Meu corpo, suas regras?

Com depoimentos de Jane Fonda e Rosanna Arquette, o documentário “Body parts” examina a imagem sexualizada das mulheres no cinema e na televisão e seu impacto além das telas.

Quantas vezes você assistiu a um filme ou série e ficou irritada com uma personagem feminina que, do nada, perde a parte de cima do biquíni? Ou cenas de sexo em que apenas a mulher aparece nua? Ou ainda histórias supostamente românticas que envolvem a falta de consentimento e até o abuso? Como acontece com todas nós, esse tipo de desigualdade na representação do gênero sempre incomodou a professora universitária e cineasta Kristy Guevara-Flanagan.

Depois de fazer o curta-metragem What happened to her (2016), sobre a obsessão do audiovisual estadunidense com cadáveres femininos, principalmente nas séries policiais, ela começou a preparar uma espécie de sequência falando dos dublês de corpos, as mulheres que emprestam mãos, pernas, peitos e bundas para as atrizes famosas.

Mas, em meio ao desenvolvimento do projeto, aconteceu o #MeToo, motivado por denúncias de assédio e abuso sexual em Hollywood. E aí o que seria um curta virou o documentário de longa-metragem Body parts, que foi lançado recentemente nos Estados Unidos (ainda não há previsão de exibição no Brasil).

“Havia muito a explorar em relação à nudez e à intimidade na tela”, diz Guevara-Flanagan em entrevista à ELLE. E, quando todas aquelas mulheres, principalmente atrizes, começaram a falar sobre suas experiências de assédio e abuso, não havia como não incluí-las. Não foi fácil, mesmo assim. Muitas deram uma entrevista e depois não quiseram falar mais sobre o tema, até para não ficarem conhecidas como vítimas. “As mulheres em Hollywood ainda têm muito medo de serem rotuladas como difíceis, o que pode ter uma repercussão ruim em suas carreiras.”

Body parts, que inclui entrevistas de Jane Fonda, Rosanna Arquette e Rose McGowan, entre outras, é mais do que um documentário sobre abuso, trazendo uma discussão ampla sobre o olhar masculino, o “male gaze”, que também pode ser traduzido como visão machista. Fonda contou, por exemplo, como nunca tinha feito cenas de nudez no cinema estadunidense. Na França, apaixonada pelo cineasta Roger Vadim, topou aparecer nua em Barbarella (1968). “Aceitei fazer porque dizer ‘não’ me deixaria mais vulnerável do que estar nua”, afirmou ela, que acreditava que a negativa a deixaria com fama de difícil ou mais exposta a humilhações. Vadim, seu marido, prometeu que na abertura haveria letreiros dos créditos cobrindo “as partes mais importantes”. Mas não foi bem isso o que aconteceu.

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Jane Fonda em Barbarella (1968) Reprodução

Em um país bastante puritano, em que não se discute sexo em casa ou na escola, como os Estados Unidos, os filmes e séries são uma espécie de educação sexual – não que no Brasil seja muito diferente. Eles também reforçam os modelos de beleza, de tratamento das mulheres e de relacionamento. Quem sempre vê nas produções audiovisuais as mulheres sendo objetificadas pode incorporar aquilo como sendo algo normal. Se é comum que, no cinema, uma discussão termine em um beijo forçado, que depois passa a ser recíproco, essa é a lição sobre o consentimento que homens e mulheres vão ter.

Stacy Rukeyser, criadora e showrunner de Sex/Life (Netflix), conta no documentário que, ao assistir a Picardias estudantis (1982), um clássico da comédia adolescente da época, pensou que a atriz Phoebe Cates, alvo da atenção dos jovens do longa, era o modelo a ser seguido. “Queria ser ela. Basicamente, queria ser o objeto”, disse Rukeyser, que faz parte de uma nova geração de roteiristas, diretoras e produtoras dispostas a mudar a representação feminina no cinema e na TV.

Código Hays
Na Hollywood dos anos 1930, havia muitas mulheres diretoras e roteiristas. O resultado na tela eram personagens femininas cheias de complexidades, que não temiam mostrar suas personalidades e até seus desejos sexuais – uma parte dessa história pode ser vista em Babilônia, o filme de Damien Chazelle que estreou neste ano.

Mas, após uma campanha pela moral e bons costumes impulsionada por alguns escândalos, Hollywood resolveu se censurar e instituiu o chamado Código Hays, que vigorou entre 1934 e 1968 e proibia diversas coisas, de sugestão de nudez a simpatia por criminosos, passando por casais interraciais e a exposição de um homem e uma mulher na mesma cama, ainda que os personagens fossem casados.

O Código Hays foi desastroso para as mulheres na frente e atrás das câmeras. As atrizes precisavam ser belas, recatadas e do lar. Se não fossem, tinham de ser punidas no final. Pouco a pouco, as diretoras e as roteiristas foram sendo afastadas. As pessoas não brancas também. O olhar ficou totalmente masculino, cis, branco, heterossexual. Proliferaram as “showgirls”, mocinhas bonitas, sem identidade, todas parecidas, exibindo suas pernas em musicais.

Quando chegou a geração Nova Hollywood, em meados dos anos 1960, o Código Hays se tornou obsoleto. Mas é só olhar a lista de diretores que compõem esse grupo – Francis Ford Coppola, Martin Scorsese, Woody Allen e Roman Polanski, entre outros – para notar que as mulheres continuaram de fora. Esse movimento pode até ter criado personagens femininas mais interessantes, mas é comum que elas sejam sexualizadas sob o olhar masculino.

Duas décadas depois, Arquette lembra em Body parts que, no set da comédia S.O.B. – Nos bastidores de Hollywood (1981), dirigida por Blake Edwards, o cineasta pediu à atriz, então com 19 anos, para tirar a parte de cima do biquíni, logo antes de uma cena. Quando ela questionou, dizendo que aquilo não havia sido combinado, Edwards perguntou se ela tinha problema com isso e gritou para alguém ligar para o agente dela. Constrangida, Arquette acabou fazendo o que ele pediu.

E isso ainda acontece. Body parts lembra como, em 2018, James Franco foi acusado de assédio sexual por alunas e atrizes dos filmes independentes que dirigiu. Mas desse mal saiu uma boa iniciativa, quando David Simon, showrunner da série The deuce (2017-19), que girava em torno de prostituição e pornografia e era estrelada por Franco, resolveu investigar se havia alguma reclamação em relação ao ator no set. Não havia. Mas a atriz Emily Meade, que interpretava uma prostituta, sugeriu que houvesse um intermediário entre atores e diretor para discutir as cenas de sexo. Afinal, se as cenas de ação têm coordenadores, por que não fazer o mesmo naquelas que envolvem intimidade?

Foi assim que surgiu a figura do coordenador de intimidade, hoje comum nos sets de Hollywood. Praticamente todas as séries da HBO, conhecida por produzir conteúdo com mais violência e sexo, têm um, incluindo a já controversa The idol, que estreia em junho, depois de ser exibida no Festival de Cannes neste mês. Estrelada por Abel Tesfaye, conhecido como The Weeknd, e Lily-Rose Depp, no papel de um dono de boate e de uma estrela do pop, respectivamente, a série foi totalmente refilmada, algo raro em Hollywood, com a diretora Amy Seimetz sendo substituída por Sam Levinson (de Euphoria). Segundo reportagem da Rolling Stone, integrantes da produção não sabem o que exatamente ficou, dadas as mudanças constantes visando deixá-la com um olhar menos feminista, supostamente a pedido de Tesfaye, o que teria incluído também cenas mais pesadas de sexo sugeridas por Levinson. A conferir.

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Divulgação

Brutalizadas
Alguns tropos (elementos narrativos que identificam um gênero de filme, repetidos de maneira excessiva, a ponto de às vezes se tornar um clichê) continuam frequentes, como o estupro como arma narrativa para tornar a personagem feminina forte. Como diz no documentário McGowan, uma das primeiras atrizes a denunciar o produtor Harvey Weinstein de abuso sexual: “Há ódio às mulheres quando é preciso brutalizá-las e tratá-las como subumanas, mas aí o diretor é glorificado por ter criado uma personagem feminina forte. Essas não são mulheres fortes. São brutalizadas que tiveram de sobreviver e, no processo, ainda parecerem belas”.

Não por coincidência, hoje, como na era pré-Código Hays, há mais personagens femininas interessantes, pois existem mais mulheres produzindo, escrevendo e dirigindo séries e filmes. Elas também não têm medo de mostrar a complexidade nos desejos femininos. “Há muito medo da sexualidade feminina”, ressalta Guevara-Flanagan. “Quando há só homens produzindo, escrevendo, dirigindo, não existe tanta possibilidade de explorá-la de maneira autêntica. Nunca vimos muito o prazer feminino, o que excita uma mulher. Ela, normalmente, é apenas um corpo usado para excitar homens.” E a variedade também. “Estamos empolgadas de ver mais tipos de pessoas exibindo experiências de intimidade na tela”, diz a produtora de Body parts, Helen Hood Scheer. “Porque antes, a gente assistia e pensava: que perspectivas estão sendo mostradas? Que corpos são considerados sexy?” Hoje é mais habitual encontrar personagens homoafetivos, trans, negros, latinos, PCDs, gordos, velhos, fazendo e falando de sexo, e sendo sexy na televisão e, em menor medida, no cinema.

Nem Kristy Guevara-Flanagan nem Scheer acham que o sexo e a nudez devem ser banidos. “Eles podem ser muito empoderadores para o ator e a atriz e para o público, assistindo a diferentes tipos de representação”, diz a diretora. “Antes, havia uma noção muito estreita de quem era visto como sexy, quem era o par romântico. E é muito empoderador ver outras pessoas em todo tipo de situação, até as mais complicadas.”

As duas tentaram fazer sua parte, sendo sensíveis nas entrevistas e evitando mostrar a nudez sem sentido ao usar uma cena de um filme antigo para ilustrar um ponto de vista. A esperança é a de que o aumento de representatividade atrás das câmeras resulte em uma transformação. “Se os mesmos homens brancos continuarem fazendo filmes e séries, nada vai mudar”, conclui Guevara-Flanagan. Mesmo o celebrado crescimento da participação feminina nos filmes de super-heróis ainda não é o ideal. “Elas não são os personagens principais e têm um visual específico. É como se fosse um verniz de empoderamento.” Scheer finaliza: “Houve muito progresso, mas ainda há um longo caminho a percorrer”.