A inteligência artificial pode nos emburrecer?

Pesquisadores do mundo todo não poupam esforços para aprimorar os mecanismos de IA. Mas será que estamos cuidando bem do nosso próprio sistema?

A inteligência artificial (IA) é um assunto que não vai largar a gente tão cedo – a tecnologia está nos apps de navegação, serviços de busca, streaming e Face ID, entre outras aplicações bastante úteis e já incorporadas na vida. Daí surge uma questão periclitante: e se a inteligência humana largar mão de nós? Afinal a tecnologia pode ser um inimigo da nossa inteligência ou, para ser mais precisa, é capaz de emburrecer as pessoas.  

Antes de tudo, é importante destacar um valioso esclarecimento feito por matemáticos, filósofos e neurocientistas a respeito da inteligência artificial. Apesar do nome, ela não é inteligente nem artificial. Não é artificial porque é criada pelo homem, portanto, é natural. E não é inteligente porque não tem capacidade de abstrair, deduzir, generalizar, inovar e refletir, entre outros atributos do humano. “Criar, nenhum sistema digital cria, inova, poetiza. Ele imita, compila tudo o que a mente humana produziu e gera um relatório estatístico… Ele (texto do ChatGPT) é um grande plágio, que compila múltiplas ideias que já existem”, afirma nesta entrevista Miguel Nicolelis, neurocientista e referência mundial na pesquisa da interface entre cérebro e computadores. 

A grande febre do momento, o ChatGPT, é um robô bem treinado, que conversa, responde a perguntas do usuário baseado nos dados apreendidos, praticamente todos disponíveis na internet, e faz isso em várias línguas e gramaticalmente muito bem. Mas “é perigoso e vai levar a um verdadeiro apagão da inteligência se as pessoas confiarem nele”, afirma o professor Walter Carnielli, diretor do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da Unicamp, em São Paulo. O robô respondeu errado oito vezes seguidas a uma mesma pergunta feita por ele, como ele conta em entrevista à revista do Instituto Humanitas Unisinos. 

Analisar também não é a praia dele. A diva Clarice Lispector deve estar gargalhando há dias com a interpretação feita, a meu pedido, dessa sua frase: “Para compreender a minha não-inteligência, o meu sentimento, fui obrigada a me tornar inteligente”. Resumo da resposta: o ChatGPT disse que a escritora reconheceu sua falta de inteligência e foi atrás do prejuízo. 

“Para compreender a minha não-inteligência, o meu sentimento, fui obrigada a me tornar inteligente”.
Clarice Lispector

A IA é um avanço notável da civilização se bem usada. Do contrário, é uma cilada que apavora. Principalmente se você considerar que o declínio da cognição do ser humano não começa só na velhice e que, portanto, nosso cérebro merece constantemente carinho, atenção, cuidados. 

Muito antes de você se irritar por ser chamado de tiozinho ou, pelo mais amigável, coroa, a sua capacidade cognitiva já começou a arriar. Por volta dos 20 anos de idade, começa o processo ladeira abaixo, o que afeta várias capacidades cerebrais e mentais, como raciocínio, memória, rapidez de ação motora e mental e capacidade de visualização espacial, explica Suzana Herculano-Houzela, bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA), em uma aula sobre como melhorar as capacidades por meio de exercícios para a mente.

A bênção é que não somos computadores, que quanto mais usados mais próximos do fim vão ficando. Com o uso, a capacidade do nosso cérebro não apenas se mantém como também melhora. 

Qual o melhor exercício para a mente? O melhor são muitos exercícios, realizar uma atividade variada, responde Suzana. O cérebro possui sistemas distintos com funções distintas, por isso é preciso investir em práticas diversas. Isso significa que se afundar no Sudoku compulsivamente, acreditando que ficará melhor em todas as habilidades, é um grande equívoco. 

“Mas uma coisa é sabida: a atividade mais completa para o cérebro é a leitura. Ler exige atenção, memória semântica e de trabalho, capacidade de linguagem.”

Mas uma coisa é sabida: a atividade mais completa para o cérebro é a leitura. Ler exige atenção, memória semântica, memória de trabalho, capacidade de linguagem. É preciso ter uma capacidade social de intuir, de representar na sua mente o que o outro está pensando, para se colocar no lugar dos personagens e experimentar a emoção deles – tudo isso junto com uma sensação de prazer, explica Suzana. 

Detalhe: que o livro seja do gênero ficção, recomenda Richard Restak, neurologista, autor de mais de 20 títulos sobre a mente humana e portador, aos 81 anos, de memória exemplar. Nos livros de não ficção, diz ele, você pode ler o índice e se concentrar no que interessa. Já a ficção é muito mais exigente com a memória, especialmente se o romance é complexo. “Os personagens aparecem e desaparecem. Você pode encontrar alguém no segundo capítulo que depois só irá aparecer no capítulo dez”, disse o professor da Faculdade de Medicina e Saúde do Hospital da Universidade George Washington (EUA), em entrevista à BBC News Mundo.

Entre os pecados para a memória descritos por Richard, dois deles se referem à tecnologia. Um é a chamada distorção tecnológica, em que você terceiriza a vida para o aparelho que leva no bolso, o que reduz o esforço mental, mas também pode atingir as suas habilidades. O segundo é a distração tecnológica intrínseca ao mundo digital: responder mensagens no WhatsApp enquanto conversa com o amigo ao lado e checa o trânsito no Waze. Ou o clássico expediente publicitário de estorvar a leitura na tela com um pipocar de anúncios dos produtos que você andou pesquisando nos últimos meses. Deixar-se levar por essa onda alucinada é arrebatador. A atenção e o foco no presente são imprescindíveis para a codificação de memórias.  

E mais: a artimanha dos algoritmos em exibir o que ele detectou que nós “gostamos”, ou seja, o mais do mesmo de produtos e também conteúdos, limita barbaramente o nosso universo, reduz os horizontes, nos coloca num cercadinho, o que muito facilmente pode transformar a pessoa numa toupeira. Aliás, a fama de burra desse bicho vem exatamente do fato de ele viver embaixo da terra, no escuro, fazendo sempre mais do mesmo: cavucando túneis sem parar, feito usuários compulsivos de redes sociais e afins.

Deixar-se levar pelos algoritmos é perder o acesso à diversidade incrível do mundo conectado. O contrário é ter a capacidade de escolher bem entre as várias alternativas disponíveis. Essa é uma definição do amplo conceito de inteligência. 

Experienciar e observar o mundo externo enriquece essa nossa capacidade de discernir bem. Olhar para dentro também! Por isso a atual busca pelo autoconhecimento. Introspecção, sonho, imaginação, desejos, medos… Elaborar questões do mundo interior dá ao ser humano ferramentas valiosas para administrar de forma mais eficaz a vida, em especial os conflitos existenciais. Lembrando que para isso pede-se alguma distância dos estímulos frenéticos das telas. 

A ideia aqui não é demonizar a tecnologia, o que seria igualmente uma burrice. E sim combater o que ameaça nossa inteligência e nossa saúde mental. Conhecimento é a melhor arma, o que lembra uma máxima do general e filósofo chinês Sun Tzu, do século V a.C.: “Se você conhece o inimigo e conhece a si mesmo, não precisa temer o resultado de 100 batalhas”.