Há algumas semanas o The New York Times publicou uma reportagem sobre as “mommunes”, pequenas comunidades formadas por mulheres solteiras e seus filhos. As histórias são as mais variadas possíveis, mas os objetivos, bem parecidos: dividir casas e apartamentos para reduzir custos, encontrar apoio e novas redes de suporte em muitos sentidos, incluindo cuidar das crianças, bater papo, ter boas companhias.
A especulação imobiliária não é o primeiro lugar que pensamos em investigar quando o assunto é relacionamento, mas tem se tornado cada vez mais uma questão nesse sentido. Basta fazer as contas: juntando boletos e taxas básicas, alimentação e custos com moradia, morar sozinho se torna uma escolha bastante cara. E o valor de um aluguel é talvez o que mais pese nessa planilha difícil de segurar.
Para dar um tapa na situação, o mercado já colocou na roda uma série de novos nomes. Uma quitinete minúscula hoje é studio, uma república ou pensão virou coliving. O problema é que os preços acompanham a gourmetização dos títulos, mas isso não se reflete necessariamente no conforto dos espaços.
Em alguns casos, por exemplo, é impossível reunir amigos ou chamar a família para uma pizza. Parece bobagem, mas não é. O espaço onde vivemos, onde comemos e dormimos, guardamos nossas coisas, compartilhamos tempo e trocamos ideias com pessoas de que gostamos, faz muita diferença na organização das nossas relações.
Não faltam relatos de casais de namorados ou até ficantes que resolveram morar juntos para dar uma aliviada na parte financeira. Em alguns casos, é uma receita para o fracasso. Em outros, porém, uma experiência que pode trazer aprendizados importantes e até, por exemplo, transformar um casinho sem graça em uma belíssima amizade.
E não se resume a isso. Morar com amigos, colegas ou dividir um lar com pessoas até então desconhecidas vai deixando de ser um primeiro passo na vida adulta ou sinônimo de fracasso para se transformar simplesmente em um jeito de viver. Um jeito de viver junto.
Evidente que isso só funciona se a relação é de parceria, de colaboração, cooperação, não de submissão e exploração. Se você precisa fingir, se prender a uma relação ou transar com alguém para ter onde morar, é outra coisa.
Não se trata, portanto, de romantizar nada nem de ignorar as questões econômicas, mas de pensar o que as experiências das comunas de mães, dos roommates e ou das repúblicas de gente adulta têm a dizer sobre soluções coletivas.
A questão da moradia no Brasil e em vários países é muito marcada pela exclusão. As periferias para as classes pobres, as regiões centrais e os condomínios para os ricos. Essas divisões geram confrontos e questões que expõem estruturas. Estruturas sempre tensionadas, dos quilombos às terras indígenas.
O centrão de São Paulo é um exemplo bem contemporâneo. Entre jovens, hipsters, grandes incorporadoras, a Cracolândia, moradores de rua, senhorinhas, famílias e movimentos sociais organizados, o poder público segue girando em falso. “Violência gera violência” não seria uma fórmula absurda nesse contexto. O resultado são ciclos migratórios para outros bairros, que acabam ficando superlotados e cada vez mais caros. Todo mundo sai perdendo, exceto os especuladores.
Recentemente, moradores de uma rua nobre de Higienópolis apoiaram a ocupação de um imóvel local abandonado para moradia social. Liderada por mulheres da Frente de Luta por Moradia, a ação recebeu doações e suporte nas redes. Algo incomum na região, mas talvez motivado pela compreensão de que a presença daquelas mulheres e de suas crianças não constitui ameaça, mas um passo no sentido da segurança social e da boa convivência.
Esses movimentos têm sido bastante estudados nas últimas décadas, e o que os pesquisadores têm descoberto é que a maioria deles se formou a partir de comunidades ameaçadas. E que, daí em diante, novas comunidades e grupos passaram a reivindicar seu direito à moradia, o que não é nenhum absurdo radical, mas algo garantido pela Constituição Federal do Brasil.
Aí vocês podem perguntar, mas o que uma coisa tem a ver com outra? O que ocorre é que nós, seres humanos, não aprendemos as coisas separadamente. Nós funcionamos em relação, o eu não está totalmente separado do outro. As experiências sociais, comunitárias e familiares também nos formam.
Aquilo que no âmbito social passa a ser estimulado, possível ou deixa de ser criminalizado tem ligação com o que nós achamos que podemos fazer como pessoas, e vice-versa. Claro, não é uma relação direta de causa e consequência, mas uma rede de acordos, de encontros.
Há ainda hoje quem ache que um homem e uma mulher não devem morar juntos se não estiverem tendo um envolvimento amoroso, sexual. Há quem ache absurdo que várias mulheres solteiras juntarem seus filhos em uma casa, que cuidem do grupo para que cada uma possa se divertir, sair pra dançar, transar, que possam se ajudar. Há quem ache que uma pessoa gay não deva morar com uma hétero. Que uma mulher trans não deve morar com uma mulher cis. E tudo isso é só uma tonelada de regras inúteis. Podemos e devemos tentar novas experiências, trazer a solidariedade para o nosso dia a dia de várias formas.
Esses que criticam toda e qualquer tentativa de aumentar a alegria e diminuir o sofrimento, inclusive psíquico, não raro são os mesmos que defendem com unhas e dentes o “direito” do mercado a fazer o que bem entender. Hoje nos Estados Unidos cresce o número de pessoas que têm um ou mais trabalhos e ainda assim não conseguem arcar com os custos de moradia. Muitos nem sequer conseguem pagar campings de motorhomes (trailers etc.) e moram em seus carros, dormem em estacionamentos – famílias, inclusive.
Então, quando a gente ouve qualquer preocupação sobre se as pessoas estão se juntando por prazer ou necessidade, é bom ficar de olho no que está de fato em jogo. Se há cuidado genuíno, questão social ou só patrulha. Tem muito sommelier de escolhas alheias viciado em controle, em submissão.
Porque problemas para resolver nesse sentido não faltam. É preciso construir moradias populares, desapropriar imóveis abandonados e devedores por descumprimento da função social da propriedade urbana, controlar a especulação e a gentrificação.
Há, além das já citadas, a questão de mulheres que acabam presas com companheiros abusivos e violentos porque não têm para onde ir. Essa é uma das razões do apoio consistente das feministas, especialmente as ligadas aos movimentos negros, aos programas de distribuição de renda tão atacados pela extrema direita e seus braços misóginos: esses programas elegem as mulheres da casa como beneficiárias, contribuindo para sua autonomia e a de suas crianças.
É tão maluco que a gente precise convencer alguém de que todo mundo tem o direito de ter onde morar, não é? Não é óbvio que isso é importante para nossas relações, nossa saúde mental? E por que a gente tem de criticar alguém por desvencilhar o espaço casa da necessidade de casamento, do juntar trapos, das relações familiares, dos limites de idade? Por que criticamos os movimentos que lutam coletivamente por isso? A casa não deve ser privilégio nem prisão, mas um lugar com chão, teto, paredes e o calor do acolhimento.