Som na caixa (e no caixa!)

Como a trilha sonora de uma loja pode contar a sua história e ajudar no storytelling de cada coleção? Um ex-funcionário da Gap desvenda esse segredo.

Além das vitrines, da arquitetura e dos produtos, obviamente existem outros fatores para tornar uma experiência de compra o mais personalizada ou distinta possível. E aí se apela para vários sentidos. Tem os aromas específicos de determinada marca, a abordagem diferenciada da equipe de vendas, os mimos e serviços oferecidos e a música daquele ambiente  – por muitos anos, a trilha sonora de algumas lojas foi, inclusive, a porta de entrada de toda uma geração para os mais diferentes gêneros, estilos, artistas e bandas. Isso bem antes do aplicativo Shazam e até mesmo dos smartphones.

Foi nessa época, mais precisamente nos anos 1990, que a Gap começou a encantar adolescentes com as batidas em suas lojas. Hoje aquela curadoria musical, novidades e descobertas sonoras se tornaram o motor do projeto Gap Playlist, idealizado por Michael Bise, 57 anos, ex-gerente de visual merchandising da marca entre os anos 1992 e 2006.

gap playlist foto

Como o nome já entrega, o objetivo é recuperar e disponibilizar os arquivos de áudio tocados pela Gap nos Estados Unidos. “Cada fita/CD mensal vinha com uma de reprodução anotada em papel, elencando os artistas e músicas do mês”, relembra Michael. “Na época, meu chefe me deixava levar as playlists para casa.”

Começava assim sua coleção.

No entanto, durante uma mudança, Michael perdeu mais da metade do que havia arquivado durante anos. Até que, tempos depois, encontrou meio que por acaso uma pasta com 24 listas de reprodução. “Foi o que me deu a inspiração para criar o blog e o Instagram”, fala. “Além de compartilhar aquele material, era uma maneira de encontrar outras pessoas que também salvaram essas playlists de alguma forma. Até agora, são 230 listas de reprodução.” E a caça continua. “Ainda faltam 35 listas, principalmente dos anos 1992, 1994 e de 2003 até 2006”, revela.

E a Gap não pode ajudar nessa busca? “Eles me ajudaram a recuperar o que  perdi, embora não tenham nenhuma delas salvas em seus arquivos”, conta Michael, que ainda mantém contatos com a empresa. “Fiz a curadoria de duas playlists para a conta oficial da Gap no Spotify. Trabalhei na identificação de alguns itens do arquivo, incluindo alguns dos CDs de música sem listas de reprodução anexadas. Em 2021, a Gap criou uma campanha no Instagram/Spotify com base no meu blog e nas playlists históricas nele contidas.” 

“A música dava o tom das lojas e valorizava a moda que estava sendo vendida no momento.” Michael Bise

Desde seu primeiro dia de trabalho, ele ficou fascinado com o que ouvia durante o expediente. É que, além das músicas mais conhecidas, as fitas mensais, de quatro horas (os CDs só vieram depois), misturavam uma ampla variedade de estilos, como house, acid jazz, funk e R&B.

“A música dava o tom das lojas e valorizava a moda que estava sendo vendida no momento. Não era apenas um som ambiente, de fundo. Muitas vezes, a música reforçava o conceito por trás das coleções”, explica. Um bom exemplo é a playlist de outubro de 1997, composta apenas de músicas com a palavra blue no título. É que naquele mês a Gap havia lançado a fragrância Blue No. 655.

Um ano antes, a empresa percebeu o tamanho do sucesso de suas seleções musicais e decidiu capitalizar em cima disso. “A Gap começou a vender CDs em 1996”, diz Michael. “O primeiro foi um de Dia dos Namorados, em 1996, chamado Be mine: a collection of tunes for two.” 

Os responsáveis pela curadoria sonora, até março de 1999, eram da gravadora AEI Music. Em abril, outra empresa do ramo, a Muzak, assumiu a tarefa – atualmente, ambas pertencem ao grupo Mood Media. Como essas músicas eram, de fato, escolhidas? “Diferentes engenheiros de som e especialistas da indústria fonográfica foram chamados para trabalhar na conta da GAP. De acordo com as informações da marca sobre a inspiração de uma coleção e novos lançamentos mensais, eles faziam as listas de reprodução.”

Hoje a história é bem diferente. A varejista estadunidense usa uma tecnologia de satélite para comandar o som em suas lojas ao redor do mundo. Os títulos disponíveis são trocados mensalmente, com base em algoritmos. Ou seja, não existe mais uma playlist definida, muito menos a intervenção humana na curadoria.