Alguém achou que seria fácil? Quando os primeiros aplicativos de relacionamento surgiram, há pouco mais de uma década, um novo mundo se abriu para quem já estava cansado de procurar sua cara-metade – ou pelo menos uma boa companhia – nas baladas da vida. Com tantas opções na ponta dos dedos, a busca só podia dar certo. Bem, nem sempre.
“Preguiça de aplicativos”, “burnout de dates” e “cansaço de encontros” foram termos que entraram para o vocabulário dos solteiros na era digital. Mais possibilidades, mais dilemas, mais frustrações. Mas se, com certa dose de organização e trabalho, desse para filtrar as ofertas de um aplicativo e converter matches em algo realmente promissor? Afinal, se a lógica da dedicação e da otimização vale para tantas esferas do dia a dia, por que não aplicar isso às primeiras interações românticas?
A aposta não é garantida, claro, mas não são poucos os usuários que utilizam essas ferramentas de forma estruturada, quase tática. Valem planilhas que analisam matches e encontros com base em critérios comportamentais e físicos, questionários e roteiros de perguntas e até mesmo chatbots e automações de respostas.
A organização, para alguns, vira diversão – uma brincadeira criada para rir com amigos e dar uma agitada na vida afetiva. Para outros, o empenho pode virar um assunto mais sério. Em ambos os casos, um uso supostamente menos espontâneo pode ser uma saída à sensação de cansaço comum a muitos usuários de aplicativos de relacionamento. “O mundo está muito louco, então vamos tomar medidas loucas. Encarar algo como um laboratório pode ser interessante se você sente que aquilo não está te inspirando”, diz o psicanalista Lucas Liedke.
“O mundo está muito louco, então vamos tomar medidas loucas.”
Lucas Liedke
Com ou sem emoji?
“Encontros devem ser divertidos, autênticos e espontâneos, mas isso não quer dizer sem esforço”, ressalta a gerente sênior do aplicativo Bumble no Brasil, Alice Johnston. “Quando você está conhecendo pessoas, as coisas podem ser desafiadoras, então é compreensível que alguns sintam a necessidade de planejar.”
Já para Ana Suy, psicanalista e professora da PUC do Paraná, a ideia não seria necessariamente de “esforço”. “O amor precisa de investimento. É trabalhoso porque exige tempo e gera preocupações. É um investimento em que se pode ganhar, perder, e que é, sobretudo, incerto.”
O desenvolvedor de apps mexicano Mariel Maldonado, por exemplo, investiu seu know-how em causa própria. Quando vivia em Nova York, em 2018, criou uma automação de respostas no Tinder. O objetivo do experimento: um namorado. A cada match, cinco possibilidades de frases eram levantadas, com duas variações, sem e com emoji. “Na primeira semana, não peguei ninguém. Estava na pesquisa inicial, entendendo o uso de emojis. Depois eu tive quatro encontros em uma semana”, conta ele.
Na segunda fase do projeto, o desenvolvedor criou um chatbot que não mandava apenas a mensagem inicial, mas conseguia tocar uma conversa por mais tempo. O experimento facilitou as interações do mexicano, que se descreve como “muito tímido”. Se um usuário não lhe respondesse em duas semanas, o perfil era deletado. “Eu fiquei muito ‘agressivo’ com o algoritmo. Não dava segundas chances”, reconhece.
Mas a praticidade dessa triagem também mostrou suas falhas: uma pessoa que havia sido “cortada” por tempo de inatividade falou com ele, dias depois, em outro app. A conversa fluiu bem e os dois acabaram namorando por um bom tempo. “Foi o namoro mais longo da minha vida”, conta Mariel.
Para o psicanalista Lucas Liedke, o uso criativo, organizado e otimizado desses aplicativos pode apresentar benefícios desde que haja espaço em automações para encontrar “ outro tempo”. “Como Cronos e Kairós, deuses da mitologia greco romana”, exemplifica. “Os dois são formas de enxergar o tempo. O primeiro é o linear, do relógio e da agenda. Já Kairós é o oportuno, o tempo que as coisas levam para acontecer. Como você vai planejar em quanto tempo vai se apaixonar e começar a namorar? Isso não existe. O que temos são padrões culturais.” Depende do tempo de Kairós, portanto, o encontro com a pessoa certa, na hora exata, que olha para a outra de um jeito específico – e então as duas se perdem no tempo de Cronos, sem nem saber mais que horas são.
Pode parecer idealizado, mas há algo na formação de vínculos que escapa à razão – e não há automação de resposta que garanta a construção de uma relação, explica o psicanalista. Uma abordagem pragmática é válida, mas tem suas limitações. “Uma coisa é encontrar tempo e local para o sexo, e outra é achar uma janela na vida para criar uma relação romântica”, pondera Lucas Liedke. Tempo é dinheiro e, nessa mesma matriz, talvez possa ser sexo também. “Mas dinheiro não é amor. Tem uma lógica aí na qual a gente se perde ao tentar buscar a hipereficiência.”
A própria separação em modalidades – de um lado, matches românticos e, do outro, sexuais – já é sujeita a escorregões. Algo focado em sexo pode virar casamento, namoro ou decepção afetiva. “Para o encontro amoroso, a gente vai ter que sustentar vazios e faltas. Tem um tipo de bagunça. Olhando para uma imagem bem clássica, é a flecha incontrolável do cupido”, continua Liedke. “E isso vai contra o que as tecnologias e a otimização nos seduzem a acreditar. Vai ter imprevisto, e o que é muito organizado pode acabar chato.”
Quem não ficou nada entediado com táticas de otimização, ao menos por um período, foi Mariel Maldonado. Após o experimento no Tinder, ele partiu para o Grindr. “Eu haqueei o app para criar um mapeamento de Nova York. Com base na minha localização, usei um algoritmo para cruzar diferentes pontos geográficos, pegando 500 perfis em cada um desses pontos. Depois, eliminei os perfis duplicados e criei um mapa no Google Maps.”
Os dados foram organizados em uma categoria de preferência de posição sexual: ativo, passivo, versátil etc. O desenvolvedor tocou a mesma análise em São Francisco, Londres, Madri e Berlim. “Sou muito tímido e queria um namorado. Fiz isso com um pensamento de sistema de ranqueamento, que eu poderia usar para superar a preguiça e seguir no jogo.”
Apesar de tanto empenho nas análises, Mariel não falava sobre seus experimentos para quase ninguém. “Agora eu acho descolado. É muito ‘tendência’ usar o ChatGPT. Mas na época eu me sentia um fracassado e me perguntava: ‘Por que eu não sei conversar com pessoas? Sou estúpido?’”
“Agora eu acho descolado. É muito ‘tendência’ usar o ChatGPT.”
Mariel Maldonado
Hoje, o desenvolvedor não usa mais os recursos dessa forma e diz passar, no máximo, uma hora por dia nos aplicativos – isso quando abre os programas. Já a preguiça da busca pelo match perfeito continua, e ele dificilmente manda a primeira mensagem.
Planilha de dates
Que tal analisar dados passados para entender o presente? A prática básica empresarial foi usada por Amanda (nome fictício) durante um feriado na praia com amigos e, se não serviu para estabelecer metas futuras, garantiu boas horas de diversão. Conversando com um amigo, ela começou a se lembrar dos últimos homens com quem tinha saído. “Só que esqueci de vários e tivemos a ideia de fazer uma planilha para lembrar.”
A casa foi dormir e a dupla ficou até tarde organizando os dados em diferentes categorias. Eram elas: nome, nome nas redes sociais, idade, profissão, se beijou, se transou, como era o pênis, se teve orgasmo, ponto forte e “lixo” (“Se teve algum probleminha”, explica Amanda). “A planilha serviu para aquele momento de descanso e, de tempos em tempos, nos lembramos e fazemos uma atualização. Não usamos como uma ferramenta para encontros, mas como um exercício engraçado”, conta Amanda. Da última atualização, 19 nomes restaram. “A gente tem um recurso que é a ‘gaveta’. Não excluímos ninguém, mas, quando alguém deixa de fazer sentido, passamos para ela.”
Para Ana Suy, dedicar-se a esses cálculos pode ser interessante se a pessoa entende isso como uma distração e diversão. “O que me parece arriscado é acreditar no resultado. Achar que vai encontrar uma fórmula para algo”, diz ela. “O amor é um tipo de confiança depositada no acaso”, complementa.
“O que me parece arriscado é acreditar no resultado.”
Ana Suy
Pela sensação de poder de escolha e pela demanda por velocidade, essas ferramentas teriam deixado as pessoas mais autoritárias com a libido e as emoções, explica Lucas Liedke. Nos apps, a busca pela formação de vínculos inclui mais opções, interações e frustrações do que paquerar duas ou três pessoas em uma festa.
Curiosamente, as tecnologias de hiperconexão teriam gerado uma sensação de solidão, já que não são mais 20 sujeitos em uma festa, mas 20 mil. “Mas não podemos ser retrógrados e dizer que ‘antigamente as coisas eram melhores’. Esse mundo acabou e algumas coisas são como sempre foram. Eu só acredito que as tecnologias potencializam aspectos e sintomas”, pondera o psicanalista.
Você pode se deixar sugar por essas tecnologias ou se focar na diversão da história toda, em uma planilha com um amigo ou no estímulo por curiosidade analítica. Não que isso evite barcas furadas ou a colisão de frente contra um muro de idealização. “Mas esse perigo faz parte de se apaixonar”, finaliza Liedke.