O futuro é feminino ‒ e ancestral 

Com um celular na mão e um ideal na cabeça, jovens lideranças dos povos originários vão à guerra para defender a Amazônia usando armas do mundo online. Conheça quatro guerreiras que lutam pela preservação ambiental e por suas culturas.

 

ALICE PATAXÓ

Antonello Veneri

Foto: Antonello Veneri

 

A questão da proteção do território, crucial para os povos originários desde a chegada dos europeus a Pindorama, tem uma pertinência especial para a ativista e comunicadora indígena Alice Pataxó. Quando sua mãe ainda era criança, a família fugiu da aldeia para a cidade devido a conflitos no território. A jovem, que nasceu em Anápolis, no sul da Bahia, só foi ter contato com o seu povo aos 8 anos de idade, quando a mãe decidiu voltar para a aldeia. Cursando pedagogia, ela retornava para realizar seu grande sonho: dar aula para a comunidade. 

Aos 12 anos, Alice começou a mostrar gosto pela ideia de representação e defesa de direitos, no caso, dos estudantes. “Passei a me envolver com o movimento estudantil da cidade, a contatar indígenas de outras aldeias que tinham grêmio na escola e ajudei a formar um na minha”, conta ela. Aos 15, era uma líder na comunidade e liderança na UJS (União da Juventude Socialista), viajando como representante indígena no movimento.

Na adolescência, sofreu um tremendo baque, ela e toda a comunidade. Numa manhã de 2016, cerca de 30 famílias da aldeia Aratikum foram surpreendidas por homens das polícias federal, civil e militar para executar uma reintegração de posse. “Fomos tirados à força do nosso território. Havia mais de 15 carros. Foi um desespero. Fizemos uma retirada pacífica, mas a fazendeira que ganhou o processo ficou incitando. Acho que a intenção era tumultuar. Mandou trazer um trator para derrubar as casas, mas a gente ainda estava lá. Lembro que minha mãe chorava, pedindo pelo amor de Deus para ela não fazer aquilo, porque tinha que tirar os livros da futura biblioteca, que estavam em casa. Tudo muito violento. Acho que ainda não é uma história cicatrizada.” 

As famílias que não tinham para onde ir acamparam à beira da pista. “Minha mãe decidiu que ficaria com elas”, lembra Alice. Por meses, a garota pegava o transporte que passava na estrada para chegar à escola, onde já cursava o ensino médio, enquanto a mãe dava aula aos mais novos embaixo de uma árvore. 

Esse episódio marcou profundamente Alice, servindo de combustível para intensificar a luta pelos direitos da comunidade. Desde então, sua importância foi crescendo como liderança e comunicadora indígenas. 

Carismática, com sorriso aberto, bastante articulada e, ainda por cima, engraçada, ela movimenta uma rede no Twitter, Instagram e YouTube que soma 290 mil seguidores. Fala de cultura indígena, desmistificando estereótipos por meio do humor e de referências pop, além de relações de meio ambiente e território (legislação e construção de leis), seus temas centrais. Como embaixadora da WWF-Brasil, atividade que adora, apresentou este ano o ótimo podcast Hora do planeta, discutindo juventude, justiça climática, luta socioambiental e soluções para enfrentar a atual emergência do clima. 

“A intenção é ajudar, ensinar, conectar, no fim das contas”, diz a jovem baiana, hoje com 21 anos e estudante de humanidades e direito na Universidade Federal do Sul da Bahia, em Itabuna, onde mora com o namorado

No ano passado, ela alcançou repercussão internacional ao discursar em defesa dos territórios indígenas na COY 16, a versão jovem da COP 26 (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), em Glasgow, Escócia. A participação rendeu até uma postagem especial da ativista paquistanesa Malala Yousafzai, a mais jovem vencedora do Prêmio Nobel da Paz, indicando a brasileira como um dos líderes que merecem ser ouvidos e acompanhados de perto pelo mundo.

Atualmente, Alice tem voltado esforços para a formação de jovens comunicadores na aldeia. “Quero muito que dê certo”, diz ela, animada também com o futuro. “Espero que os próximos quatro anos sejam de mudança, que a gente conquiste ainda mais.” 

E, para quem está de partida, ela se despediu no Instagram: 

Tsägô Bolsonaro (tchau Bolsonaro)
Dxá’á iõ kãñanãy paxaká (que o diabo te carregue)
Ũgapêtxuk’xó tapuritú (e não volte mais)
Tsägo konekô Bakira  (adeus seu maluco)

 

BEKA SAW MUNDURUKU

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Foto: Divulgação

 

“O meu mundo está por um fio, mas eu sou uma Munduruku e nunca vou desistir de lutar.” Essa é a frase de desfecho do vídeo da campanha Em nome de quê – O apelo de Beka Munduruku, produzido pela ONG Uma Gota no Oceano, para denunciar as ameaças da ação ilegal de garimpeiros, de roubo de madeira e projetos hidrelétricos no território do seu povo, no Médio Tapajós. Ali, os Munduruku, um povo de tradição guerreira, vivem há mais de 4 mil anos. 

Em nome de quê foi exibido em Nova York por ocasião da Cúpula do Clima da ONU, em 2019. A jovem indígena do vídeo tinha na época 16 anos de idade. Hoje, aos 20, Beka Saw Munduruku acaba de protagonizar o podcast de jornalismo investigativo Amazônia invisível, com dez episódios, em que ela guia uma equipe de jornalistas numa viagem pelo sudoeste do Pará, uma das regiões mais tensas e ameaçadas da Floresta Amazônica. 

A equipe percorreu quase 3 mil quilômetros, ao longo de três semanas pelo Rio Tapajós, pela Rodovia Transamazônica e pela Rodovia BR-163, e ouviu pessoas com os mais diversos interesses na floresta: de garimpeiros e fazendeiros a povos indígenas, ambientalistas, prefeitos e promotores públicos. 

“Falar tudo o que acontece na Amazônia foi bom e também um desafio muito grande. A gente passou por muita coisa durante a gravação. Um dos piores momentos foi na cidade de Novo Progresso, onde a maioria dos moradores trabalha com madeira tirada do território onde moro”, conta Beka, que nasceu e cresceu na aldeia Sawré Muybu, uma área altamente cobiçada por grandes mineradoras e ladrões de madeiras nobres

Na Terra Indígena Munduruku, o garimpo, uma atividade proibida pela Constituição em terra indígena, cresceu 363% em dois anos, de janeiro de 2019 a maio de 2021, devastando o total de 2.264 hectares, de acordo com um levantamento do ISA (Instituto Socioambiental). 

O avô de Beka é o cacique da aldeia, Juarez Saw Munduruku, uma das maiores lideranças do Médio Tapajós. Os tios também são lideranças. E ela, uma guerreira doce, que ri fácil, tem fala suave, muito serena, mas firme. Aos 16 anos, teve que se separar da família e morar na cidade de Itaituba para cursar o ensino médio. 

“O meu foco é a comunicação atrás das câmeras”, diz Beka. Além de comunicadora da Coiab (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) e da Fepipa (Federação dos Povos Indígenas do Pará), a ativista é uma das fundadoras do potente Coletivo Audiovisual Daje Kapap, formado por jovens mulheres da etnia Munduruku. A iniciativa foi criada em 2015, na primeira etapa do processo de autodemarcação do território do seu povo. Beka tinha 12 anos na época e ali fez as suas primeiras gravações.

Munidas de câmeras, celulares e drones, elas registram invasões no seu território, em especial de madeireiros e grileiros, e divulgam para o mundo. Em 2021, seus vídeos chegaram às mãos de autoridades e ambientalistas presentes na COP 26. O coletivo também acompanhou e registrou a marcha dos milhares de povos indígenas em Brasília contra medidas anti-indígenas em andamento, como a PL-191, que autoriza a mineração em suas terras.  

“Todas as árvores cortadas diariamente são como parte da nossa família, que está sendo morta, porque, pela história dos Munduruku, quando os nossos avós morriam, eles viravam árvores. Então, a gente sofre muito com isso. Quero levar adiante a luta pela proteção da futura geração. Quando eu estiver lá na frente, quero ver muita árvore em pé dentro do meu território”, afirma a jovem. 

Nesse momento, o Coletivo finaliza um curta-metragem sobre a autodemarcação do território Munduruku, o primeiro povo a demarcar sua terra por conta própria. O filme será exibido no 1º Festival de Cinema e Cultura Indígena, no mês de dezembro, em Brasília. 

“Existimos e resistimos, protegendo a Amazônia. Estamos fazendo a nossa parte”, dizem as meninas no documentário Mensageiras da Amazônia

 

TXAI SURUÍ

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Foto: Getty Images

Txai Suruí é a brasileira que brilhou na Conferência da Cúpula do Clima (COP 26), no ano passado, em Glasgow, e ficou internacionalmente conhecida. Com um discurso potente, falado em inglês, a jovem liderança denunciou a situação dramática da Amazônia e dos povos originários.

Única mulher e indígena a discursar na abertura oficial do evento, ela foi atentamente ouvida por importantes líderes globais, como o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, e pelo então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson.

Este mês, ela voltou à ONU para a COP 27, realizada no Egito, e declarou em suas redes sociais: “Essa é a COP da implementação. A gente tem que implementar as promessas feitas no passado não só para o Brasil, mas para todo o mundo”. 

Também reivindicou a inclusão dos povos na mesa de decisão “porque somos nós que estamos lá todos os dias, lutando e mantendo a floresta em pé. Somos 5% da população do mundo e protegemos 80% de toda a biodiversidade”.

Ativista do povo Paiter Suruí, que vive em Rondônia, ela atua na ONG Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé e coordena o Movimento da Juventude Indígena de Rondônia, criado por ela com o objetivo de organizar e fortalecer as jovens indígenas do seu estado. Txai tem 25 anos e cursa direito na Universidade Federal de Rondônia. É filha de duas fortes referências do ativismo por direitos humanos, meio ambiente e direito dos povos, Ivaneide Bandeira, conhecida por Neidinha, cofundadora da Kanindé, e do indígena Almir Suruí. A jovem, portanto, sempre esteve ligada ao ativismo. Ameaças e perseguições à sua família já fizeram com que ela, os irmãos e os pais tivessem que ser escoltados pela Força Nacional.

Desde pequenininha, Txai atuava. Em entrevista à Agência Pública, ela relata: “A minha mãe conta que a gente estava em um protesto e eu sumi. Eu tinha 5 anos e, quando ela me achou, eu estava com um microfone, segurando a mão de um político, algum político do Partido Verde, pedindo pelos direitos das crianças”. 

Na Conferência do Clima deste ano, ela desembarcou no Egito com uma novidade: o filme O território, que foi exibido no painel do Brazil Climate Action Hub. Com produção executiva assinada por Txai, o documentário faz uma imersão na luta do povo Uru-Eu-Wau-Wau, de Rondônia, para defender suas terras do desmatamento e da grilagem. Foi gravado durante três anos do governo Bolsonaro e apresenta uma perspectiva não só da luta dos indígenas, mas também dos invasores.

O filme é uma coprodução da Documist com o povo Uru-Eu-Wau-Wau, que se vale do audiovisual como uma ferramenta de proteção da floresta. “O uso de tecnologias como drones, filmadores, smartphones, GPS e imagens de satélites tem contribuído para o monitoramento dos territórios e a segurança da vida dos povos indígenas”, afirma, no site da Kanindé, a indigenista Bandeira, uma das personagens principais da produção.

Dirigido pelo estadunidense Alex Pritz, o documentário foi exibido em mais de 100 países e já levou dezenas de prêmios internacionais, dois deles no prestigiado Festival Sundance, nas categorias Prêmio Especial do Júri de Obra Documental e Prêmio do Público de Documentário. “Com essa produção, mostramos as consequências de um país mal governado, que não respeita seus povos originários, com uma Funai ineficiente e omissa diante de um governo genocida, em que todo o povo sofre com o aumento das desigualdades”, escreveu Txai Suruí em sua coluna no jornal Folha de S.Paulo. 

 

SAMELA SATERÉ MAWÉ

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Foto: @cesardavidmar

 

Samela Sateré Mawé, 26 anos, estudante de biologia da Universidade do Estado do Amazonas, é uma importante liderança indígena e ativista do povo Sateré Mawé. Seu território fica no Baixo Rio Amazonas, na Terra Indígena Andirá-Marau. Ao combinar a conversa com a ELLE View por celular, a partir de Manaus, onde mora, ela sugeriu 16 horas. Não aceita mais compromisso após as 17 e nem nos fins de semana. “A minha saúde mental ficou muito ruim durante a pandemia e ainda estou me recuperando. Eu me sobrecarreguei demais”, conta. 

Durante a tragédia da Covid-19 em Manaus, Samela teve que ser porta-voz do seu povo, denunciando o que a comunidade passava, sem álcool em gel, cesta básica, máscaras. “A gente precisou se reinventar para fazer máscaras de tecido. Teve muita reportagem e eu sempre falava. As pessoas, então, começaram a me convidar para rodas de conversa, lives, debates, e aí fui me aprimorando. Eu não tinha muita facilidade de me comunicar antes disso.” 

Pois ela desenvolveu a habilidade com competência. Hoje, a também influenciadora digital atua como ativista ambiental no Fridays for Future Brasil (movimento fundado pela sueca Greta Thunberg), é comunicadora na Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e na Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade e apresentadora no Canal Reload. Integra (desde sempre) a Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé e é fellow do Instituto Arapyau, ao lado de Isabella Teixeira, ex-ministra do meio ambiente. 

De onde surgiu a ideia de se envolver com o ativismo? Não foi exatamente uma escolha – o tema sempre esteve presente na sua vida. Samela nasceu e cresceu num ambiente de mobilização pela causa dos povos indígenas. “Passei a minha vida toda escutando, escutando a minha avó falando, escutando as lideranças indígenas falando, a minha mãe falando”, conta ela, referindo-se à Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé, criada pela sua avó, Zenilda Sateré, em 1992. “Elas oficializaram a organização em cartório em 1995 e eu nasci em 96”. Ela cresceu, portanto, em meio a um debate de pautas e reivindicações, acompanhando a mãe em reuniões e atos das mulheres de sua etnia. Quando a avó faleceu, sua mãe, Regina Sateré Mawé, assumiu a coordenação da entidade. Ou seja, ela vem de duas gerações de bravas mulheres guerreiras.

A avó coordenou grandes movimentos, como a luta por reserva de vagas para indígenas na universidade, institucionalizada em 2004 no estado do Amazonas. Viajava bastante, levando as demandas das comunidades indígenas inclusive para fora do país. “A gente tinha um álbum com fotos dela, que eu gostava muito de folhear, ver as mulheres com roupas de frio, minha avó conhecendo o mar. A primeira vez que saí do Brasil foi um marco muito importante na minha vida, porque eu me vi fazendo o mesmo papel que a minha avó executava. Eu me senti muito emocionada, cumprindo o legado que ela deixou.”

Samela recebe convites que vão de palestras e lives à participação em dissertação de TCC. E faz muitas viagens: “Este ano, se eu passar uma semana em casa, já é lucro”. Glasgow foi o destino da primeira viagem internacional da ativista, onde participou da COP 26), em 2021. Este ano, esteve na conferência Estocolmo +50, promovida pela ONU, na Suécia, e também na recente COP 27, no Egito.

Meio ambiente, educação, povos indígenas e mulheres são seus principais temas. E desconstruir os estereótipos e os padrões acerca do ser indígena. 

“É um trabalho árduo, pois as pessoas negam muito nossa identidade todo dia, porque a gente não é ou não aparece com o que elas aprenderam no colégio, na faculdade ou nos livros”, diz Samela. Exemplos? “Achar que nós temos o mesmo fenótipo, que somos o que a Igreja Católica falou, seres sem alma, que somos preguiçosos, que não tomamos banho por causa da pintura. Mas isso a gente desconstrói nas redes sociais como protagonistas das nossas próprias histórias. A gente mostra toda a beleza, toda a cultura, a diversidade e todas as diferenças que nossos povos têm.” 

Dois dias antes da conversa com ELLE, a jovem estava em Curitiba, palestrando ao lado de personalidades como a Monja Coen e o escritor Clóvis de Barros, no V Congresso Internacional da Felicidade. Em um primeiro momento, ficou em dúvida sobre o que falaria. “Pensei: ‘Nossa, como é que eu vou falar de felicidade se a nossa situação não é uma situação de felicidade, devido a todos os ataques e violências que estão acontecendo no território?’”, conta. Samela estava acompanhada de outras duas convidadas indígenas, mais velhas, dona Francisquinha e dona Elza. “Daí, a gente se voltou para a ancestralidade e fez as pessoas entenderem que a felicidade está nela, no preservar, no nosso modo de viver, na nossa cultura, na nossa identidade. E que isso precisa ser respeitado para que se tenha felicidade.” Pensamento que faz lembrar as palavras do escritor e líder indígena Ailton Krenak em seu mais recente livro, O futuro é ancestral: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”. 

Esta reportagem foi publicada originalmente em novembro de 2022, na ELLE View, nossa revista digital mensal. Faça a sua assinatura e tenha acesso a todas as edições.