Ponto de interrogação

A luta trans é um dos fundamentos das lutas sociais do nosso tempo. Mas será que damos o devido valor a isso?

Coluna da Vivi 2

Vou puxar o fio pela psicanálise, por onde tenho acompanhado de perto uma guerra de tortas na cara e pó de arroz. Às vezes, uma guerra de salão. Mas que a gente não se engane: a performance palaciana de certos intelectuais não esconde que o ataque debochado, patologizante e mal disfarçado às lutas trans tem o dedo no gatilho nos fronts em que a violência é uma rainha tirana e dada a carnificinas. Aos psicanalistas que não compactuam com a sustentação teórica e clínica desse horror, algo que teve e ainda tem importantes desdobramentos na cultura e na política, a tomada de posição se faz necessária em vários sentidos.

Evidente que essa tomada de posição, em vez de isolar a psicanálise, a coloca de onde nunca deveria sair: do território da constante troca com os mais diversos campos do conhecimento, da escuta, não só em divãs e consultórios, mas nas das e com as ruas. As lutas trans questionam nossa articulação do mundo, como aprendemos as coisas, como podemos nos apresentar uns aos outros, como se constrói poder e o que o sexo tem a ver com isso. Também nos fazem pensar a diferença, em como fomos ensinados a lidar com ela nos termos da exclusão, da humilhação e da supremacia.

Longe do blablablá da extrema direita, que insiste projetar nas costas da militância trans a decadência moral, a decadência generalizada que a própria extrema direita encarna de forma inequívoca, há um forte movimento criativo em curso. Movimento que não pode ser parado nem mesmo pelos falsos aliados, pelos intelectuais “preocupados” com uma tal onda trans, sempre abordada como se fosse um modismo perigoso, com frases bizarras do tipo “agora todo mundo é trans”.

Essa frase, não à toa, nos lembra do famoso “agora tudo é racismo”, diante das lutas do movimento negro, e do “isso é mimimi de preguiçoso”, diante das manifestações de trabalhadores organizados. Os donos do poder não gostam de perguntas que desestruturam seus planos e seus esquemas. Apelam para sua defesa histórica: a criação de inimigos sociais, que estão sempre tramando o fim de um mundo bonzinho, bem organizado e virtuoso que jamais existiu.

O negro, o pobre, o comunista, os que não se encaixam na norma hétero-cis, eles são a Cuca. E cuidado com a Cuca que a Cuca te pega. Os movimentos sociais em geral são tidos como nocivos, mas quem quer ferrar mesmo com a nossa cuca, os verdadeiros lacradores de mentes e narizes, os que não querem nos deixar viver, respirar, transformar, esses são os que se escondem sob slogans covardes em nome do “cidadão de bem a favor da família tradicional”.

O que ocorre, sabemos, é que esse tipo de discurso, que ganhou ares de verdade oficial durante a devastação bolsonarista, mas que está por aí há muito mais tempo, tem consequências gravíssimas. Os grupos eleitos como vilões têm sido massacrados historicamente, seja em termos de serem barrados nos acessos a direitos, no encarceramento em massa, na precarização brutal do trabalho, seja nos assustadores recordes de assassinatos de pessoas trans no Brasil.

E, por outro lado, são usados como desculpa para a implementação de leis, práticas e políticas que completam os ciclos de opressão. Afinal, a família e as crianças devem ser protegidas dessa “gente perigosa”. Os supostos protetores, no entanto, são os mesmos que se esforçam para esconder coisas como a violência doméstica, o que inclui os números absurdos de violência sexual contra crianças e adolescentes (as estatísticas mostram que a maioria dos casos ocorre dentro de casa).

A luta trans é capaz de transitar. É uma luta fundamental, que questiona os limites e as consequências da base binária homem/mulher, que fala de como o racismo no Brasil criou as bases de uma educação pela pedra do ódio, que questiona a exclusão de quem nem sequer tem acesso aos empregos precarizados no mercado, que bota em jogo a linguagem. Quando discutimos todes ou todx, abrimos portais, ao menos balançamos suas trancas. E a quem interessa que isso tudo permaneça fechado e mofando?

Quando pessoas trans quebram o estigma de estarem condenadas à miséria e à prostituição, quando são eleitas para cargos públicos, quando escrevem livros, fazem entrevistas, dão palestras, atuam como médicas, advogadas, quando ganham voz, um sinal de alerta se acende em muitos lugares. Na política, nos que sustentam os cercadinhos do patológico, nos que lucram muito com a subalternização de grupos.

 

Quando pessoas trans quebram o estigma de estarem condenadas à miséria e à prostituição, um sinal de alerta se acende em muitos lugares.

 

Imaginem, que audácia! Mulheres negras trans falando alto sobre direitos trabalhistas, indígenas trans falando de reforma agrária, falando do que bem entenderem, pessoas trans com poder de decisão. Mulheres trans defendendo as trabalhadoras domésticas, as operárias, combatendo a violência contra as mulheres. Isso faz um terremoto, um tremor que não destrói, mas que abre uma fresta pela qual podemos vislumbrar tudo o que temos sido impedidos de criar, sentimos a brisa de um mundo em que a segregação mais importante seria a de tudo aquilo que oprime, em que o inimigo fossem as ideias que sequestram a diferença e a fazem prisioneira da tortura, do ódio e da desigualdade.

Mesmo o destaque de pessoas trans na arte e na moda tem incomodado. Há quem saia por aí criticando a presença de qualquer causa nesse meio, chamando a volta da “moda pela moda”. O fundo classista e racista dessa afirmação é óbvio. Cai quem quer e concorda.

A moda, com todos os seus problemas, foi um dos primeiros lugares buscados para a expressão da comunidade trans, entre os demais grupos que foram compondo a sigla LGBTQIAPN+. O ato de vestir, mesmo quando oprimido por códigos esnobes ou ordens patéticas, como “menina veste rosa, menino veste azul”, é queer, trans, não binárie. Há algo no vestir que pode escapar, que pode falar de um estranhamento fundamental, de uma insubmissão. E isso vem das pessoas. Está aí a história da indumentária mundial que não me deixa mentir, que comprova essa tese em milhares de cores e culturas.

No Brasil, temos nomes incontornáveis, como a ativista e criadora Neon Cunha, que nos faz, entre muitas outras coisas, estabelecer ligações entre as lutas dos movimentos negros e trans com elementos culturais que aparecem na moda. É uma riqueza observar como o trabalho dela, seja em um desfile com a marca Isaac Silva, seja em um encontro com lideranças do MST, é capaz de transformar e inspirar de um jeito complexo e acolhedor.

Ainda no âmbito da moda, vale lembrar da modelo internacional Hanne Gaby Odiele, que fez um bonito trabalho entre os jovens ao contar sua trajetória de pessoa interssexo. Ela ajudou a dar voz a uma comunidade, mas há um dado específico em sua fala que é interessante destacar.

Hoje em dia, há um pânico de que estaríamos diante de uma epidemia de cirurgias de afirmação de gênero, capitaneada pelo que a extrema direita jura que são doutrinadores malvados dedicados a corromper jovens e crianças.

Pois o que Hanne e seus colegas de luta denunciam é outra coisa. Cerca de 2% da população nasce com características interssexo. Isso inclui combinações: cromossomos XX e XY, órgãos reprodutivos que não se encaixam nas descrições do que entendemos como anatomia só feminina ou só masculina. Uma pessoa também pode ter genitália visível identificada como masculina e ovários, por exemplo. O que ocorre é que a maioria absoluta dessas pessoas passa por cirurgias na infância.

Os pais literalmente decidem com os médicos “o quê” essa criança vai ser, e a cirurgia escreve essa decisão no corpo, na maior parte das vezes ignorando totalmente aquela pessoa. Há muita violência nisso. Segundo as associações interssexo, uma minoria dessas cirurgias é de fato motivada por alguma questão de saúde. Ou seja, quem mesmo está distribuindo cirurgias por aí e calando as vozes e desejos de jovens e crianças, tiranizando corpos e escolhas via medicalização?

Não à toa, o QIAPN+ veio depois do T na sigla. Não por ordem de importância, mas de abertura de compreensão. Ao mesmo tempo, o T faz repensar o LG e sua própria história. Não há, por exemplo, como falar da militância gay e suas conquistas sem Martha P. Johnson, militante negra que se descrevia como uma travesti.

A história das lutas é a história dos encontros. O resto é supremacia branca, em que branca passa pela cor da pele, mas vai muito além dela. É um jeito de viver, um jeito de ensinar a odiar e a dominar.

“O mundo pode se sustentar no estado de miséria e concentração de renda em que está.” Há gente que defenda isso, o quanto pior para a maioria, melhor para alguns. É um jeito podre, destrutivo, cruel e medonho? Sim. E tem quem brigue para que assim seja, um mundo burro, vil, desprezível, adoecedor. Quem não compactua com essa ideia precisa caminhar em outra direção.

Destruir esse modelo exige necessariamente criar outro. Esse é o processo. Não existe isso de primeiro luta para acabar com um e depois começa a fazer o outro. São processos que se relacionam, vão se apoiando.

A luta e o próprio termo trans são muito importantes nesse contexto. Isso porque nos aproximam da ideia de uma travessia que vai muito além do modelo fechado e limitante de sair do ponto A e chegar ao ponto B. Essa travessia é capaz de modificar os próprios pontos de chegada e partida, de reinventá-los a partir da invenção do movimento. Estamos falando aqui de um movimento que surge como criação radical, questionando conceitos e compreensões de palavras como origem, sentido, causa e tempo.

Ou, nas palavras de Neon Cunha, “a humanidade está em transição”.