O tempo não é o novo luxo. O tempo é o essencial

Na moda e na vida pessoal/profissional, tudo junto e misturado, é preciso aprender a parar as máquinas.

A ideia era escrever este texto nos finalmentes de 2023. Aproveitar o calor do momento e a irritação das semanas com mais compromissos do que dias úteis. Não deu tempo. Em janeiro também não deu. Nos primeiros 20 minutos do dia 2 de fevereiro, parecia que daria, mas não deu. Na quarta-feira, dia 7, teria que dar. Não deu. Quem sabe hoje, quinta-feira, quase meio-dia.

Tempo só é ruim para quem não pode esperar. E meus atrasos involuntários estão aí de prova. A delonga foi essencial para colocar as ideias em ordem e mais um tanto de coisas em perspectiva. No meio do caminho, por exemplo, teve o desfile histórico de John Galliano para a alta-costura da Maison Margiela.

Parte do sucesso e relevância da apresentação tem a ver com o tempo. Galliano e sua equipe tiveram tempo. Uns 365 dias, para ser mais preciso. É um prazo irreal para estilistas de grandes marcas. Alguns chegam a fazer oito ou mais coleções por ano. Não por acaso, a vida útil da apresentação na mídia foi igualmente acima da média.

Quase duas semanas depois, a coleção ainda rendia assunto e audiência nas redes sociais, em sites especializados e grandes jornais. Hoje, uma notícia, fato, acontecimento, lançamento ou qualquer tendência nascida e catalisada nas redes sociais costuma vencer em menos de um dia.

Em uma matéria publicada no The New York Times, a jornalista e crítica de moda Vanessa Friedman questiona se as reações ao desfile têm menos a ver com John Galliano e mais com nossos medos em relação às condições criativas de agora. Até a noite do dia 25 de janeiro, aquilo era coisa do passado, uma relíquia sem cabimento algum no presente.

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É cedo para analisar possíveis impactos e influências do verão 2024 da Margiela Artisanal no mercado. A emoção, o fascínio, a inspiração, os questionamentos provocados pela coleção estão agarrados em muitas cabeças. O problema é arranjar um momentinho qualquer para entender o que aquilo significa e pode significar. Não tem um irmão com tempo. Pelo atual andar da carruagem, a probabilidade de transformação a partir das provocações de Galliano é baixíssima.

A terra leva umas 24 horas para completar um giro de 360º no próprio eixo. A velocidade de rotação, 1.666 km/h, está longe de ser a mais alta do sistema solar, pelo contrário. Somos o quarto planeta mais lento. Ainda assim, é cada vez mais comum a sensação de não haver tempo suficiente para dar conta de tudo.

A vida mudou, todo mundo sabe. Porém, segundo a psicóloga e escritora britânica Claudia Hammond, não realizamos mais tarefas ou atividades do que nossos pais e avós. A partir da análise de pesquisas sobre o uso do tempo da primeira década dos anos 2000 e de 1950, ela constatou que a principal diferença não é a quantidade de afazeres. É a nossa percepção do tempo e a ausência de barreiras entre o pessoal e o profissional.

No livro Time warped: unlocking the mysteries of time perception, Hammond argumenta que, embora benéfico, o avanço tecnológico permitiu a permeabilidade do ambiente e do período de trabalho nos espaços domésticos e na vida privada. Quando as tarefas profissionais entram em nossos lares, o refúgio de descanso e escape de lazer perde força. O tempo livre míngua em escala inversamente proporcional à intensificação da pressão e da (auto)cobrança. A publicação foi lançada em 2013, sete anos antes da pandemia.

Falando nela, nos dois primeiros anos da década de 2020, propagou-se a ideia de produzir menos, consumir só o essencial, apoiar pequenos produtores locais, dar preferência a produtos orgânicos, evitar desperdícios, agir com bom senso, comedimento e responsabilidade. É o grande despertar, disseram. Só esqueceram do modo soneca.

O problema é arranjar um momentinho qualquer para entender o que algo significa e pode significar. Não tem um irmão com tempo.

A partir de 2021, graças às primeiras vacinas contra a covid-19, a vida voltou a acontecer fora de casa. Hora de celebrar, YOLO (you only live once/só se vive uma vez). Na moda, as vendas de produtos de luxo explodiram. Desfiles e eventos ganharam estrutura e proporções homéricas, nababescas. Apresentações em locações fora do circuito das fashion weeks se multiplicaram.

 

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Só em maio do ano passado, a equipe desta ELLE viajou para Seul (duas vezes), Cidade do México e Los Angeles em um intervalo de duas semanas. Teve até uma semana de moda em pleno dezembro.

Se é verdade que o tempo corre e tudo descobre, é também que ele tudo encobre. A vida em piloto automático coloca todo mundo no mesmo rumo, sem desvio. A vida em velocidade máxima impede a visão nítida pela janelinha. É tudo um borrão. Nem adianta prestar atenção, pois tem outra coisa lá na frente. Eita, passou. O que era mesmo? Já esqueci.

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Outra explicação para a nossa sobrecarga e o nosso cansaço é a quantidade de estímulos visuais que nos impactam. Absorvemos tanto que um dia pode parecer ter a duração de três, de sete, 30. No Volume 01 da ELLE Men Brasil, o pesquisador e consultor de tendências Cássio Prates argumenta que a sensação de muita coisa acontecendo ao mesmo tempo gera uma ansiedade coletiva para emplacar outra visão que responda à atual correria de maneira mais significativa.

“O resultado, contudo, tem sido uma avalanche de estéticas e ideias que aparecem, viram #hashtag e são substituídas tão rapidamente que, às vezes, nem conseguem ser digeridas pelo mercado – ou por qualquer ser humano”, escreveu Cássio.

A invasão do trabalho em nossa casa e privacidade, como descrito por Claudia Hammond, hoje pode ser vista como uma infecção. A lógica da máxima produtividade e de alta performance em prol do lucro passou a reger as atividades pessoais.

Quando você vira você S/A, a vida entra em ritmo industrial. Tudo é performance, tudo é mensurável, tudo precisa se reverter em bons resultados. Vem daí a bobagem de acordar às 4 da manhã, cronometrar a rotina, organizar a agenda em segundos. Afinal, tempo é dinheiro, e dinheiro não aceita desaforo.

As máximas de self-improvement, que prometem tudo, exceto humanidade, nada mais são do que conceitos corporativos aplicados a negócios de todo tipo. Como qualquer negócio, o indivíduo-empresa também demanda bens e serviços ajustados ao seu timing e a condições de produção.

Existe uma relação inegável entre as ofertas e os funcionamentos do mercado de moda e estilos de vida dominantes. Quem vive otimizando cada segundo do dia tem aversão à demora. Eis o movimento “tudo fast”: fast food, fast learning, fast lane, fast pass, fast gym, fast training, fast read, fast fashion.

E se a gente não precisasse reduzir nem acrescentar nada para melhorar a qualidade de vida? Se a gente simplesmente desistir, parar, abandonar, encerrar alguma atividade?

Quem passa mais tempo no escritório do que em casa não precisa de apartamento espaçoso. Uns 20 m2 resolvem. Se o imóvel inteiro é do tamanho de um armário, o que vai dentro do guarda-roupa precisa ser leve, fino, fácil de dobrar, amassar, enrolar – sem fazer volume.

Se der para não amassar, melhor ainda. Vida em movimento, né? Viagens mil. E como qualquer cinco minutos podem ser aproveitados sabe-se lá como, roupas multifuncionais, tipo a camisa clássica de material esportivo, com propriedades térmica, impermeável, antiviral, bactericida e antiodor, é ideal.

Tem o excesso de estímulos, de demandas, cobranças, produtividade, a falta de limites entre pessoa física e pessoa jurídica e a redução do ócio, lazer e descanso. O bônus é o burnout.

Como este texto virou de 2023 para 2024, ele também passou pelas resoluções de fim e começo de ano. Por acaso, ou por uma traquinagem dos algoritmos, me apareceu uma série de conteúdos sobre a desaceleração.

A ideia não é nova. Ela começou a ganhar tração depois da publicação do manifesto Slowness culture, do historiador escocês Carl Honoré, em 2004. As vantagens de pisar no freio, seja para a parada total, seja para reduzir a velocidade, todo mundo sabe. Os obstáculos para tanto, idem.

Então, por que continuamos sem tempo? Sim, tem o sistema e os boletos no fim do mês. O sistema não muda porque não quer. Não é interessante financeiramente, é menos fluxo de caixa, receitas um tiquinho reduzidas.

Hoje, toda a movimentação na indústria – da collab exclusiva à dança das cadeiras de diretores criativos – é uma reação aos resultados financeiros trimestrais (falamos mais sobre isso aqui). Até o visual sem tempo virou tendência, vide os desfiles de verão 2024 de Miu Miu, Balenciaga, JW Anderson e Loewe.

Em nível pessoal, é possível não conseguirmos mudar por um erro de estratégia. Voltando às resoluções, a maioria delas é sobre adicionar algo positivo em nossos hábitos: mais exercício, mais alimentos saudáveis, mais tempo de leitura. As reduções operam na mesma lógica: menos tempo no celular, menos bebida, menos madrugadas em claro.

E se a gente não precisasse reduzir nem acrescentar nada para melhorar a qualidade de vida? Se a gente simplesmente desistir, parar, abandonar, encerrar alguma atividade não seria mais eficaz e prazeroso do que encaixar a mudança na rotina. Lembrando: a Terra ainda leva 24 horas para completar uma rotação.

Em Substrac, o cientista estadunidense Leidy Klotz estuda nossa resistência à subtração e aponta os benefícios de aceitá-la. Isso vale também para empresas, e no nosso caso para empresas de moda. Por exemplo, ao analisar medidas e ações reparativas de impacto reduzido na natureza, o raciocínio é de ajuste de engrenagens. Trocar o algodão de monocultura pelo orgânico, reaproveitar resíduos, tratar a água, usar energia de fontes renováveis e por aí vai.

Ótimo, já são alguns metros de caminho andado – porém rumo ao mesmo destino trágico de sempre. A solução, todo ambientalista não cansa de repetir, é o famoso (embora raro) “parem as máquinas”.

John Galliano não parou as máquinas da Margiela. Só reorganizou a companhia, aliviou o ritmo de produção, interrompeu a automação, deu pausa às máquinas e tempo à mão de obra humana. E provou que a pressa é realmente inimiga da perfeição.