosa – o que orgulhosamente é também, mas, pelo menos para mim, não há razão, além de misoginia internalizada, que justifique elencar meras preferências de estilo acima das conquistas e dos valores de uma mulher.
Ao longo de toda a minha vida, sempre fui meio Elle. Lembro que, por volta dos 15 anos, um professor propôs aquela clássica dinâmica de primeiro dia de aula, pedindo para que contássemos os nossos nomes e qual profissão aspirávamos seguir. Em uma sala repleta de futuros médicos e advogados, havia eu – provavelmente, maquiada, de uniforme estilizado e em volta a materiais escolares cheios de frufrus –, afirmando sonhar em trabalhar com moda.
Após ouvir a minha resposta, o professor riu de forma debochada e disse em um tom ríspido: “Você deveria ler Simone de Beauvoir”. Eu já havia lido. Bastou algumas semanas para ele reparar que eu era a melhor aluna da classe.
Versace, verão 2023. Foto: Divulgação
Me acostumei com a sensação de ser constantemente subestimada. Ainda cedo, percebi que a minha então afinidade por rosa chiclete, saias de bailarina e laços de cabeça seria o suficiente para ser percebida como frágil, fraca e frívola, mesmo que não me enxergasse em nenhum desses adjetivos. Justamente por isso, ao me deparar com o verão 2023 da Versace, em setembro, não pude deixar de notar um detalhe.
Naquela temporada, Donatella evocava a aura gótica. “Amo a ideia de uma mulher rebelde, confiante e inteligente”, disse a diretora criativa em nota divulgada à imprensa. Ao longo de toda a passarela, havia um conjunto de vitrais e velas abrindo o caminho para um casting estrelado, que incluía Anok Yai e Bella Hadid. Da escuridão, elas surgiram vestindo peças rebeliosas, como jeans desfiados, saias com aparência surrada e jaquetas com franjas, que balançavam a cada passo grosseiro.
O curioso, porém, é que o desfile foi encerrado por Paris Hilton em um look digno da Barbie. Ali, naquela cena viral, a imagem de moda não era a mesma dos blocos anteriores. Donatella parecia estar refletindo sobre a ideia de que, para alguns, o visual de sexo, drogas e rock’n’roll é incendiário, enquanto, para outros, pode ser um rosa tão sem remorsos que se torna subversivo.
De uma maneira um tanto irônica, isso me fez lembrar de Stupid girls, de Pink. Embora esse seja um dos maiores hits de sua carreira, não faz muito tempo que o ouvi pela primeira vez. É que, em fevereiro de 2006, quando foi lançado, eu tinha apenas 4 anos de idade e, depois, provavelmente, estava ocupada tentando me tornar um pouco da figura feminina satirizada pela cantora.
Caso não se lembre do clipe, aqui vai uma breve recapitulação: enquanto se questiona “onde as pessoas inteligentes foram parar?”, Pink surge com mechas loiras, peitos infláveis e bronzeamento artificial, interpretando um papel. Nos últimos segundos, uma criança, que havia assistido cada cena protagonizada pela artista, escolhe ser “inteligente”, em vez de “estúpida”, ao deixar as bonecas de lado e pegar uma bola de futebol ao lado de livros.
A gente sabe de quem Pink estava falando. Para uma geração de garotas sem acesso profundo ao feminismo, mas com um desconforto visceral à obsessão sexual da cultura pop, a mensagem da música soou alta e clara. Só que, ao atacar o alvo errado, envelheceu como o leite.
Na era do TMZ, a indústria do entretenimento, dominada por homens, mercantilizou a hiperfeminilidade e a jogou aos lobos. À medida que os paparazzi eram cruéis, e os tabloides controlavam a discussão cultural, odiar um tipo específico de celebridade feminina se tornou o passatempo favorito.
Hoje, já sabemos no que isso culminou: Paris Hilton foi chamada de “puta” por um dos maiores seriados da época em tom de normalidade, Janet Jackson foi impedida de promover o seu próprio álbum, Lindsay Lohan se afundou no abuso de drogas e álcool e Britney Spears colapsou aos olhos do público.
Havia ali jovens dilaceradas por uma mídia sexista, tendo suas humanidades furtadas e sendo obrigadas a suportar o tipo de humilhação pública que os seus colegas homens jamais haviam sofrido. Nada disso, porém, foi exclusivo dessa geração.
Como um arquétipo, há um termo sendo historicamente usado para descrever “mulheres atraentes e femininas, mas pouco inteligentes”, segundo o Dicionário Cambridge. Se trata da palavra bimbo. Estima-se que o seu primeiro uso tenha sido nos anos 1920, nos Estados Unidos, em uma música do compositor Irving Berlin. Em meados da década de 1950, ele se popularizou quando Marilyn Monroe se tornou a maior estrela do mundo.
Caso conheça a sua trajetória, você já deve saber: a artista, que teve uma vida mais dramática do que muitos papéis de filme, trabalhou duro para garantir o legado de uma atriz determinada, uma mulher de negócios astuta e uma leitora feroz de Dostoiévski, Freud e Proust. Durante toda a sua carreira, no entanto, foi atormentada pelo estereótipo da tal loira burra, vista como um símbolo sexual para servir aos olhares masculinos.
Não importa o quanto ela tentasse, Hollywood e os seus homens já estavam decididos a considerar Marilyn não mais do que um rosto bonito. Pode-se argumentar que o seu gosto declarado pela feminilidade a impediu de ser levada a sério. Afinal, há quem acredite que, se a estadunidense tivesse aberto mão de seus vestidos sensuais, poderia ter tido um fim diferente. Mas me parece um tanto injusto pedir a mulher que renuncia a seu estilo pessoal para, só assim, ser tratada com o mínimo de dignidade.
Décadas depois, em um nível diferente, continuou a haver um constrangimento generalizado, inclusive para as anônimas. A maioria das garotas passou por um período, provavelmente na adolescência, de rejeição total a qualquer peça de roupa, símbolo ou interesse entendido como feminino. O condicionamento da misoginia internalizada fez com que poucas fossem capazes de acolher suas preferências naturalmente.
Essa fase, em que ficamos horrorizadas com o menor toque de rosa, laço ou tule, parece um rito de passagem. Embora possa mudar a depender de cada personalidade, o objetivo central costumava ser o mesmo para muitas de nós: se vestir e se comportar de uma maneira socialmente não convencional para se tornar uma garota “especial”, diferente das outras.
Nos últimos meses, porém, passei a observar um movimento contrário, principalmente entre as novas gerações, formado por garotas centradas em redescobrir a pílula de espontaneidade que antes se perdia pela vergonha da ridicularização.
Chanel e Giambattista Valli, ambos verão 2023. Fotos: Divulgação
Por um lado, elas eram exatamente como boa parte das patricinhas que cresci assistindo nas telas: perfeitamente maquiadas, com todas as últimas tendências de moda dominadas e, claro, espirituosas e inteligentes. Por outro lado, não se pareciam em nada. Nem sempre eram héteros e cis, não eram todas brancas, nem magras e, muito menos, tinham cabelos loiros e olhos azuis.
“Os tempos mudaram e, agora, não devem mais existir requisitos físicos ou identitários para ter um lugar no mesmo rosa-choque. Como mulher negra, tem sido encorajador ver isso acontecer”, diz a criadora nigeriana Chinyere Chi-Chi Adogu, que acumula mais de 170 mil seguidores no Instagram. “Também há mais marcas oferecendo roupas femininas e se posicionando de forma inclusiva”, pontua.
Durante a conversa, pergunto para Chinyere se existiu alguma virada de chave que a fez compreender o seu estilo pessoal. “Percebi que não há nada que uma mulher possa fazer sem receber algum tipo de reação. Se gosta de moda, é básica. Se gosta de música alternativa, está tentando chamar a atenção. Se joga videogames, é para atrair homens”, explica ela. “Se vão me punir de qualquer maneira, vou me vestir exatamente como quero.”
Kelly Hrebenar, com quem também conversei, tem um senso de confiança e autoconsciência semelhante. “Não sou menos lésbica por amar vestidos.” Durante a nossa entrevista, a criadora, que viralizou no TikTok ao abordar a pauta, relatou situações em que a sua sexualidade foi colocada à prova, fazendo-a se sentir pressionada a adotar outros estilos. “Hoje isso não me afeta mais”.
Simone Rocha e Molly Goddard, ambos verão 2023. Fotos: Divulgação
Tendo ouvido a cada uma, me pareceu oficial: nas passarelas, nos tapetes vermelhos e, bem, como se trata de 2022, no TikTok, está sendo inaugurada uma nova era que, finalmente, reivindica os estereótipos misóginos, definindo uma lógica de autoexpressão radical e recuperando as relíquias antes ridicularizadas.
Veja Simone Rocha e Molly Goddard, por exemplo. As estilistas britânicas estão construindo marcas inteiras em torno de uma fantasia conduzida por organza, pêssegos e laçarotes. No verão 2023, a primeira rastreou a funcionalidade das fitas, reaproveitou fragmentos de anáguas e desconstruiu os espartilhos. A feminilidade graciosa estava ali, mas também havia algum nível de fúria, sinalizando um caminho complementar.
Simone não foi a única, nem a primeira. Não de hoje, Miuccia Prada se dedica a investigar a hiperfeminilidade – aquela capaz de ultrapassar a frivolidade e a submissão. Os motivos para a sua fixação, talvez, possam ser rastreados em sua própria história, visto que a italiana viveu uma crise interna ao deixar os estudos de ciências políticas para se dedicar à moda, áreas vistas por aí como opostas.
Miu Miu e All-in, ambos verão 2023. Fotos: Divulgação
Em seu desfile de inverno 2022, Miuccia afirmou em nota: “A feminilidade, uma parte fundamental da persona Miu Miu, pode ser mais ampla, vista como um estado de espírito, livre de binarismos”. Isso explica a cueca, item tradicionalmente masculino, feita de um cetim sedoso, regenerando as ideias de gênero. “É aí que a força da ternura e a sabedoria da juventude podem ser encontrados.”
Na temporada seguinte, a ideia já parecia onipresente. Na Rodarte, as camisolas vitorianas pareciam prontas para um show de rock. Enquanto, na Acne Studios, apenas as partes necessárias do corpo eram cobertas por laços enormes. E ainda havia a MSGM, estampando lingeries em camisetas pretas.
Ridicularizar símbolos estereotipicamente femininos nunca libertou ninguém. Só inflamou um julgamento que, na verdade, serve ao patriarcado. Elle Woods não se formou em Harvard, nem Miuccia Prada se tornou phD em ciências políticas, para me convencer de que mulheres não podem representar potências gerais de uma só vez.