No desejo sincero de se desapegar e abrir espaço para o novo, Dani montou uma lojinha no Enjoei. Foi na volta do date com Marcelo do Gado, uma paquera da vida inteira. Ela fiel da sexta série até o terceiro do ensino médio, ele nunca deu nem bom-dia. O áudio chegou com 15 anos pelo menos de atraso, às 17 horas de uma sexta-feira, aquela tristezinha de falta de programação:
– Dani, Marcelo Ferreira aqui. Do Santa Sofia. Santa Sofia, o colégio – lembra de mim?
– Marcelo do Gado?
– Nossa! Há muito ninguém me chama por esse nome – respondeu, rindo. A mesma risadinha do Santa Sofia.
Marcaram pra se encontrar ainda naquela noite, dali a três horas. Ela foi logo sugerindo um bar, mas ele tava louco pra conhecer um café novo pequenininho no centro. Tudo bem, Dani no clima take me anywhere, I don’t care, I don’t care, só pensava em fechar o expediente e correr pro shopping pra comprar uma calcinha que prestasse. A bichinha, inocente, não sabia que Marcelo do Gado tinha virado Marcelo de Cristo. Amargou três expressos e uns 30 salmos. O moço vinha em missão de evangelizar. Respondeu amém pro “fica com Deus” da despedida e já chegou em casa abrindo o computador.
A primeira lembrança que pôs à venda foi a do cheiro de Marcelo. Até hoje, não podia cruzar um patchuli que arrepiava o corpo inteiro. O nariz era automaticamente tomado pelo Styletto, que quase todos os meninos de Garanhuns usavam, mas que ela sentia como se viesse só dele. Marcou na categoria Rapazes/beleza/perfume, R$ 399,99. Pagou, levou.
Na categoria Casa&tal, subiu a memória do primeiro dia de veraneio em Itamaracá. A casa, fechada havia um tempão, ela pequenininha ainda, tinha enjoado na viagem com o Leite de Rosas de uma tia que vinha de carona. Passou direto do carro pro banho e, quando o chuveiro foi ligado, subiu um tanto de minimosquinha peluda pelo ralo. Fazia um calor de chorar e, por mais que se abanasse, uma população inteira de um bicho que não devia nem existir grudou no corpinho pelado de uma Dani, que nem gritar, gritava. Vai que entram na boca.
Aí desbloqueou tudo que foi memória de bicho. O dia que viu um peixe se debatendo no rasinho como se tivesse desaprendido a nadar. O dia que a gia (aqueles sapinhos transparentes e gelados) escondida no vaso pulou onde jamais poderia ter pulado quando ela sentou pro xixi da madrugada. O dia que o jumento enfiou a cabeça pela janela do carro e gritou um “iôm, iôm, iôm” a 1 cm do rosto dela, o dente maior e mais sujo que viu no detalhe até hoje. E olha que esse ano comemora dez de formada em odontologia. O dia que o barulho do caranguejo agonizando na panela quente entrou real demais no ouvido.
Casa&tal/Etc&tal/Vintage e retrô: moscas peludas saindo do ralo, R$ 109,90; gia ginecológica, R$ 219,90; hálito equus, R$ 89,90; omissão crustácea de socorro, R$ 149,85. O peixe não deu pra subir, o aplicativo alegou informação incompleta. Mas era só disso mesmo que ela lembrava. Aquele olhão de desespero do peixe.
Era feito o lenço que o mágico vai puxando do bolso, sabe? Uma memória amarrada na pontinha da outra. Do Styletto pro doce do Leite de Rosas, do cheiro grudento pra mosca, da mosca pro peixe, do peixe pra gia molhada, da gia pro cuspe do jumento, do dente do jumento pra patola do caranguejo, do carbonato de cálcio do bicho pra falta de cálcio da tíbia.
Dani conheceu um possível substituto pra Marcelo do Gado no recreio da Cultura Inglesa. A coisa andando bem, gracinha de menino, ele puxa conversa dizendo que tinha descoberto um jogo novo.
– É massa, de repente, a gente até se encontra pra jogar junto.
– Jura? Eu topo, como chama?
– Tibia.
– Mas jogar? Jogar mesmo? Como é isso?
– Você escolhe uma classe de personagem e a partir daí tem liberdade pra fazer o que bem entender.
Ela sentiu, como no patchuli, arrepio de corpo inteiro, mas dessa vez um arrepio de horror. Associou o tibia às tíbias que o pai, professor universitário na medicina, levava pra casa. Quebradas em vários pedaços, nas mais diversas direções, eram objetos de estudo do curso extra que mantinha com os alunos da ortopedia. Um negócio tão fragilzinho e difícil de consertar, o osso mais elegante do corpo pro cara jogar. Jogar onde? E tirar como? De quem? Como assim, classe de personagem? O inglês capenga até hoje. Kids/brinquedos/crescidinhos: tíbias ao vento, R$ 337,99.
Aí abriu a portinha pai já viu, né? Vou nem contar essa parte que não quero ninguém chorando em cima do meu texto. Mas adianto que só com ela subiram 49 memórias e que, se vender tudo, quita o apartamento. A portinha pai, puxou a portinha mãe, naturalmente, e aqui dá pra contar pelo menos uma. Ela, o pai e a mãe no carro de Garanhuns pra Recife, o enjoo já dando as caras e olha que nesse dia não tinha ninguém de carona. Param pra almoçar na estrada. Ela quer pedir hambúrguer, o pai diz que melhor PF, que restaurante de estrada tem que comer simples, o que tiver vendendo mais. Ela insiste. Ele fala firme. Ela chora. Pedem o hambúrguer. Não precisou nem meia hora pra entender que era melhor PF mesmo. Passa mal, param o carro, voltam pro carro. Ela chora de novo, diz que foi praga do pai, que botou gosto ruim na comida. Ele fala firme. Ela chora. Fala firme. Chora. Fala firme. Chora. Param na estrada pra mais de dez vezes. Lá pelas tantas, ela só o pó, finge que dorme no banco de trás. A mãe, calada desde o restaurante até cruzar a placa do bem-vindos a Recife, só mandou uma:
– Tem necessidade disso? A menina vivencia as coisas de forma tão visceral que nem as vísceras dela aguentam.
Todo mundo de mal na chegada. Dani se tranca na biblioteca da casa da tia, corre pro dicionário. Viceral. Víceras. Visseral. Vísseras. Não encontra. Anos sem entender o que dona Julieta pensava sobre ela. Moças/bolsas/necéssaire: pandemônio gastronômico, R$ 456,89.
Recebeu a segunda oferta no sábado cedinho ainda. Glauber Fernando propunha uma troca. Queria o cheiro do Styletto e oferecia de volta uma mistura de Acqua Marine e cabelo molhado com um resquiciozinho de Neutrox. O cheiro da única menina do curso de inglês que tomava banho antes de ir pra aula. O hoje tradutor juramentado se disse disponível pra fazer a entrega a domicílio. Dani dormia quando o aplicativo apitou. Podia até lembrar do nome de Glauber Fernando quando acordasse, mas as tíbias voadoras foram vendidas ontem mesmo.
Roberta D’Albuquerque é psicanalista e coautora do livro Quem manda aqui sou eu (HarperCollins). Atende no seu consultório em São Paulo e escreve mensalmente neste espaço. Acompanhe em @robertadalbuquerque.