Vende-se bem-estar

Nos passos do capitalismo mais descarado, o mercado de wellness está fazendo o mundo acreditar que a felicidade pode estar logo ali, no chá milagroso ou no pote do último creme.

Se você abrir o feed do seu Instagram, especialmente na página dedicada aos vídeos dos reels, é bem provável que, em algum momento, apareça um vlog do tipo “minha rotina” de dar inveja – imagine lattes com espuma desenhada, escritórios perfeitamente equipados com materiais de papelaria premium, uma receitinha saudável 100% baseada em ingredientes orgânicos… O wellness, de fato, está na moda – e todo mundo, inclusive o próprio capitalismo, está tentando surfar nessa onda. A questão é: o que acontece quando o bem-estar vira um bem de consumo?

Para ter uma ideia da consolidação desse mercado, o WGSN, uma das agências mais respeitadas do mundo quando o assunto é pesquisa de tendências de comportamento, aponta para o termo wellness como um eixo crucial que guiará o consumo global nos próximos anos. Na mesma pegada, o site alemão Statista vai direto aos números: o mercado dedicado ao bem-estar (inclua aqui produtos de cuidado que passeiam por áreas múltiplas, desde a nutrição até exercícios físicos e saúde mental) valia por volta de 4 trilhões de dólares em 2020 e deve chegar a 7 trilhões até 2025.

Parece impressionante, mas é bem possível. Quando nos debruçamos sobre outro estudo, o da consultoria estadunidense McKinsey, vemos que 79% dos 7,5 mil consumidores, de seis países diferentes, entrevistados para o relatório apontam o wellness como um aspecto importante de suas vidas. Mais: 42% veem o cuidado consigo mesmo como uma prioridade entre seus gastos.

Mas o que, de fato, significa esse tal bem-estar? O que estamos procurando quando o colocamos como objetivo máximo de nossas vidas? 

“Nos anos 1980, falar de bem-estar era falar de saúde física: não fumar, comer bem, fazer exercícios etc. Essas técnicas, contudo, garantiam somente um corpo sadio. A alma seguia insatisfeita”, lembra o psicanalista Christian Dunker. 

‘Na verdade, a sensação de falta é algo inerente à vida humana”, completa a também psicanalista Natalia Marques. “Sigmund Freud já dizia que vivemos um eterno mal-estar, uma angústia, em essência, incontornável. Jacques Lacan vai além: vivemos uma falta que jamais será preenchida. E que bom, pois assim continuamos a viver e a buscar a tal completude da alma.”

O perigo, então, dá as caras quando o capitalismo tenta nos provar que é capaz de sanar essa questão inexorável da nossa existência. “O sistema nos ilude quando diz que, se eu comprar determinado produto, terei essa falta preenchida”, continua Natalia. “Ele lucra com as nossas inseguranças.” 

“O sistema nos ilude quando diz que, se eu comprar determinado produto, terei essa falta preenchida.”
Natalia Marques

Só que agora, mais do que nunca, com o galopante crescimento do mercado de wellness, a promessa está mais abusada: o bem-estar está à venda. Basta comprá-lo. 

Felicidade engarrafada

Para entender a mercantilização do bem-estar, vale a pena relembrar o boom do skincare. Antes de 2020, o setor já vinha aquecido, mas, com a Covid-19, cuidar da pele de repente passou a significar “autocuidado” – e há uma linha tênue que divide a realidade dessa situação com uma ilusão gerada pelo capitalismo. 

Sim, ter uma rotina de skincare pode ser muito legal. Faz bem para a saúde dermatológica, pode ser um momento de contato consigo mesmo etc. Mas ela não pode resolver os mistérios da vida humana, não é garantia de felicidade instantânea. No máximo, é uma das fontes do prazer, mas nada muito além disso.

“Essa confusão, na verdade, surge nos anos 2000, com a ideia do marketing de experiência.”
Christian Dunker

“Essa confusão, na verdade, surge nos anos 2000, com a ideia do marketing de experiência: a partir dali, ao comprar um objeto, você compra uma experiência. Assim, o público consumidor não aceita mais que o ato de comprar algo seja tão somente uma transação econômica. Precisa existir um bônus de outra ordem que justifique o investimento”, explica Dunker. “Esse paradigma, portanto, vai consumindo a idealização do que a cultura produz naquele momento.” 

E, nesse momento, o wellness é a palavra da vez – ainda mais depois da pandemia, em que as ansiedades giravam em torno de qualquer instrumento que pudesse gerar algum benefício em termos de equilíbrio mental.

Bem-estar genuíno

A verdade é que o caminho para a saúde mental é muito mais tortuoso e laborioso do que vendem o capitalismo e seus produtos. “Por um lado, essa explosão do wellness fez as pessoas irem atrás da terapia, de algum cuidado. A análise deixou de ser uma vergonha. Ainda assim, o próprio mercado da psicologia, nesse contexto, tem sido envelopado como uma mercadoria. Existem coaches que vendem ‘a cura em até dez sessões’, que fazem conteúdos como ‘siga esses passos para ser feliz’”, aponta Natalia. 

Tanto ela quanto Dunker concordam que é preciso certa dose de anticapitalismo para que a gente chegue perto de algo parecido com um bem-estar verdadeiro. “Não acho que o universo do consumo seja a causa, a grande fonte do nosso mal-estar. O que criticamos são as práticas de consumo como uma disciplina, um método, para se chegar ao bem-estar”, aponta Christian Dunker. “Transformá-lo em um bem de consumo é danoso e perigoso porque você pega uma fórmula, ligada a um território, a um ambiente, e a exporta como autoajuda. Vai dar errado e pode ser prejudicial.” 

Assim, precisamos lembrar que, diferentemente do que o sistema nos faz pensar, o autocuidado vai muito além da rotina de skincare, da nova aula de dança da vez, do último shake turbinado com as vitaminas do momento. 

Tudo bem se sentir melhor com um novo e mais saudável hábito: é mais do que interessante encontrar um pouco de felicidade nisso. “Desde que isso não nos adoeça”, diz Natalia. “O mercado está sempre mudando para que a gente esteja sempre se sentindo insatisfeito. Portanto, precisamos ficar muito atentos e questionar o tempo inteiro o nosso próprio desejo.”