Ela não merece nada do que alcançou. Não é boa suficiente, certeza. Não está qualificada como deveria. Se chegou aonde chegou, é porque teve sorte. Mesmo sem herança nenhuma, sem padrinho, sem indicação, certamente, foi sorte. Trabalhou muitas horas, estudou ainda mais, mas é evidente que não tem condições. Em breve, será descoberta, exposta em toda a sua inegável e incontornável falta de mérito. Lá vai ela, a impostora.
Se você notou o artigo feminino, já deve saber do que estou falando: a chamada síndrome de impostora, uma espécie de desordem quase exclusivamente feminina. Não se trata de duvidar ou cultivar certa ansiedade em momentos decisivos, mas de um massacre constante e em geral consistente de toda e qualquer participação, de toda e qualquer conquista. Não se trata também de mera comparação direta a um oponente, mas de um tipo de crença que se alimenta de qualquer coisa para reforçar a certeza de um maldizer sobre si mesma. Uma palavra de desaprovação sempre renovada.
Essa síndrome não é algo que seja abordado diretamente pela psicanálise, como teoria, mas, como a psicologia, em geral, vai investigar o conceito de narcisismo para relacioná-lo a isso que aparece como uma convicção de embuste e que talvez possa ser resumido em uma frase: “Eu sei que sou uma fraude”. O que poderia ser complementado por “e é questão de tempo até que descubram”. Quem? Eles que sabem de mim, que me julgam, que observam as falhas na minha armadura de perfeição. Eles que estão em mim, no que eu penso e faço, no como me mostro, mesmo sem que eu saiba.
Individualizar isso, no sentido de afastar esse fenômeno do contexto social, é algo que não vai longe. O próprio fato de essa síndrome ser reconhecida como algo feminino revela seu oposto: um olhar masculino, não de um ou outro homem apenas, mas da própria estrutura patriarcal. É um saber-se menos, pior. Não exatamente em falta, mas sempre em dívida. Enquanto isso não for relativizado, colocado em dúvida na construção de uma nova possibilidade discursiva, de uma nova forma de contar a própria história e de se ver diferente em outros olhos, a opressão pode ser muito pesada.
Não faltam histórias de mulheres fantásticas, talentosas que sofrem com pensamentos massacrantes e cobram de si mesmas níveis de performance inalcançáveis (em casa, no mercado de corpos, na família etc.). Níveis, aliás, que a maioria dos homens jamais exige de seus esforços ou de seus pares. E aí temos um ponto interessante, que normalmente é nomeado como a “autoestima masculina”, uma que precisaria de muito pouco para se sustentar.
De um lado, mulheres sobrecarregadas que julgam nunca serem boas o suficiente. De outro, homens que dão a qualquer um de seus feitos peso de ouro.
Então, vamos pensar o seguinte. De um lado, mulheres sobrecarregadas que julgam nunca serem boas o suficiente. De outro, homens que dão a qualquer um de seus feitos peso de ouro, enquanto não só se colocam na posição de avaliar as mulheres como de julgá-las e reprová-las. Não me canso de lembrar das origens do Facebook: o franguinho amargo Mark Zuckerberg criando um aplicativo para dar notas e ranquear a beleza e os corpos de moças em um ambiente universitário. É um suprassumo da coisa.
Evidente que esse quadro estará sempre atravessado pelas questões de raça, situação econômica, por ideias capacitistas e ainda outros estereótipos de gênero. O que as vivências mostram é que homens brancos, ricos, cisgênero e heterossexuais não só são os guardiões de certos padrões como têm a chance de manipulá-los. Esta no fundo é a grande promessa do mundinho lamacento e covarde dos red pills: uma realidade em que as mulheres não só aceitem mansamente lugares de donas de casa, mas de seres feitos para a submissão e a servidão. E, além disso, passem a participar ativamente da desvalorização de outras mulheres, o que é realmente lamentável.
Ou seja, mesmo para se sentir impostora, há uma fila de espera. Você precisa, primeiro, conseguir vencer uma boa parte da corrida de obstáculos para isso. Só que ela não tem fim. E o que muitas vezes ocorre é a internalização e a alienação de tudo isso. Nem o mundo nem os homens precisam mais cobrar, pois nós também passamos a fazer esse serviço de graça. Acumulamos a função de nos oprimir, porque no fundo é o que nos resta. Que maravilha, não? Pois é.
O discurso é repetido, eu sei, mas é muito, realmente muito importante insistir no ponto fundamental de que as opressões se conectam em rede. Da empregada doméstica à CEO, todas estão nesse barco, mas algumas estão na cabine VIP e outras em um mar gelado presas a cordas por uma boia.
A ideia de sororidade, que caiu no balaio da hipocrisia, é de fato muito poderosa. Por isso mesmo, há tanto esforço em esvaziá-la e destruí-la. Sororidade significa ser aquela onde uma outra pode se reconhecer como válida, aceita, boa, digna de respeito. E não dá para isso acontecer enquanto o feminismo aceita as revistas de empregadas em prédios de luxo, os tiroteios semanais nas portas de escolas nas periferias, o racismo mal disfarçado na sala de estar, mulheres que oprimem mulheres por serem pobres, negras, trans, PCDs, ou simplesmente por serem sexualmente ativas, gordas, velhas, não serem casadas, não terem filhos, viverem sozinhas ou amarem outras mulheres.
A pior impostora é aquela que não enxerga em seu próprio sofrimento o abandono de tantas outras. E de tantos outros também. Não se trata de uma luta “contra os homens”, mas contra uma ideia de mundo, contra um jeito de viver a vida. Sem isso, não há doutorado, plástica, posse, família, look, macho, cargo ou sucesso que vá dar conta de nos trazer o mais importante: alegria, inspiração, orgulho de nossas conquistas, dias amorosos e, quem sabe, um tantinho de paz.