“Posso ser um menino?” Elliot Page tinha 6 anos quando fez a pergunta à mãe. “Não, querida, não pode. Mas você pode fazer tudo o que um menino faz”, ela respondeu. Não demoraria muito para ele se dar conta de que nem mesmo as roupas consideradas de garoto ele poderia vestir livremente.
A trajetória de fama, homofobia em Hollywood e afirmação da sua identidade de gênero quase três décadas depois do desejo expresso quando criança é contada na autobiografia Pageboy (Editora Intrínseca, 304 páginas), lançada este mês no Brasil, simultaneamente aos Estados Unidos e a outros países do mundo.
Escrito pelo próprio ator canadense, de 36 anos, atualmente no elenco da série Umbrella Academy (Netflix), conhecido por atuações do indie (Juno) ao blockbuster (X-Men), o livro vai revelando, de maneira não linear, episódios da vida de Elliot. Os 29 capítulos vão e voltam no tempo, ora narrando uma de suas primeiras lembranças como pessoa queer – a que abre este texto, precedida pela sensação, desde os 4, de que não era uma menina –, ora saltando para o lançamento do filme Juno (2007), que tornou o ator internacionalmente conhecido na pele da adolescente grávida que dá nome à produção.
Sensível e cuidadoso – as ex-parceiras citadas nominalmente, como as atrizes Kate Mara e Olivia Thirlby (sua melhor amiga em Juno), leram e aprovaram o livro –, Elliot é também direto ao descrever as situações de violência social e profissional para que se encaixasse num padrão não só binário como estereotipado.
Muitas dessas passagens têm como protagonistas – ou melhor, antagonistas – as roupas, caso das que foi obrigado a usar no evento de estreia internacional de Juno pelo estúdio que coassinava a produção. “Quando a equipe de publicidade da Fox Searchlight descobriu qual seria minha roupa, eles correram comigo para (a loja de departamentos) Holt Renfrew da Bloor Street (Toronto), com uma pressa dramática que é característica de Hollywood. Sugeri um terno, mas eles recomendaram vestido e salto alto. Discutiram isso com o diretor e então ele me ligou, disse que concordava com a equipe e insistiu para que eu cumprisse meu papel. Michael Cera (que contracena com ele no filme) foi de tênis, calça social e camisa de colarinho, e estava lindo. Chique, a meu ver. Por que não o levaram à Holt Renfrew? Acho que ele não tinha nada a esconder, então foi aprovado. Ele se encaixava no papel”, narra no livro. E essa cena se repetiria inúmeras vezes, de diferentes formas.
As roupas, nas memórias de Elliot, aparecem tanto como aliadas quanto como fator de perturbação no processo de construção de sua identidade de gênero. Isso acontece desde quando era criança e podia se vestir como os meninos. Depois, na adolescência, época em que as peças largas escondiam o corpo que ganhava indesejados contornos femininos. Continuou na fase de jovem adulta, com o estilo que a imprensa considerava de “sapatão” – ele se declarou lésbica publicamente em 2014, aos 27 anos. Até o momento em que, conforme conta na biografia, não conseguiu mais usar peças femininas, mesmo para interpretar um papel, um dos sinais que o levaram a se perceber como homem trans, fato tornado público em dezembro de 2020, quando anunciou sua mudança de nome e pronomes nas redes sociais.
Elliot usa as roupas, ainda, como metáfora para explicar o sofrimento profundo causado por sua disforia corporal relacionada ao seu gênero atribuído no nascimento. Uma angústia que, ao longo dos anos, o levou à anorexia por um período (chegou a pesar 38 kg) e à automutilação (se cortava na adolescência). “Imagine a coisa mais desconfortável e mortificante que você poderia vestir. Você se contorce na própria pele, quer arrancá-la do corpo, rasgá-la inteira, mas não consegue. Dia após dia.”
Se o gênero se confirma na sociedade, como a filósofa estadunidense e referência máxima da teoria queer, Judith Butler, descreve, a partir da repetição de “atos” e comportamentos ao longo do tempo (as roupas para muitos funcionam como uma ferramenta visual dessa identidade), Hollywood parece ter feito de tudo para atrapalhar o processo de Elliot, tanto em cena como longe das câmeras.
Os episódios são dignos de uma indústria que, apesar do verniz de diversidade, seguia, em plenos anos 2000 (e de alguma forma ainda segue, diz Elliot), se comportando como em 1950. O ator lembra no livro como, desde o início de sua carreira, foi pressionado para esconder sua sexualidade. Nessa época, ainda usava Ellen Page, seu nome morto (o de antes da transição) e se identificava como uma mulher lésbica (o livro de Elliot não tem tom professoral, mas dá toques didáticos importantes, como o de lembrar que, no caso dele, sua sexualidade e sua identidade de gênero coincidem com o que é considerado norma – homem + atração sexual por mulher –, mas isso não é uma regra).
Fingir não ser gay, segundo sua agente e seus colegas, garantiria mais trabalho para que o público acreditasse quando o ator fosse interpretar um personagem heterossexual. Ironicamente, não havia problema de verossimilhança quando um heterossexual interpretava um homossexual, ele argumenta. Dentro do set, os papéis eram, na maioria esmagadora dos casos, de personagens com a feminilidade estereotipada – cabelos longos, roupas justas… Nos eventos profissionais e na vida pessoal, precisava esconder as namoradas, nunca levá-las a estreias e festas do cinema, usar salto alto, vestidos e evitar… bonés!
Elliot conta também ter sofrido assédios e/ou abusos sexuais antes e após completar 18 anos por pessoas que trabalhavam em diferentes fases com ele no cinema. Ele relata ainda um episódio envolvendo “um dos atores mais famosos do mundo” numa festa pouco tempo após se declarar gay publicamente. Segundo ele, o astro disse “vou te f#der para você entender que não é lésbica”, entre outros comentários ofensivos, na frente de vários convidados. Entre eles, havia amigos próximos de Elliot, o que o fez constatar tristemente uma conivência silenciosa ao perceber que ninguém fez nada além de dizer um “deixa ela em paz”.
A homofobia sofrida em Hollywood não era novidade para o ator, que foi vítima de bullying por toda a sua adolescência, apontado ora como “sapatão”, ora como “viadinho”, perseguido na rua por garotos mais velhos em uma de suas várias tentativas frustradas de ser heterossexual (os agressores acharam que se tratavam de dois meninos namorando), enquanto crescia na Nova Escócia, Canadá.
Os dez anos em que viveu em Los Angeles também não foram de aceitação, com episódios em que foi perseguido por um homem agressivo e homofóbico em West Hollywood, ironicamente um bairro gay da cidade. O processo que Elliot descreve no livro como de autodescoberta foi duro, mas necessário, ele acredita. Dos muitos momentos de depressão profunda, angústia, em que privava seu corpo de comida por não aceitá-lo, das décadas que passou mal conseguindo se olhar no espelho, com aversão à própria imagem refletida nas vitrines das lojas, ele construiu uma relação saudável com a mãe. Ela sempre o amou, mas, religiosa, teve dificuldade de entender a sexualidade e as questões de gênero do filho (os pais são divorciados).
Com a mamoplastia masculinizadora (cirurgia realizada em homens trans para a retirada dos seios e a readequação do tórax), feita há cerca de três anos, Elliot se sente finalmente à vontade na própria pele, orgulhoso de ser quem já sabia intuitivamente que era, aos 6 anos.
* Carolina Vasone é mestranda em estudos de gênero na Universidade Lumière Lyon 2, na França.