Seu jeans não vai salvar o mundo – mas também não precisa destruí-lo

Com impactos socioambientais, que vão das águas aos postos de trabalho, uma parte do mercado de jeans está provando que é possível fazer diferente.

Quando Levis Strauss popularizou o uso do jeans, talvez não imaginasse que a peça causaria tantos efeitos negativos. Desde a produção da matéria-prima até o pós-uso, o mercado, que vende mais de 4,5 bilhões de pares por ano no mundo, deixa rastros nas águas, no solo e na atmosfera para conseguir a estonagem perfeita, o melhor caimento e o índigo mais azul. 

Mas nem tudo está perdido, e talvez Strauss possa descansar em paz (algum dia…). A seguir, contamos os impactos de cada etapa de produção do jeans e o que pode ser feito por marcas, consumidores, empresas, academia e poder público para reduzi-los.

“O jeans é demonizado demais, mas já é feito de uma forma mais responsável e melhor até do que outros artigos de moda.”
Mieko Cabral

Tudo começa com o algodão 

O jeans, embora às vezes mixado com outras fibras sintéticas ou artificiais, é normalmente feito de algodão, a fibra natural mais usada no mundo. E o algodão brasileiro é cheio de complexidades. 

Embora utilize menos água em seu plantio, por ser um regime de sequeira (que usa água da chuva), ainda assim concentra enormes montantes de agrotóxicos nocivos à saúde do solo e das pessoas, além de fazer parte da cadeia do agronegócio, com sistemas de monocultura. Certificações como o Better Cotton Initiative (BCI), mesmo importantes, estão longe de resolver esses problemas. 

Na cotonicultura está também a maior pegada hídrica do jeans. Um dos dados mais conhecidos sobre a peça é que “são necessários mais de 5 mil litros de água para produzir uma única calça”. A informação, apurada pela Vicunha Têxtil, utilizou a metodologia global da Water Footprint Network e calculou que o plantio representa, em média, 4.247 litros de água dos tais 5 mil utilizados. As outras etapas são tecelagem (127 L), confecção e lavanderia (362 L), varejo (sem consumo significativo de água) e consumidor final (460 L). 

Já existem caminhos para tornar o algodão uma cultura de impacto positivo por meio da agroecologia e novas práticas de mercado – e mostramos tudo por aqui.

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A insustentabilidade da confecção

Antes de receber a lavagem, etapa que garante ao jeans os aspectos de estonagem, corrosão e maleabilidade, o tecido passa pela confecção.

Um dos maiores polos produtivos está em Toritama, no agreste pernambucano, e representa quase 20% da produção nacional. As cidades próximas, Santa Cruz e Caruaru, são focadas em outros artefatos de vestuário, ainda que também integrem o cenário, empregando mais de 100 mil pessoas, de acordo com o Sebrae. 

Um filme que ficou famoso por retratar fragmentos dessa realidade é Estou me guardando para quando o Carnaval chegar. Como mostra o longa, os postos de trabalho são baseados na informalidade e em pequenas oficinas: 88% dos locais empregam só até quatro pessoas. Um relatório da organização Aliança Empreendedora, de 2020, aponta que a informalidade chega até o percentual de 57,3% em Toritama. 

A cidade é mesmo uma particularidade. Virgínia Vasconcelos, pesquisadora, professora e cofundadora do Coletivo Mulheres do Polo, explica que “Toritama é uma região e um aglomerado produtivo que surge de maneira informal, sem o apoio do estado, e não é formado por grandes marcas. Algumas se destacam e se formalizam, mas a maioria é micro ou pequena”.

Os aproximados 20 milhões de peças produzidas anualmente são vendidos principalmente em feiras, às vezes online, e normalmente comprados por outros lojistas.

A vocação para o jeans pode ser explicada, continua Virgínia, pelo histórico do município. Antes de investir no jeans, Toritama era produtora de itens de couro. Daí vem o maquinário especializado, utilizado também para o denim. 

Ao mesmo tempo que a pesquisadora destaca a relevância de Toritama e seu case socioeconômico, também questiona como garantir melhores condições para quem produz o jeans diariamente. “Há a cultura de que as pessoas preferem ser autônomas, e precisamos discutir que essa preferência se dá pela inexistência do trabalho digno e de direitos que protejam esse trabalhador”, lembra ela, que nasceu em Santa Cruz.  

A realidade do trabalho informal leva, muitas vezes, a condições precárias. São jornadas longas, que passam de 12 horas diárias, salários baixos e insalubridade. 

A maioria das trabalhadoras, claro, são mulheres – a força produtiva majoritária da moda. Setenta por cento das costureiras autônomas da região recebem até um salário mínimo por mês e 38% ganham só um quarto desse valor. Isso leva Virginia a fomentar, por meio do Coletivo, ferramentas de empoderamento e qualificação para elas. Um exemplo é auxiliar na abertura do cadastro de MEI (microempreendedor individual), que garante acesso a direitos básicos, como seguro saúde e maternidade. 

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O drama da lavanderia

No ano de 2005, a cor do Rio Capibaribe era azul-índigo. O principal manancial de água de Toritama recebia 70% dos efluentes industriais e sanitários das lavanderias de jeans da cidade. 

“O rio não voltou a ter aquela tonalidade, o número de lavanderias que se adequaram foi grande, mas os impactos ainda existem. A maioria dos processos é informal, incluindo a lavanderia”, conta Virgínia. “Isso só vai ser controlado quando as empresas tiverem compliance, seguindo regras e atuando na formalidade para que o Ministério Público do Trabalho consiga atuar e oferecer qualificação adequada”, defende.  

A parte da lavanderia de jeans envolve diversos processos de beneficiamento. É uma etapa que utiliza vários produtos químicos para atingir cor, estonagem e desgaste específico de cada item – daí a contaminação dos nossos rios e águas com poluentes.

Por exemplo, o permanganato de potássio e o hipoclorito de sódio são elementos comuns para clarear as peças. Então, quando é possível eliminá-los por meio do uso dos feixes de laser, diminui-se também o impacto nocivo da peça fabricada.

Para a estilista Mieko Cabral, “se a gente usar o melhor químico, junto com uma máquina bem regulada, já conseguimos ter uma melhoria nesse impacto”. Ela é coordenadora acadêmica da Denim City, um hub de inovação para o jeans, de origem holandesa, com sede em São Paulo.

A entidade tem um laboratório especial, que funciona como um centro de pesquisa e desenvolvimento. No espaço, existem máquinas de lavar, secadoras e recursos para acabamentos com ozônio, a laser e práticas manuais, que, por meio de parcerias, podem ser utilizadas por estudantes e designers como um centro de treinamento de lavanderia. 

“As soluções existem, mas não estão sendo ofertadas de maneira sistemática.”
Virgínia Vasconcelos

Quem está interessado em reduzir os impactos nessa etapa é o Grupo Malwee. A varejista catarinense tem o Jeans Um Copo D’Água, que consegue economizar 98% de água no processo e faz parte do seu LAB Malwee Jeans, o quinto laboratório desse tipo no mundo, conhecido como Lavanderia 5.0, explica o Gerente de Projetos com foco em ESG da marca, Renato Martins.

Funciona da seguinte forma: os efeitos de tingimento e rasgos são desenhados em um software e aplicados a laser, num equipamento chamado Laser Flex Pro, que garante menor pegada hídrica e o abandono dos químicos convencionais, como o citado permanganato.

Depois, na máquina de ozônio, o gás é aplicado para clarear e desengomar o tecido, o que também elimina o uso de água e químicos no processo. Por fim, o banho tradicional pelo qual a peça é normalmente submetida (para receber outros químicos) é trocado pela aplicação de nanobolhas, feitas por um equipamento chamado Mambo 60. 

Hoje, os jeans feitos dessa forma representam 20% da produção interna da Malwee, que investiu em torno de 9 milhões de reais para importar a tecnologia, patenteada pela companhia Jeanologia, da Espanha. Isso já fez a varejista economizar 295 milhões de litros de água nos últimos três anos, o equivalente a 118 piscinas olímpicas. 

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O futuro do jeans

 

Não é só a Malwee que tem olhado para novas práticas no mercado do denim. A Damyller usa uma tecnologia parecida, chamada ATMOS. A C&A investiu recentemente na rastreabilidade de suas peças. E a Another Place lançou recentemente a ANP Denim Lab, um centro de pesquisa e inovação dentro da Denim City. 

Para Mieko, “o jeans é demonizado demais, mas já é feito de uma forma mais responsável e melhor até do que outros artigos de moda”. A professora reforça que as tecnologias têm avançado para minimizar cada vez mais os impactos negativos provocados.

Essas novidades industriais, continua ela, precisam estar em sinergia com o ensino de design, têxtil e vestuário. “Na faculdade de moda, não se fala sobre o jeans, ou se fala de forma superficial. Os alunos não têm essa formação, não conhecem, e seguem trabalhando como a indústria sempre trabalhou. É difícil ter inovação e melhorias quando não temos a área acadêmica no processo”, aponta. 

No âmbito empresarial, é necessário fortalecer parcerias e fomentar diferentes expertises. Renato argumenta que é necessária “uma cultura onde você não canibalize suas ações de sustentabilidade por conta de custo. É mais caro, mas se tem menor impacto, tem que ser considerado”. 

Contudo, isso precisa chegar às pequenas empresas e confecções, como as de Toritama. “As soluções existem, mas não estão sendo ofertadas para o polo de maneira sistemática”, diz Virgínia, ao afirmar que não vê políticas públicas concretas sendo direcionadas para o território e poucas instituições atuantes de forma recorrente. 

Ela defende que apenas com esse tipo de ações, que envolvem mais ofertas de trabalho regularizado, digno e qualificado, aliada à superação das desigualdades socioeconômicas da região, será possível produzir o jeans de forma responsável ambiental e socialmente.

Embora Toritama seja um case de produção do artigo, “há um gap grande entre o crescimento econômico e a intervenção do poder público e instituições de fomento para melhorar a qualificação, conscientizar e orientar sobre como ter menos impactos”, finaliza a pesquisadora.